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Para um conceito de interesse público no Estado Constitucional de Direito:

algumas considerações

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O conceito de interesse público passa, inequivocamente, pela carta de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela teoria da ponderação de interesses, em tudo marcados pelo deslocamento da centralidade do debate jurídico do Estado para a pessoa humana.

Resumo: O estudo aborda os contornos do conceito de interesse público no Estado constitucional de direito, sob o marco da teoria do neoconstitucionalismo, com a crítica aos tradicionais contornos do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. O Estado constitucional de direito, assentado na teoria dos direitos fundamentais e na centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana, reclama uma profunda redefinição dos contornos do regime jurídico administrativo, impondo-se a construção de um conceito de interesse público compatível com essa nova engenharia constitucional, indelevelmente marcada pelo traço humanista da personalização da ordem normativa constitucional. Esse novo marco normativo e político-institucional indica a superação da tradicional centralidade do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, propalado como princípio estruturante do regime jurídico administrativo, com a sua readequação aos novos vetores normativos do Estado constitucional de direito, fundado na defesa dos direitos fundamentais e no primado da dignidade humana.

Palavras-chave: Interesse público. Estado constitucional de direito. Princípio da supremacia do interesse público. Regime jurídico administrativo. Dignidade da pessoa humana.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A nova ordem constitucional brasileira, inaugurada com o advento da aclamada “Constituição cidadã”, veio a lume em meio a uma atmosfera festiva e cercada de alvissareira esperança democrática. É certo, porém, como já dito alhures, que vencidas as duas primeiras décadas e, por assim dizer, “atingida a ‘maioridade civil’ da (ainda político-socialmente infante) ‘abertura democrática’ brasileira”, há ainda um enorme déficit de concretização das promessas constitucionais. Ao que parece, a “Constituição de 1988, multicolorida pela vivificadora e extensa aquarela de direitos sociais constitucionalizados, acaba dando sinais de fenecimento (ou, quem sabe, somente saturação!), ante a rarefeita concretização de várias das suas promessas emancipatórias, libertárias e de igualdade social” (CRISTÓVAM, 2011, p. 11).

Por outro lado, resta inegável a profunda virada jurídico-metodológica operada a partir da Constituição de 1988, com o estabelecimento de uma prodigiosa carta de direitos fundamentais, situando a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III da Constituição Federal), em um claro deslocamento do epicentro da ordem normativa para a pessoa humana.

Essa inequívoca “personalização da ordem constitucional” implica a necessária revisão de uma série de institutos que povoam os mais diversos ramos jurídicos. E o Direito Administrativo não está imune a esses ventos de constitucionalização[1], o que vem ocorrendo, por exemplo, a partir do debate crítico acerca da “supremacia do interesse público” enquanto princípio estruturante do regime jurídico administrativo.

A tradicional doutrina administrativista que assentava o regime jurídico administrativo sob as balizas do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado[2], amplamente difundida e historicamente aceita quase sem contestação, passou recentemente a sofrer uma série de importantes e qualificadas críticas, que propõem uma interessante e sofisticada releitura do regime jurídico administrativo, a partir dos paradigmas do Estado constitucional de direito, da ponderação de interesses e da teoria dos direitos fundamentais[3].

A idéia de “supremacia do interesse público”, alçada à condição de verdadeiro axioma do moderno Direito Público, acabou por ser entronado no posto máximo e inapelável de justificação de toda a atividade administrativa. Como um “verdadeiro mantra de legitimação da atividade administrativa”, o argumento da supremacia do interesse público a tudo explica e tudo justifica, inclusive escamoteando toda sorte de arbitrariedades, autoritarismos e ofensas aos princípios constitucionais (mormente a impessoalidade e a moralidade administrativa). Tudo passou a ser “legitimado” a partir de uma retórica frouxa e órfã de racionalidade, o que não escapou à percuciente crítica do constitucionalista Lenio Luiz STRECK, para quem o interesse público traduz-se atualmente em uma “expressão que sofre de intensa ‘anemia significativa’, nela ‘cabendo qualquer coisa’”[4].

Na literatura jurídica nacional pós-abertura constitucional, coube ao jusfilósofo José Eduardo FARIA uma das primeiras análises críticas acerca da noção de interesse público, já atento à inafastável problemática dos recorrentes conflitos entre legítimos interesses contrapostos (públicos e privados), traço comum em uma Constituição aberta e pluralista como a nossa. Denunciando o caráter excessivamente vago e genérico do conceito de “interesse público”, FARIA o descreve como “um conceito quase mítico, cujo valor se assenta justamente na indefinição de seu sentido e que, por ser facilmente manipulável por demagogos, populistas e tiranos da vida pública, acaba sendo analiticamente pobre” (FARIA, 1992, p. 173).

Esse é o cenário jurídico-político no qual se insere a tônica central do presente ensaio (uma análise muito mais panorâmica do que aprofundada[5], e sem quaisquer pretensões de esgotar a temática, até pela sua elevada complexidade e pelos limites próprios desse texto): partindo da premissa de que o Estado constitucional de direito[6] (fundado na teoria dos direitos fundamentais[7] e na centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana[8]) engendra uma profunda redefinição dos contornos do regime jurídico administrativo, impõe-se a construção de um conceito de interesse público compatível com essa nova engenharia constitucional, indelevelmente marcada pelo traço humanista da “personalização da ordem normativa constitucional”.

Inequivocamente, em uma ordem constitucional caracterizada pelo movimento de constitucionalização de uma complexa, dinâmica e (por vezes!) colidente gama de interesses individuais (privados) e coletivos (públicos), a problemática da concretização e defesa desses legítimos interesses passa pela redefinição dos parâmetros do regime jurídico administrativo, a partir da análise dos contornos e limites de um conceito de interesse público afinado ao novo quadrante constitucional.

Isso impõe, inclusive, a superação da tradicional centralidade do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, propalado como princípio estruturante do regime jurídico administrativo, bem como sua adequação aos novos vetores normativos do Estado constitucional de direito, fundado na defesa dos direitos fundamentais e no primado da dignidade humana.

Antes, porém, do debate acerca dos atuais contornos e parâmetros do conceito de interesse público, faz-se imperiosa uma breve recuperação das teorias jurídico-filosóficas que têm indelevelmente marcado a metodologia constitucional contemporânea, servindo de inexorável substrato ao estabelecimento de um conceito de interesse público consentâneo ao Estado constitucional de direito que o ampara.


2. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E AS BASES JURÍDICO-FILOSÓFICAS PARA O ATUAL CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

Por certo, o atual conceito de interesse público não pode ser estruturado, de forma atropelada e descontextualizada, no nascente Estado liberal de direito[9] e no palco instaurado pela histórica Revolução Francesa, muito embora tenha sido nesse efervescente e singular momento que se tenham forjado os seus contornos originais, em meio ao advento do próprio Direito Administrativo enquanto ramo autônomo do Direito.

O conceito de interesse público comum àquele modelo jurídico de cunho marcadamente liberal e individualista, no mais das vezes indiferente às pressões das massas populares e às lutas pelo direito a ter direitos (substancias), deve ser suplantado por um conceito de interesse público adequado ao atual modelo de “Estado de direito inclusivo”, que assume obrigações perante os cidadãos e procura dialogar com os anseios dos mais diferentes conjuntos de atores sociais, aqui nomeado de Estado constitucional de direito.

Como já defendido alhures[10], esse modelo de Estado de direito inclusivo (Estado constitucional de direito) vem acompanhado por um sofisticado marco teórico, que pretende a superação das teorias do positivismo jurídico e a consolidação de uma nova teoria da Constituição. Por certo, não se pode desvincular as mudanças teóricas que respaldaram a passagem do positivismo jurídico para o pós-positivismo[11] ou neoconstitucionalismo[12], das profundas mudanças sociais e econômicas evidenciadas no curso do Século XX[13].

O neoconstitucionalismo não pode ser encarado como uma proposta acabada de teoria do direito, com pretensões de sistematicidade e adequação. Na verdade, sob o rótulo ainda em construção do neoconstitucionalismo, reúnem-se diversas doutrinas de teoria constitucional, por vezes até entre si contraditórias. Umas mais radicais e inconciliáveis até com os mais abertos modelos de “positivismo jurídico crítico”[14]; outras, porém, em larga medida conciliáveis com esses últimos. Por outro lado, em maior ou menor amplitude, todas essas doutrinas estão voltadas à consolidação de uma sólida teoria da supremacia da Constituição, da defesa da força normativa dos princípios constitucionais, da eficácia dos direitos fundamentais, da interpretação conforme a Constituição e da centralidade do princípio da dignidade de pessoa humana.

A supremacia da Constituição e o caráter vinculante dos direitos fundamentais são traços característicos fundantes do Estado constitucional de direito, um modelo de Estado de direito pautado pela força normativa dos princípios constitucionais[15] e pela consolidação de um modelo de justiça substancial[16].

A análise do nosso sistema jurídico constitucional não prescinde, em hipótese alguma, de um profundo estudo acerca dos princípios constitucionais. A força normativa da Constituição depende diretamente da oxigenação de princípios que tenham lastro no corpo social. Por certo, a Constituição será sempre mais efetiva e vivificada na sociedade, quanto maior a interação dos princípios constitucionais com as aspirações dos cidadãos a ela submetidos. Essas são as bases jurídico-filosóficas sob as quais se deve erigir o atual conceito de interesse público, objeto central do presente ensaio.


3. O INTERESSE PÚBLICO NO DIVÃ: PARA UM CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

A construção de um conceito de interesse público não é, certamente, uma empreitada singela. Há quem defenda, inclusive, que o interesse público acabe por ser infenso ao aprisionamento em uma noção propriamente conceitual (que ostente um conteúdo determinado). Seria, portanto, uma noção muito mais funcional e dinâmica do que conceitual, podendo apresentar inúmeras variações segundo critérios quantitativos e qualitativos, se apurado em diferentes épocas (tempo) e países (espaço) (VEDEL, 1980, p. 257-60). Inclusive, essa dificuldade em estabelecer um conceito de interesse público levou o administrativista argentino Guillermo Andrés MUÑOZ a defender (de forma lapidar e até poética!) que o interesse público é como o amor: é mais fácil sentir do que definir! (MOÑOZ, 2010, p. 21-31).

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Ante a sua característica fluidez conceitual, há quem qualifique a idéia de interesse público como verdadeiro topoi[17], um lugar comum (loci), e que por isso mesmo dispensaria uma definição mais precisa, até para facilitar sua adequada e eficiente aplicação (FERRAZ JUNIOR, 1995, p. 10).

A aventada dificuldade em definir o interesse público também não escapou à aguçada lente do administrativista espanhol Jaime RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, atribuindo-lhe, dentre outras particularidades, ao fato de estar visceralmente ligado à realidade, não existindo a sua margem ou dela afastado. O interesse público restaria descortinado e projetado a partir da sua operação de materialização, precipuamente promovida pela Administração Pública. Mas isso não equivale dizer, por outro lado, que não existam parâmetros de aferição racional e normativa do interesse público, que reside atualmente “no marco dos princípios informadores do Estado social e democrático de Direito” (RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ , 2010, p. 42).

Neste contexto, algumas questões assumem capital relevância, merecendo uma abordagem mais detida (ainda que não exaustiva, ante os limites do presente ensaio!): O interesse público pode ser considerado um conceito universal? Quem pode legitimamente definir o que seja o interesse público? A quem compete aplicar tais definições e determinar o seu conteúdo e abrangência? E quais os limites ao controle judicial acerca do conteúdo do interesse público concretamente aplicado[18]?

A noção de interesse público, com esta ou outra designação[19] (bem comum[20], interesse geral[21]), sempre acompanhou a civilização humana. Esse é o entendimento de RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, para quem desde sempre os homens têm se organizado para questões de interesses comuns, quer locais, quer gerais; quer na defesa de interesses de coletividades profissionais, quer para gerir ou administrar interesses supraindividuais em geral (RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ , 2010, p. 35).

Por outro lado, ainda que se possa buscar a construção de uma noção de interesse público já na Antiguidade (sobretudo a partir da idéia de bem comum), não se pode negar que a sua acentuada centralidade ocorre a partir do advento da Modernidade, associada às construções dos ideais do Estado de direito, da separação de poderes, dos conceitos de interesses individuais (privados) e coletivos (públicos), em meio ao substrato político e filosófico do qual germinou o próprio Direito Administrativo moderno[22].

Questão de inequívoca pertinência refere-se ao debate em torno do suposto caráter de validade universal do conceito de interesse público, que ostentaria uma noção geral e abstrata da qual seria possível extrair uma idéia de seu conteúdo e significação (RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, 2010, p. 36). Sobre o tema, cabe recordar o escólio do jurista Dalmo de Abreu DALLARI, que há mais de duas décadas atrás defendia a impossibilidade de uma “consideração genérica, prévia e universalmente válida do que seja o interesse público, revelando-se inevitável a avaliação pragmática do que é interesse público. Em cada situação será indispensável fazer a verificação, uma vez que não há um interesse público válido universalmente” (DALLARI, 1987, p. 15).

Nada obstante, e partindo de uma concepção estritamente normativa de universalização, seria possível defender a idéia de um caráter universal do conceito de interesse público, com base, por exemplo, em pautas assecuratórias do primado dos direitos humanos, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A universalidade do conceito de interesse público passaria, necessariamente, pelo reconhecimento da primazia dos direitos fundamentais, valores que devem ser colocados acima de quaisquer interesses ocasionais, acima de quaisquer governos, governantes, Estados e das próprias pessoas as quais se pretende defender.

Mas a idéia de universalidade do conceito de interesse público não ilide a problemática relacionada à definição do seu conteúdo e significação. Partindo-se da premissa de que em um Estado constitucional de direito vigora o primado da Constituição como norma fundamental do sistema jurídico-político do Estado, não se pode conceber outro espaço legítimo de concretização dos valores e interesses aceitos como válidos em uma dada sociedade política, que não primeiramente a Constituição.

Em diversos casos, inclusive, a própria ordem constitucional define, expressamente, a preponderância de determinado interesse sobre os demais (quer públicos, quer privados), como ocorre, v. g., no caso do artigo 5º, XXIV da Constituição de 1988, que prevê a possibilidade de “desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro”, submetendo o interesse privado (individual) ao interesse público (coletividade). Em outras situações, a Constituição acaba por prever uma ordem limitadora de um determinado direito ou interesse, mas transfere ao legislador ordinário a atribuição de estabelecer os contornos da referida limitação. Isso ocorre, v. g., quando o artigo 5º, XXIII da Constituição de 1988 determina que “a propriedade atenderá a sua função social”, sendo que o seu artigo 186 estabelece os requisitos pelos quais restaria cumprida a aludida função social da propriedade, mas deixa para a lei ordinária a fixação dos respectivos critérios e graus de exigência.

Quando a Constituição estabelece uma relação de prevalência de determinado direito ou interesse, não se pode admitir como legítima outra interpretação que não aquela comprometida com a supremacia constitucional. Da mesma forma, ressalvados os casos de vícios de inconstitucionalidade, há que se reconhecer a prevalência das escolhas políticas do órgão legislativo, sob pena, inclusive, de grave ofensa ao princípio democrático e ao primado da legalidade.

Mas o certo é que, tanto no caso da ausência de parâmetros normativos definitivos, bem como pela própria complexidade e acirrada disputa entre direitos e interesses que povoam uma ordem constitucional aberta e plural, compete à Administração Pública a função de concretização dos conteúdos, a definição política dos limites e abrangências dos direitos e interesses assegurados pela Constituição e pelas leis. Não a partir de qualquer parâmetro vago e irracional de supremacia do interesse público, mas sim com base em modernas técnicas e critérios de ponderação dos interesses em jogo (justificadas por uma sólida teoria da argumentação jurídica), levando em consideração as circunstâncias e peculiaridades da situação concreta.

Isso acarreta não somente o afastamento de uma justificação a priori das escolhas político-administrativas, com base em um totêmico parâmetro (vazio e incontrolável) de supremacia do interesse público, mas impõe também a obrigação da Administração Pública declinar todas as razões e justificativas de suas escolhas – o que antes vinha acobertado por um arremedo de justificação, baseado nas (tão famosas quanto ocas!) “razões de interesse público”.

A superação da noção de supremacia do interesse público favorece e torna mais efetivo, inclusive, o próprio controle jurisdicional da atividade administrativa, uma vez que impõe ao juiz (guardião da Constituição e das leis) o dever de perquirir acerca da conformação constitucional ou legal das escolhas da Administração Pública, mas agora com base em efetivas justificativas e motivações e não limitado ao quase intransponível dogma da prevalência prima facie do interesse público.

Segundo o pensamento de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, o “interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 51).

Aprofundando o debate, Marçal JUSTEN FILHO propõe uma conceituação negativa de interesse público, ou seja, a partir daquilo que não configura o conceito ou com ele se confunde, a fim de chegar àquilo que poderia ser assim definido. Primeiramente, defende que o interesse público não se confunde com o interesse do Estado, já que este é sim instrumento de realização daquele. O interesse público sequer é essencialmente de titularidade do Estado, já que existem interesses públicos não estatais, como o caso do chamado terceiro setor. Por outro lado, sob as balizas de uma Constituição republicana e democrática como a nossa, não se pode entender o Estado senão como instrumento de satisfação dos interesses públicos, ou seja, a consecução dos direitos fundamentais, instância última de legitimação da própria estrutura estatal (JUSTEN FILHO, 2005, p. 37).

Da mesma forma, “nenhum ‘interesse público’ se configura como ‘conveniência egoística da administração pública’”, já que o chamado interesse secundário ou interesse da Administração Pública não é público, sendo sequer verdadeiro interesse, mas mera conveniência circunstancial. Nem se confunde com os interesses do agente público, que deve pautar suas ações segundo os interesses da coletividade abstratamente considerada, e não interesses privados e egoísticos. O Estado “somente está legitimado a atuar para realizar o bem comum e a satisfação geral” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 39).

O interesse público também não pode, por certo, ser qualificado como o interesse da maioria da população, o que afrontaria sobremaneira ao princípio do Estado democrático de direito, destruindo e marginalizando os interesses das minorias, em uma perigosa supremacia ou ditadura dos interesses da maioria, esta quase sempre eventual, sazonal e manipulável.

O interesse público (um conceito jurídico indeterminado[23]) não pode ser resumido a uma questão numérica, sob pena de afronta direta e extremamente perigosa ao princípio do Estado democrático de direito. Não se trata de um conceito quantitativo, mas sim qualitativo, devendo ser entendido como o interesse coletivo abstratamente considerado, a partir dos valores consolidados pelo sistema constitucional.

O interesse público é a expressão dos valores indisponíveis e inarredáveis assegurados pela Constituição, sob o signo inarredável dos direitos fundamentais e da centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana (personalização da ordem constitucional). Não se deve, pois, buscar o interesse público (singular), mas os interesses públicos consagrados no texto constitucional, que inclusive podem se apresentar conflitantes na conformação do caso concreto, o que exige necessariamente uma ponderação de valores, a fim que resolver o conflito entre princípios no problema prático[24].

Com inteira razão, portanto, está JUSTEN FILHO quando defende que o conceito de interesse público envolve uma questão ética e não técnica. “Há demandas diretamente relacionadas à realização de princípios e valores fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana... O ponto fundamental é a questão ética, a configuração de um direito fundamental. Ou seja, o núcleo do direito administrativo não reside no interesse público, mas nos direitos fundamentais” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 43-44).

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Para um conceito de interesse público no Estado Constitucional de Direito:: algumas considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4454, 11 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42480. Acesso em: 25 abr. 2024.

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