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O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas

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22/08/2017 às 15:20
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7. CONCLUSÃO

A vontade do legislador, divorciada da contundência dos princípios que norteiam o Direito Penal, não basta para tipificar uma conduta. Assim, apenas quando o bem jurídico tutelado for relevante para a vida social cabe a tutela protetiva; mas não basta a relevância, é preciso que haja homogeneidade, pena de valorar ou desvalorar ações relacionadas a um mesmo bem jurídico, o que fere o princípio da isonomia. Essa a situação com relação às drogas recreativas, porque outras drogas, como o álcool, a ayahuasca e o tabaco são consideradas lícitas, embora nocivas à saúde, enquanto outras, como a maconha, a cocaína e a heroína são consideradas ilícitas.

Ademais, existe um limite para a atuação do poder estatal que, se ultrapassado, torna ilícita sua atuação. A dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CF) como valor preponderante, geratriz do princípio segundo o qual a pessoa tem o direito de buscar sua felicidade, e consequentemente de ser feliz, aliada ao reconhecimento também constitucional da liberdade individual como direito humano fundamental (art. 5º, caput), bem como da inviolabilidade da intimidade e vida privada (art. 5º, X), asseguram um campo onde é vedada a atuação do legislador, que não pode restringir direitos fundamentais.

Há uma discriminação (art. 3º, IV, CF) em desfavor dos que buscam a felicidade por meio de drogas ilícitas, atingindo igualmente todos que participam de sua cadeia produtiva, sem amparo lógico que possa justificá-lo. Se há drogas que igualmente causam malefícios à saúde e possuem capacidade de causar dependência, mas são legalizadas, não há constitucionalidade na distinção restritiva.  

A Lei nº 11.343, portanto, padece de dois grandes vícios. O primeiro é com relação à forma, pois remete a descrição das substâncias à tabela confeccionada pelo Ministério da Saúde, ou seja, a limitação do direito humano fundamental ocorre por meio de portaria, como se fosse possível um ato administrativo restringir o alcance de um direito garantido pela Constituição. A segunda nódoa da norma, mais grave, advém da própria restrição nela contida, decorrente da atuação do legislador em campo no qual não lhe cabe atuar.

A função do Estado, em uma sociedade democrática e de Direito, é zelar pela sedimentação dos direitos e das garantias fundamentais de seus cidadãos. Daí a relevância da novel interpretação constitucional, pautada na extração máxima da carga axiológica dos princípios, para suprir adequadamente os reclamos da sociedade, notadamente quando o legislador permanece inerte ao imprescindível aggiornamento normativo frente à evolução social. O novo constitucionalismo avaliza a interpretação consentânea da Carta Política, dela extraindo a exegese adequada para atender as necessidades da sociedade em um Estado onde a democracia e o Direito imperam como instrumentos do povo, soberano absoluto do Poder do Estado. Os princípios ocupam relevante destaque, contribuindo para a harmonização dos dispositivos constitucionais e como norte na extração do melhor sentido das normas infraconstitucionais; violação ao princípio, pois, é ainda mais gravoso ao ordenamento que o descumprimento de qualquer norma.

Na doutrina, é forte o entendimento de que a proibição das drogas recreativas resulta tão somente na elevação de seus custos, na baixa qualidade do produto, potencializando sua nocividade, e no efeito catalizador da corrupção, propiciado pela existência de um mercado consumidor que é suprido por grupos organizados que movimentam vultosas somas de capital, à margem da lei. Daí porque, no Direito comparado, há exemplos, em maior ou menor escala, de liberação regulada de drogas; a própria OEA reconhece essa viabilidade. A legislação penal brasileira, todavia, em que pese hodiernamente afastar a sanção de restrição da liberdade aos consumidores de drogas recreativas, agravou a punição daqueles que as produzem ou comerciam, ignorando que é a existência de um mercado consumidor que incentiva tais atividades.

À míngua de uma solução legislativa adequada, a inadequação normativa nacional sobre drogas recreativas não resiste à análise de sua constitucionalidade: viola o direito individual de autodeterminar-se; viola a dignidade da pessoa humana, e consequentemente seu direito de buscar a felicidade; discrimina os que buscam a felicidade por meio de drogas tão nocivas e potencialmente viciantes quanto outras consideradas lícitas, sem qualquer critério lógico ou razoável. O que não obsta do Estado, evidente, regulamentar esse mercado que já existe, e vai continuar a existir, justamente porque há, e sempre haverá, quem queira utilizar substâncias ora proscritas, bem como adotar políticas públicas que busquem conscientizar sobre os efeitos de quaisquer drogas à saúde e incentivem tratamento aos dependentes.


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Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. O (novo) constitucionalismo e a garantia da liberdade de comprar e vender drogas recreativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5165, 22 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41981. Acesso em: 26 abr. 2024.

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