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O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas

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22/08/2017 às 15:20
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4. DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Dentre os fundamentos constitucionais estabelecidos pelo constituinte de 1988 está “a dignidade da pessoa humana” (art. 1, III). Esse princípio, como explica Moraes (2011, p. 24), “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas”, e repulsa a ideia “de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual”.

A dignidade da pessoa humana contém um princípio implícito, que dele decorre naturalmente, que assegura a todos o direito de perseguir a felicidade. Nesse sentido ementa de lavra do Min. Celso de Mello, do STF, relator do RE nº 477.554 (2011, p. 1):

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA DA FELICIDADE. - O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. - O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado. (grifei)

Dessarte, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana constitui a garantia reconhecida pelos constituintes de 1988 de que o ser humano deve ser tratado com dignidade, a qual pressupõe respeito às suas convicções pessoais, porque ele possui o direito de ser feliz. No aspecto individual, essa dignidade se revela na não submissão ao interesse coletivo, de modo que a busca da felicidade não pode ser obstada por eventual norma restritiva. Essa garantia, aliás, já estava consignada na Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 1776, que no seu item 1 estabelecia:

Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem, por qualquer contrato, privar ou despojar sua posteridade; ou seja, o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, e de buscar e obter felicidade e segurança[4]. (grifei)

A Carta Magna também dispõe, ao elencar os objetivos fundamentais republicanos, a obrigação de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Disso deflui que a promoção do bem comum, definido por João XXXIII (1963) como “conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”, constitui o bem estar coletivo, sem diferenças entre uns e outros, e é o escopo primeiro e último do Estado Nacional. Sobre o tema, adverte Agra (2012, p. 181):

Quando a Constituição fala que não pode haver preconceito em relação a raça, sexo, cor, idade, origem etc., não está falando, de forma absoluta, que é impossível qualquer tipo de discriminação com base nestes elementos. Por exemplo, pode haver diferenciação de sexo, possibilitando a inscrição de apenas mulheres, em um concurso para trabalhar como carcereira em um presídio feminino. Portanto, o que a Constituição veda são diferenciações com base nos elementos mencionados que não tenham um amparo lógico plausível que os justifique, que eles sejam alçados a critérios diferenciadores sem uma forte motivação que os ampare.

Lembra Ferraz Filho (2013, p. 8) que o bem comum, inerente a “todos os seres humanos”, constitui o “fim último da democracia constitucional brasileira”, advertindo que não se trata de “um ideal irrealizável”. Agra (2012, p. 129) lembra que os objetivos fundamentais constituem princípios de conteúdo polissêmico, “que impedem definições precisas acerca de sua essência”, concluindo que “formam as normas do welfare state brasileiro, isto é, são normas programáticas que têm o objetivo de criar um Estado de bem-estar social. Possuem eficácia mediata, no sentido de que o legislador infraconstitucional não pode afrontar o conteúdo de suas disposições”.

O princípio constitucional do bem comum, sem quaisquer formas de preconceito ou discriminação, portanto, reconhece o direito humano inerente a todos individualmente de não serem diferenciados indevidamente. Nesse mesmo sentido também dispõe o caput do art. 5º da Carta Política, encartado no Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, inserido no Título II, denominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, de lavra do constituinte de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[..]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Aponta Peña de Moraes (2013, p. 321) que

“Os direitos fundamentais, especialmente os direitos individuais, procedem à limitação do poder político na medida em que estatuem, relativamente ao Estado e aos particulares, um dever de abstenção, isto é, asseguram a existência de uma esfera de ação própria, inibidora de interferências indevidas, de forma que são satisfeitos por um abster-se ou não atuar”.

Seriam tais direitos, portanto, exemplos do que denominou Georg Jellinek status negativus ou status libertatis, porque consistiriam, os direitos individuais, decorrentes da inação estatal. Alexy (2012, p. 258), ao discorrer sobre essa teoria, aponta que nessa situação estariam apenas as ações consideradas, para o Estado, juridicamente irrelevantes, como “o saborear de um vinho e o passeio em sua própria propriedade”. Isso porque ao conceito de status negativo, como aponta Novelino (2013, p. 381), atualmente são conferidos dois significados: (i) em sentido stricto, oriundo do pensamento de Jellinek, “diz respeito exclusivamente a liberdades jurídicas não protegidas”; (ii) em sentido lato, acolhido majoritariamente pela doutrina, “se refere aos direitos de defesa, ou seja, direitos a ações negativas do Estado que protegem o status negativo em sentido estrito”, ocasionando “uma obrigação negativa endereçada ao Estado para que deixe de fazer algo”.

Ciente das inúmeras críticas à teoria dos status de Jellinek, Alexy (2012, p. 270-271) lembra que “o legislador está vinculado aos direitos fundamentais”, sendo inaplicáveis essas teses “sob a vigência da Constituição alemã”. E adverte:

Mas isso não significa que o conceito de status negativo tenha se tornado obsoleto. Quando da discussão acerca do conceito de liberdade jurídica não-protegida foi demonstrado que as normas de direitos fundamentais devem ser concebidas também como normas permissivas. A partir dessa base é possível construir o conceito de status negativo fundamental. O conceito do status negativo fundamental [...] é constituído pela totalidade daquilo que lhe é facultado em virtude de uma norma constitucional permissiva. O status negativo fundamental pode ser violado também pelo legislador, como, por exemplo, por meio de estabelecimento de normas proibitivas que contradigam uma norma de direito fundamental permissiva. O problema do conteúdo do status negativo é solucionável, portanto, por meio da introdução do conceito de status negativo fundamental. (grifei)

A doutrina de Alexy, ainda que amparada na realidade alemã, é pertinente ao estudo porque também a Constituição brasileira limita a atuação do legislador superveniente, adstrita aos direitos fundamentais nela consagrados. Os direitos e garantias individuais assegurados pelo constituinte de 1988, portanto, tutelam o que deve ser resguardado pelo Poder Público em favor dos indivíduos que compõem a sociedade, seja através da ação, normatizando e disciplinando o exercício de alguns direitos e garantias, seja por meio da inação, não diminuindo o campo da legalidade do que se é constitucionalmente assegurado.

Nesse diapasão, a ilicitude, e a consequente restrição ao uso, cultivo, preparo e venda de qualquer droga destinada à recreação, constitui interferência indevida do Estado sobre o direito humano fundamental de liberdade (art. 5º, caput, CF) e de inegável violação à garantia do direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (inc. X, art. 5º, CF). O legislador penal, indiferente aos limites constitucionais para sua atuação, viola a dignidade da pessoa humana, notadamente no princípio que assegura a todos o direito de buscar a felicidade, o qual não pode ser limitado com base na tradição ou em valores morais divorciados de força jurídica constitucional.

Há, pois, verdadeira discriminação (art. 3, IV, CF) aos que buscam a felicidade por meio de drogas consideradas ilícitas, porque tratados diferentemente dos que buscam a felicidade por meio de drogas lícitas. Qualquer droga, ainda que legal, possui potencialidade lesiva ao organismo humano; entretanto, a cadeia produtiva de uma se situa desabrigada da proteção jurídica e funciona na marginalidade, enquanto a outra atua livremente na sociedade. Essa discriminação não tem amparo constitucional, pois inexistente o imprescindível amparo lógico que seja plausível para justificá-lo.

Assim, a decisão pelo uso ou não de drogas recreativas constitui um direito individual que não interessa ao Estado, a não ser para regulamentar a cadeia de produção e distribuição dos produtos e, com isso, assegurar padrões mínimos de qualidade e pureza.

4.1 DA NECESSÁRIA MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO

A relação das drogas ilícitas, a que se refere a Lei nº 11.343, é apresentada pela Portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária nº 344, de 12 de maio de 1998. Todavia, nela inexiste motivação.

Motivo, como leciona Justen Filho (2009, p. 296-297), tem conceituação diversa de motivação, pois enquanto aquele consiste no “processo mental interno ao agente que pratica o ato”, a motivação se revela na formal exteriorização do motivo, propiciando controle sobre a regularidade do ato, ou seja, “na exposição por escrito da representação mental do agente relativamente aos fatos e ao direito, indicando os fundamentos que o conduziram a agir em determinado sentido”.

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 Essa debilidade da Portaria nº 344 foi apontada por Maciel (2013), em sentença de sua lavra:               

A portaria 344/98, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo.

Sem motivação, tal norma fica incapaz de poder complementar a norma penal do art. 33, caput, da lei 11343/06.

Ademais, ainda que houvesse qualquer justificativa ou motivação expressa do órgão do qual emanou o ato administrativo restritivo de direitos, a proibição do consumo de substâncias químicas deve sempre atender aos direitos fundamentais da igualdade, da liberdade e da dignidade humana.

Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias.

A falta de motivação adequada, sobre o porquê determinada droga é lícita ou ilícita não pode constituir simples discricionariedade, devendo ser fundamentada. Daí porque asseveram Neves e Segatto (2010) que qualquer droga, lícita ou ilícita, “possui consequências indesejáveis em qualquer idade. Legalizada ou não, o resultado biopsicossocial destruidor é enorme”. Todavia, se drogas lícitas há tão nefastas quanto as ilícitas, o critério para que determinada substância figure tanto numa como noutra relação deve ser objetivo e induvidoso, e não decorrer de mero desejo da autoridade administrativa, pena de violar os princípios a que deve sujeitar-se a Administração Pública, notadamente a moralidade e a eficiência (art. 37, caput, CF). Oportuno o escólio de Martins:

Sabe-se que, para as drogas ilícitas, boa parte dos seus malefícios reside nas impurezas e na mistura de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu processo de produção. Mas quanto às drogas lícitas também não se desconhece que podem causar danos aos indivíduos. A diferença é que sobre elas o Estado (e a sociedade) exerce o controle de qualidade nas esferas da produção e da circulação.

Destarte, também pelo aspecto formal pelo qual a relação das drogas ilícitas é apresentada há um vício insuperável, que não pode ser convalidado. Nela não há motivação qualquer. E ainda que houvesse, estar-se-ia diante de uma situação na qual um direito humano fundamental seria restringido por ato cunho administrativo, infralegal, porque emanado por órgão vinculado ao Ministério da Saúde.

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Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5165, 22 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41981. Acesso em: 19 nov. 2024.

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