Por força do disposto no art. 164 da Lei de Execução Penal, após transitar em julgado a sentença penal condenatória que tenha aplicado pena de multa, dela será extraída certidão, valendo esta como título executivo judicial.[1]
A Lei n. 9.268, de 1º de abril de 1996, deu nova redação ao art. 51 do Código Penal, e desde então a pena de multa passou a ser considerada dívida de valor, para fins de execução. Mesmo assim, a multa imposta pelo juízo criminal não perdeu sua natureza jurídica de sanção penal. “A reforma promovida pelo legislador não alterou a substância jurídica ostentada pela multa que permanece na esfera repressiva penal. O legislador procurou apenas esclarecer que a pena de multa deverá ser considerada como dívida de valor, obedecendo em consequência as disposições contidas na Lei n. 6.830/80”.[2]
Disso decorre que, mesmo depois de cumprida a pena privativa de liberdade ou a restritiva de direitos aplicada em substituição, se pendente de pagamento a pena de multa cumulativamente imposta, não é juridicamente possível a extinção desta última sem que ocorra a regular satisfação do débito ou outra causa de extinção da punibilidade.
Não é ocioso enfatizar que a pena de multa será considerada dívida de valor apenas para fins de execução; para o propósito de definir a escolha do procedimento execucional incidente. Apenas isso.
Embora dividida por algum tempo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado repetidas vezes no sentido acima apontado, a definir que “A nova redação do art. 51 do CP não apenas proibiu a conversão da pena de multa em detenção, no caso de inadimplemento, considerando-a dívida de valor, mas também determinou a aplicação da legislação pertinente à dívida ativa da Fazenda Pública. Não havendo o pagamento espontâneo, caberá à Fazenda Pública a execução da multa, o que, todavia, não lhe retira o caráter punitivo. Somente se extingue o processo de execução criminal após o efetivo cumprimento da pena imposta, incluída a multa, salvo se sobrevier alguma causa extintiva da punibilidade, na forma do art. 107 do Código Penal”.[3]
Esse também é o entendimento que prevalece na maioria das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo, a apontar que “O fato da multa sancionatória não quitada ser convertida em certidão da dívida ativa, não lhe retira a intrínseca natureza penal, motivo pelo qual, impossível declarar a extinção integral da punibilidade sem o adimplemento da importância devida”.[4] “Desse modo, não havendo, na lei, exclusão do caráter penal da multa, uma vez que a competência funcional para a sua execução não lhe determina a natureza, é inexorável que o pagamento da multa é conditio sine qua non para o cumprimento integral da pena e para a extinção do processo de execução penal”.[5]
Em sentido contrário, por ocasião do julgamento do REsp 1.519.777/SP, ocorrido no dia 26 de agosto de 2015, de que foi relator o Min. Rogério Schietti Cruz, a Terceira Seção pacificou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito do assunto, e passou a entender que: “Extinta pelo seu cumprimento a pena privativa de liberdade ou a restritiva de direitos que a substituir, o inadimplemento da pena de multa não obsta a extinção da punibilidade do apenado, porquanto, após a nova redação dada ao art. 51 do Código Penal pela Lei n. 9.268/1996, a pena pecuniária passou a ser considerada dívida de valor e, portanto, possui caráter extrapenal, de modo que sua execução é de competência exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública”.[6]
Ousamos divergir de tal posicionamento, visto ser indiscutível que a pena de multa é pena de natureza criminal, assim estabelecida na Constituição Federal (art. 5º, XLVI, c); na Parte Geral do Código Penal (art. 32, III), e cominada em preceitos secundários de tipos penais incriminadores, não sendo razoável admitir que, enquanto abstratamente prevista disponha dessa natureza jurídica e, depois de aplicada, seja transfigurada em algo diverso. Admitir tal raciocínio implicaria aceitar que: prevista para ser aplicada como pena criminal, deixaria de ser assim considerada exatamente em razão de sua aplicação. Ausente, aqui, a necessária lógica.
O raciocínio adotado leva, inclusive, à seguinte situação, inusitada e inaceitável: diante de processo criminal instaurado contra pessoa comprovadamente pobre, julgada procedente a ação penal e aplicada tão somente pena de multa, de pronto poderá o juiz julgá-la extinta. E mais: sabendo que diante de fato determinado a pena de multa será a única aplicada em caso de condenação, tornar-se-á discutível a existência de interesse processual e justa causa para movimentar a máquina judiciária com vistas à aplicação de algo que não se considere pena criminal.
Em outro extremo: o mesmo instituto será considerado pena criminal em relação ao condenado em condições de saldá-la, e medida de caráter extrapenal em relação ao economicamente hipossuficiente, o que por si já evidencia grave e intransponível problema.
Embora “considerada” dívida de valor para fins de execução, certo é que a pena de multa não perdeu sua natureza jurídica – definida de maneira superior na Constituição Federal –; não se transfigurou; continua a ser pena criminal, e sua extinção permanece condicionada à integral satisfação do débito ou outra causa de extinção da punibilidade.
Tanto isso é exato que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reafirmou a natureza jurídica do instituto – pena criminal – conforme se verifica em: STF, EP 12 ProgReg-AgR/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Roberto Barroso, j. 8-4-2015, DJe n. 111, de 11-6-2015; STF, EP 16 ProgReg-AgR/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Roberto Barroso, j. 15-4-2015, DJe n. 093, de 20-5-2015.
Resta aguardar que o Colendo Superior Tribunal de Justiça proceda à necessária revisão e modifique seu posicionamento.
Notas
[1] Renato Marcão, Curso de Execução Penal, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2015; Execução Penal – Coleção Saberes do Direito, v. 9, São Paulo, Saraiva; e Lei de Execução Penal Anotada, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2014.
[2] TJSP, Ag. 233.376/3, 2ª CCrim., rel. Des. Egydio de Carvalho, j. 5-5-2003.
[3] STJ, REsp 845.902/RS, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 22-5-2007, DJ de 6-8-2007, LEXSTJ 218/381.
[4] TJSP, AE 0053988-48.2014, 7ª CCrim., rel. Des. J. Martins, j. 30-10-2014.
[5] TJSP, AE 0014469-32.2015.8.26.0000/São Paulo, 13ª CCrim., rel. Des. Cardoso Perpétuo, j. 28-5-2015. No mesmo sentido: TJSP, AE 0182885-02.2011.8.26.0000, 3ª CCrim., rel. Des. Geraldo Wohlers, j. 13-12-2011; TJSP, AE 0063413-07.2011.8.26.0000, 4ª CCrim., rel. Des. Salles de Abreu, j. 23-8-2011; TJSP, AE 0066806-32.2014.8.26.0000, 6ª CCrim., rel. Des. Machado de Andrade, j. 27-11-2014; TJSP, AE 0059972-13.2014.8.26.0000, 8ª CCrim., rel. Des. Alcides Malossi Junior, j. 6-11-2014.
[6] STJ, REsp 1.519.777/SP, Terceira Seção, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 26-8-2015, DJe de 10-9-2015.