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Para um conceito de interesse público no Estado Constitucional de Direito:

algumas considerações

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4. HÁ FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL AO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO?

A relevância do delineamento dos contornos do regime jurídico administrativo[25] (conjunto ordenado e coerente de normas jurídicas) mostra-se inegável, porquanto afeto à conformação do Direito Administrativo enquanto disciplina jurídica autônoma. Enfrentando essa problemática, e partido da matriz publicista ao qual o Direito Administrativo está visceralmente ligado, o administrativista BANDEIRA DE MELLO defende que tal regime estaria fundado na “consagração de dois princípios: a) supremacia do interesse público sobre o privado; b) indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 45).

No mesmo quadrante, a professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO sustenta que o regime administrativo resume-se basicamente a duas idéias-chave: prerrogativas e sujeições. O Direito Administrativo gravitaria em torno da oposição bipolar das idéias de liberdade do indivíduo e autoridade da Administração, resultando a esta um conjunto de restrições e prerrogativas. As restrições serviriam para assegurar a liberdade do indivíduo, a partir da obediência ao princípio da legalidade administrativa. As prerrogativas e privilégios da Administração garantiriam a autoridade necessária à consecução de seus fins, sob o pálio do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular[26].

Retomando o escólio do professor BANDEIRA DE MELLO, o princípio da supremacia do interesse público é qualificado como “verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público”, que sustenta a “superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último”[27].

Mas adverte o renomado administrativista que as prerrogativas e privilégios decorrentes da supremacia do interesse público somente podem ser empregados na exata consecução do interesse público. Não para satisfazer interesses ou conveniências do aparelho estatal ou dos seus agentes, o que tornaria ilegítima a atividade administrativa. Impõe-se, pois, a diferenciação entre interesses públicos primários e interesses públicos secundários, a partir da doutrina do administrativista italiano Renato ALESSI. Os interesses públicos não podem ser confundidos com os interesses do Estado, do aparelho da Administração burocrática ou do erário, sendo que “os interesse secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos” (ALESSI apud BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 58-64).

A tese que funda o regime jurídico administrativo sob o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, muito embora correntemente aceita e difundida, não parece sustentável se submetida aos vetores basilares da Constituição de 1988, sobretudo a partir do primado da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

Cabe, primeiramente, atentar para o fato de que a qualificação do princípio da supremacia do interesse público como “verdadeiro axioma” do moderno Direito Público não está imune a críticas. Se entendida a idéia de axioma como uma proposição normativa autoevidente e aceita por todos, inclusive não sujeita ao debate jurídico ou qualquer tipo de argumentação demonstrativa, a única forma de aceitar a validade de tal doutrina seria a existência de um princípio constitucional expresso, o que não ocorre na nossa ordem constitucional.

Malgrado a inexistência de um princípio expresso que assegure a supremacia do interesse público, poder-se-ia defender o seu status constitucional como um princípio implícito, decorrente da própria ordem jurídico constitucional, mas já não mais sob a qualificação de “axioma”. Esta empreitada é assumida pelo administrativista Fábio Medina OSÓRIO, para quem o princípio implícito da supremacia do interesse público resta assentado na existência de uma série de dispositivos constitucional que protegem inúmeros bens coletivos e restringem direitos individuais, o que legitimaria o regime de normas de privilégio conferido à Administração Pública para a consecução de seus fins (OSÓRIO, 2000, p. 87 e ss.).

Nada obstante a sofisticada argumentação, não parece que seja possível extrair da Constituição um princípio que assegure (prima facie) a supremacia do interesse público. Ademais, não se pode admitir como válida a tese de que o conjunto de prerrogativas (ou, por vezes, verdadeiros privilégios!) da Administração Pública possa ser, a priori, legitimado a partir da idéia de supremacia do interesse público, uma vez que dependerá sim do conjunto de valores e princípios constitucionais em jogo, a partir dos métodos e critérios consagrados pela hermenêutica constitucional contemporânea.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A admissão da existência de um princípio constitucional que assegure prima facie a prevalência absoluta (supremacia) do interesse público sobre o privado acaba por subverter a própria noção de princípios constitucionais, enquanto mandamentos de otimização que apontam para um determinado fim a ser alcançado. A noção de princípios constitucionais é totalmente inconciliável com qualquer idéia de um princípio absoluto, capaz de prevalecer (a priori) sobre os demais, independentemente das circunstâncias fáticas e jurídicas relacionadas.

Afastado o princípio da supremacia do interesse público como a “medida de todas as coisas” e o parâmetro capital de legitimação da atividade administrativa, verdadeira norma estruturante do regime jurídico administrativo, convém repensar os contornos e pressupostos do novo regime jurídico administrativo, nascido do deslocamento do foco de prevalência preponderantemente fixado no Estado, para a pessoa (cidadão) e a satisfação de seus interesses (públicos e privados).

O novo regime jurídico administrativo, marcado por essa matriz constitucional de personalização e prevalência dos direitos fundamentais, deve ser assentado no princípio da dignidade da pessoa humana, no Estado democrático de direito[28] e no princípio republicano[29], a partir de um processo de constitucionalização do Direito Administrativo e humanização (personalização) de seus contornos. No entrelaçamento dos princípios republicano, do Estado democrático de direito e da dignidade da pessoa humana, estão as bases para se repensar os contornos, limites e pressupostos de um novo regime jurídico administrativo, passando do tradicional “axioma” da supremacia do interesse público para o constitucionalizado parâmetro da ponderação de interesses[30].

A construção desse novo regime jurídico administrativo seguramente reclamará uma profunda reestruturação de diversos institutos e teorias que fundam a disciplina jurídico-administrativa, agora profundamente colonizada pela ordem constitucional. O conceito de interesse público passa, inequivocamente, pela carta de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela teoria da ponderação de interesses, em tudo marcados pelo deslocamento da centralidade do debate jurídico do Estado para a pessoa humana!


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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. Para um conceito de interesse público no Estado Constitucional de Direito:: algumas considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4454, 11 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42480. Acesso em: 22 dez. 2024.

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