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O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas

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22/08/2017 às 15:20
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5. DO NOVO DIREITO CONSTITUCIONAL

Como evolução natural do desenvolvimento dos estudos sobre o alcance das disposições constitucionais, atualmente não se pode aturar, tamanha a evolução do constitucionalismo, palavras e expressões elencadas na Carta Magna desprovidas de resultado prático e efetivo, ainda mais quando expressam fundamentos principiológicos da República. Mello (2010, p. 958-959) lembra que princípio constitui “mandamento nuclear de um sistema”, funcionando como “verdadeiro alicerce”, que alcança as diversas normas “compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. E o autor é taxativo:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada. (MELLO, 2010, p. 959)

Sobre o papel do novo constitucionalismo, leciona Barroso (2013, p. 288-289):

O novo direito constitucional [...] tem sido referido, por diversos autores, pela designação de neoconstitucionalismo. O termo identifica, em linhas gerais, o constitucionalismo democrático do pós-guerra, desenvolvido em uma cultura filosófica pós-positivista, marcado pela força normativa da Constituição, pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova hermenêutica. Dentro dessas balizas gerais, existem múltiplas vertentes neoconstitucionalistas. Há quem questione a efetiva novidade dessas ideias, assim como seus postulados teóricos e ideológicos. Mas a verdade é que, independentemente dos rótulos, não é possível ignorar a revolução profunda e silenciosa ocorrida no direito contemporâneo, que já não se assenta apenas em um modelo de regras e de subsunção, nem na tentativa de ocultar o papel criativo de juízes e tribunais. Tão intenso foi o ímpeto das transformações que tem sido necessário reavivar as virtudes da moderação e da mediania, em busca de equilíbrio entre valores tradicionais e novas concepções.

O Direito não é estanque, e a jurisprudência nacional, acompanhando a melhor doutrina, entende que o alcance dos direitos fundamentais não deve ser menor do que aquele adequado para atender as necessidades da sociedade em um determinado momento. Sem essa interpretação consentânea da Carta Política, os conflitos imanentes da própria evolução social não seriam enfrentados com justiça; mais que isso, os fundamentos pretendidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, como a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem comum, seriam lançados meramente à condição de normas programáticas. Preciso José Afonso da Silva (2013, p. 469) ao dispor sobre a eficácia dos direitos fundamentais, aduzindo que “a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais”. Oportuno escólio de Barroso (2013, p. 334-335):

A nova interpretação constitucional surge para atender às demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural. Ela não derrota a interpretação tradicional, mas vem para atender às necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas. Tome-se como exemplo o conceito constitucional de família. Até a Constituição de 1988, havia uma única forma de se constituir família legítima, que era pelo casamento. A partir da nova Carta, três modalidades de família são expressamente previstas no texto constitucional: a família que resulta do casamento, a que advém das uniões estáveis e as famílias monoparentais. Contudo, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a existir uma nova espécie de família: a que decorre de uniões homoafetiva. Veja-se, então, que onde havia unidade passou a existir uma pluralidade.

A nova interpretação incorpora um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais [...]. Dentre elas, a normatividade dos princípios (como dignidade da pessoa humana, solidariedade, segurança jurídica), as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação jurídica. Nesse novo ambiente, mudam o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma, muitas vezes, traz apenas um início de solução, inscrito em um conceito indeterminado ou em um princípio. Os fatos, por sua vez, passam a fazer parte da normatividade, na medida em que só é possível construir a solução constitucionalmente adequada a partir dos elementos do caso concreto. E o intérprete, que se encontra na contingência de construir adequadamente a solução, torna-se coparticipante do processo de criação do Direito.

Essa evolução na interpretatio do Direito é essencial para que se possa adequar a vida em sociedade com o ordenamento jurídico. As normas devem adequar-se à sociedade, e não esta àquelas. Evidente que são dos legisladores, em um Estado Democrático de Direito, a atribuição republicana de criar, revisar e revogar leis; todavia, na hipótese de inércia do Poder Legislativo no cumprimento de suas atribuições, cabe ao Poder Judiciário, no exercício de suas também republicanas atribuições, extrair da norma um sentido que atenda aos anseios da sociedade, notadamente quando busca fundamento em princípios constitucionais.

O Min. Celso de Mello, por ocasião de seu voto no julgamento da ADPF nº 54/DF (2012, p. 359-360), destacou a função contramajoritária que cabe ao Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito, de proteção de grupos vulneráveis contra “excessos da maioria ou, ainda, contra omissões que, imputáveis aos grupos majoritários, tornem-se lesivas, em face da inércia do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica”[5], assentando:

Esse aspecto da questão talvez explique a resistência que as correntes majoritárias de opinião, representadas no Congresso Nacional por expressivas bancadas confessionais, opõem às propostas de incorporação, ao sistema de direito positivo, de inovações fundadas tanto nas transformações por que passa a sociedade contemporânea quanto nos compromissos que o Estado brasileiro assumiu no plano internacional.

O Poder Legislativo, certamente influenciado por valores e sentimentos prevalecentes na sociedade brasileira, tem se mostrado infenso, no que se refere ao tema ora em exame, à necessidade de adequação do ordenamento nacional a essa realidade emergente das práticas e costumes sociais.

Tal situação culmina por gerar um quadro de submissão de grupos vulneráveis à vontade hegemônica da maioria, o que compromete, gravemente, por reduzi-lo, o próprio coeficiente de legitimidade democrática da instituição parlamentar, pois, ninguém o ignora, o regime democrático não tolera nem admite a opressão, por grupos majoritários, da minoria, definida tal expressão à luz do critério da vulnerabilidade das mulheres, que pode ser social, econômica e jurídica.

É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade, da intimidade, da autodeterminação pessoal, da liberdade e dos direitos sexuais e reprodutivos, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito. (grifos no original)

O cerne da questão, pois, repousa na intolerância com os que comungam de pensamento diverso, o que é agravado quando este pensamento for contramajoritário. Infelizmente, o Brasil possui essa tradução: a escravidão de negros perdurou até 1888, enquanto os estadunidenses a repeliram em 1865[6] (NATIONAL ARQUIVES) e o Reino Unido em 1833[7] (NATIONAL ARQUIVES); o divórcio, aprovado no Brasil pela Lei nº 6.515/1977, havia em França desde 20 de setembro de 1792[8] (BORRILLO, 1986, p. 16).

Com relação às drogas recreativas, entrementes, não se pode ignorar,no plano internacional, legislações descriminalizantes, como no Uruguai, onde a Lei nº 19.172, de 20 de dezembro de 2013, permite o uso, cultivo e a comercialização de maconha em condições específicas pelo Estado, e na Holanda, “onde o consumo de droga na prática não é proibido. Arrogando-se de uma solução pragmática, não emocional nem dogmática, o centro de gravidade da actuação pretende-se localizado na saúde do consumidor, acreditando-se mais no controlo social que na eficácia da legislação”[9].


6. PROIBIR NÃO, EDUCAR SIM

O Brasil constitui um Estado laico, no qual dogmas de cunho religioso não podem obstar o direito individual, fundamentado na dignidade da pessoa humana, de buscar a felicidade. Entretanto, o exercício desse direito constitucional é fustigado por normas penais de criminalizam a posse, o uso, e as atividades relacionadas à produção e comércio de drogas recreativas. Pertinentes as colocações de Martins (2013):

A retirada das drogas da ilegalidade, colocando-as sob o controle do Estado, por meio da taxação de impostos e da qualidade dos produtos, não seria o caminho mais adequado, justo e economicamente viável para a sociedade? Afinal, esse é o recurso utilizado em relação às bebidas alcoólicas, ao tabaco e aos remédios. A quem interessa, então, manter na ilegalidade determinadas substâncias?

A resposta a essa questão não é simples e nem direta. Sinteticamente pode-se afirmar que a colocação das drogas na ilegalidade, e a sua condenação, responde a determinados interesses que no limite serve para a imposição de uma política de "tolerância zero", cuja liderança, que se pretende hegemônica para todos os países, tem sido encampada pelos Estados Unidos da América, no sentido da universalização de um discurso proibicionista e condenatório de todo e qualquer tipo de uso de drogas consideradas ilícitas.

Ocorre que na Europa, a partir de 1980, um número significativo de países começa a perceber que a política de "tolerância zero", de condenação das drogas, não estava alcançando os resultados esperados, tanto na repressão da produção quanto na circulação delas.

Em Portugal, com o advento da Lei nº 30, de 29 de novembro de 2000, houve a “a descriminalização de todas as drogas, incluindo a cannabis, a cocaína e a heroína”, como lembra Martins (2013), que destaca:

No âmbito da lei que entrou em vigor em Portugal em 1º de julho de 2001, a mudança verificada diz respeito à descriminalização das drogas com repercussão no usuário, ou seja, a posse e o uso de drogas continuam proibidos, mas as consequências para o usuário, ao ser pego, referem-se a violações administrativas não mais tratadas no âmbito criminal.

Para além do acerto que Portugal obteve com a descriminalização das drogas, e do seu usuário, também é preciso ter claro que o peso dessa política recai na abordagem da saúde, exigindo do consumidor sua sujeição ao tratamento médico e, do Estado, políticas adequadas para atender à demanda dos que se dispõem ao tratamento.

Ademais, resta destacar que para a União Europeia, e particularmente para Portugal, a política de "guerra às drogas", que recai em criminalização do usuário e na sua colocação na clandestinidade, tem se mostrado mesmo fracassada. Na política de "tolerância zero" quem ganha são os capitalistas das drogas, que têm no comércio ilícito um meio altamente lucrativo para a realização de seus interesses econômicos.

Por outro lado, a política de "guerra às drogas", que patrocina investiduras militares, reforça a ideia de que os responsáveis pelo consumo de drogas, em nível mundial, são os países produtores e, nesse sentido, as invasões militares se justificam. Ocorre que essa mesma política de "guerra às drogas" não evidencia os interesses econômicos e políticos imbricados na questão.

Além disso, a política de "guerra às drogas" tem se mostrado desastrosa porque, ao promover a fumigação química de plantações, como as de coca, maconha e papoula, por exemplo, o resultado é um desastre ecológico para as terras cultiváveis localizadas próximas às áreas fumigadas, além da perseguição aos pequenos agricultores, que têm no cultivo da coca seu meio de subsistência, como é o caso daqueles situados nos países andinos.

No contexto de uma política repressiva - antidrogas -, a experiência realizada por Portugal pode ajudar a pensar a realidade brasileira, contribuindo com uma abordagem menos preconceituosa sobre a questão.

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Em sentido oposto, ao discorrer sobre a incapacidade do Estado em coibir o comércio de drogas ilícitas, Block (2010, p. 53) aponta que o erro das políticas estatais está em “se proibir as drogas, e não o vício propriamente”, arguindo que a ilegalidade apenas eleva o valor do produto e os malefícios à sociedade:

Quando uma mercadoria se torna ilegal, devem ser somados, a todos os custos normais de cultivar, colher, tratar, transportar, comercializar etc, os custos de burlar a lei e pagar pelas punições aplicadas quando somos apanhados. No caso do uísque clandestino (durante a lei seca nos anos de 1920), esses custos extras não eram tão excessivos, porque o cumprimento da lei era negligenciado, e a legislação não tinha apoio popular amplo. No caso da heroína, esses custos são enormes. [...]

Além de ter de pagar altos subornos à polícia, os comerciantes de drogas também precisam pagar altos salários a seus empregados, pelos perigos que estes correm em contrabandear e manter em funcionamento as fábricas que preparam as drogas para a venda nas ruas. Eles também têm de exercer certo grau de paternalismo, cuidando daqueles empregados que são apanhados, subornando políticos, advogados e juízes para minimizarem as penas.(BLOCK, 2010, p. 53-54)

Para o autor, não se justifica a argumentação comumente utilizada de que a legalização das drogas, e em especial a heroína, “deteria o progresso e a civilização”, pautado nas experiências de britânicos e de chineses com drogas viciantes:

O argumento é que qualquer coisa que interfere com o progresso, como o uso disseminado da heroína, deve ser proibida. Mas existem outras coisas que interferem com o avanço do progresso e que a maioria das pessoas não gostaria que fossem proibidas- o lazer, por exemplo. Se os trabalhadores tirassem 90 por cento do ano em férias o “progresso” certamente vacilaria. Será que as férias longas seriam proibidas? Dificilmente. Além disso, a atual proibição da heroína não elimina o acesso à droga. Antigamente, só era conseguida nos guetos dentro das cidades; hoje em dia, pode ser comprada em esquinas de ruas movimentadas dos subúrbios e nos pátios das escolas. (BLOCK, 2010, p. 55-56)

A experiência chinesa, lembra Block (2010, p. 56), decorre da época em que “os mercadores chineses foram forçados pela ‘diplomacia’ e canhoneiros a aceitarem o ópio. A legalização das drogas que viciam de forma nenhuma força as pessoas ao vício”[10].

Já a experiência britânica, ensina Block (2010, p. 56), onde as drogas são “ministradas legalmente, a baixo custo, por um médico ou clínica autorizada”, as estatísticas que apontam o aumento de consumo parte do equívoco de desconsiderar que, quando “ser viciado era ilegal, muitas pessoas relutavam em se declarar viciadas”, mas com a legalização do vício, e a consequente baixa dos preços das drogas, que passaram a ser disponibilizadas pelo Serviço de Saúde apenas aos que comprovassem a condição de dependentes, os usuários se assumiram como viciados. E completa:

Concluindo, devemos declarar que o vício em heroína pode ser um mal não mitigado, sem quaisquer aspectos que o redimam socialmente. Assim sendo, os esforços para tornar públicos os males do vício só podem ser aplaudidos. No entanto, a atual proibição da heroína e de outras drogas “pesadas” não serve a qualquer propósito útil. Ela tem causado incomensurável sofrimento e um grande motim social. Ao tentar manter essa lei viciosa, o agente da delegacia de narcóticos faz com que os preços continuem elevados e acaba aumentando a tragédia. É somente o vendedor de heroína quem poupa vidas e alivia, até certo ponto, a tragédia. (grifei) (BLOCK, 2010, p. 56)

Ao analisar o problema das drogas no continente, em El problema de las drogas em las Américas: alternativas legales y regulatórias, a Organização dos Estados Americanos- OEA (2013, p. 5) reconheceu que: (i) o debate sobre as políticas de drogas foi intensificado, notadamente pela legalização da maconha no Uruguai e em dois Estados dos Estados Unidos da América[11]; (ii) inúmeros membros da OEA “adotem sanções não penais ou tenham reduzido as sanções penais ou não sancionem a posse de substâncias controladas para uso pessoal, incluindo Argentina, Brasil e México”; (iii) “a despenalização de facto ou de jure da maconha para consumo pessoal é comum em muitos Estados dos Estados Unidos”; (iv) as evidências comprovam que “a redução de sentenças pela posse de quantidades pequenas tem pouco efeito sobre a quantidade de usuários”; (v) a legalização das drogas consideradas ilícitas poderia acarretar consequências negativas, como “complicar os esforços de prevenção, reduzir os preços e consequentemente ampliar o uso e a dependência”; (vi) com a suposição de que as estruturas regulatórias funcionem adequadamente, “a legalização poderia reduzir muitas das consequências negativas que atualmente mais preocupam a sociedade, como a violência, a corrupção e desordem pública resultante da distribuição de drogas”, além das doenças causadas pelo uso de agulhas compartilhadas e “do encarceramento de centenas de milhares de delinquentes de drogas de baixa qualidade”; (vii) não existem dados suficientes para se aferir “com precisão os custos e benefícios, e é difícil predizer quanto a legalização reduziria a delinquência e outros danos ou aumentaria a quantidade de dependentes e o uso”, que provavelmente teriam variação “por país, por droga e pela natureza do regime de legalização adotado”, porque, além de inexistir Estado que tenha legalizado todas as drogas, exemplos históricos, como, “por exemplo, para o período em que a cocaína era legal em muitos países ocidentais”, tampouco “as comparações com a proibição do álcool proporcionam uma visão muito mais clara”[12].

Nesse trabalho da OEA (2013), ao discorrer sobre os “potenciais resultados positivos da disponibilidade legal”, ficou consignado que a mortandade entre os usuários e a criminalidade podem ser reduzidas com a descriminalização:

A condição de ilegalidade das drogas é a principal causa de overdose, pois cria incerteza quando à pureza do que se compra e incentiva o uso de adulterantes que podem, por si só, surtir efeitos perigosos. Em um regime legal regulado, as drogas vendidas seriam de pureza conhecida e constariam seus ingredientes na etiqueta do produto. O HIV, de muito associado com a injeção de heroína, poderia reduzir-se consideravelmente se os consumidores de heroína já não tenham de esconder seus hábitos e compartilhar agulhas. O aumento do consumo e da dependência amainariam esses lucros, pois essas drogas ainda apresentam riscos à saúde inclusive quando a pureza é conhecida e seu uso não tem de ser clandestino.

Outras consequências da legalização poderiam ser a redução da desordem nos mercados e da criminalidade, assim como a redução da corrupção no sistema de justiça penal e das autoridades políticas em geral. Isso supõe que os países sejam capazes de implementar e aplicar sistemas eficazes de regulamentação que não permitam o surgimento de um grande mercado paralelo de drogas.[...]

Talvez a melhor prova histórica se encontre no exame dos efeitos da proibição do álcool e sua abolição nos Estados Unidos, pois foram casos proeminentes e estiveram sujeitos a muitos estudos e investigações, e ao mesmo tempo suscitaram muita controvérsia. Por inúmeras razões não é uma analogia perfeita. Por exemplo, o público poderia comparar a proibição com a disponibilidade legal já que o álcool estava legal antes de 1919. A repressão nunca fui muito dura; em 1921 o Estado de Nova Iorque não conseguiu mais de 20 condenações pela violação da lei estatal de proibição de álcool, a qual foi derrogada em 1923. Os estudos apontam que a proibição do álcool nos Estados Unidos conduziu a uma redução substancial, aproximadamente de um terço, do consumo de álcool durante as primeiras etapas da proibição, mas com o transcurso do tempo se tornou menos efetiva, na medida em que a corrupção policial minou a aplicação da lei e sua autoridade moral. [...] Durante a época de proibição houve um grande aumento de homicídios, que muitos acadêmicos atribuem às brigas entre os traficantes de licores. A derrogação da proibição foi seguida de uma diminuição substancial dos índices de homicídio e, segundo a evidência, um modesto aumento do consumo de álcool[13]. (OEA, 2013, p. 40-41)

De toda sorte, considerando que a ilegalidade das drogas recreativas constitui indevida interferência do Estado no direito humano fundamental que tutela o indivíduo em sua liberdade pessoal de agir conforme suas convicções pessoais e, assim, buscar sua felicidade, não se pode descurar da garantia constitucional à saúde, nos termos do art. 196, que dispõe: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Destarte, a atuação estatal, da mesma forma que com relação ao álcool[14]e ao tabaco[15], deve limitar-se a regulamentar os meios de produção, comércio, publicidade[16] e uso, de forma a gerir uma política que minimize os nefastos efeitos das drogas ao usuário[17], informando, educando e disponibilizando tratamento adequado. O direito constitucional à saúde, pois, é satisfeito quando o Estado informa sobre os riscos à saúde advindos da utilização da droga, garantindo sua pureza e qualidade, e disponibiliza o tratamento adequado para quem quiser deixar o vício. Oportunas as observações de Tavares:

Realmente, o Estado deve promover políticas sociais e econômicas destinadas a possibilitar o acesso universal igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Ademais, deve preocupar-se igualmente com a prevenção de doenças e outros agravos, mediante a redução dos riscos (arts. 166 e 198, II). Por fim, o tema relaciona-se diretamente com a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade, que pressupõem o Estado-garantidor, cujo dever é assegurar o mínimo de condições básicas para o indivíduo viver e desenvolver-se. (grifos no original) (2013, p. 718)

O que não se pode admitir é a interferência estatal em campo afeto à intimidade do ser humano, livre para decidir pela utilização ou não de algo nocivo à sua saúde. Pela simples lógica ilógica de aceitar essa intromissão, poder-se-ia, quiçá, endossar a normatização sobre o consumo de gordura permitido, dado o malefício que causa à saúde, responsável por cerca de 30% das mortes globais (SANTOS, et al, 2013).

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Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5165, 22 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41981. Acesso em: 19 abr. 2024.

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