Em regra, a função do Estado é uma só: assegurar o bem comum. Assim entendido, nos dizeres do Papa João XXIII (2015, p. 04) em sua carta encíclica Mater et Magistra, como sendo a promoção “do conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”. Sendo um ente moral e fruto do poder soberano, se seu objeto não fosse esse, essa instituição não teria razão de ser.
A desigualdade social brasileira, em sua maior parte, deriva de um processo histórico que durante muito tempo privilegiou poucos em detrimento de muitos. Durante todo o período monárquico, o Brasil foi palco de ações que culminaram em nossa atual realidade. A monopolização dos bens de produção, a concentração de renda, o latifúndio e a excessiva população escravizada, fizeram desta terra, no que diz respeito a situação social, um grande “feudo”, onde os “suseranos” e “vassalos” esbanjavam toda a riqueza que era produzida pelos braços dos “servos e camponeses”, enquanto esses, por sua vez, viviam em uma situação miserável.
A partir da lei do ventre livre e logo após a lei áurea, a escravidão teve fim, fazendo com que um enorme contingente de “ex-escravos” saísse da degradação à incerteza, pois não possuíam perspectivas. O preconceito, até mesmo por parte do Estado, levou o povo escravizado à marginalização, ao abandono e à exclusão.
Após a ruptura com Portugal, especialmente após a proclamação da república, o Estado brasileiro teve início, de fato e de direito. Agora, governava-se em prol do nosso desenvolvimento e não da metrópole. Mas, o que fazer com todas as desigualdades e injustiças causadas pela colônia? Esse é o problema que o Estado tem buscado solucionar desde então.
Atualmente, a Constituição Federal, especialmente em seu artigo 3º, é explícita ao classificar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a promoção do bem comum, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais como objetivos fundamentais do Estado. Ou seja, de direito, essas finalidades estão em pauta, porém, de fato, as ações e o planejamento de políticas públicas para o alcance desses fins são ineficientes e, em muitos casos, inexistentes.
Considerando o fato de que a República Federativa do Brasil é constituída na forma de Estado Democrático de Direito, sendo a Constituição Federal seu ato constitutivo, as ações de Estado e de governo devem observar a todos os termos por ela instituídos, de modo que as faltas ou excessos cometidos em razão da inobservância de seus princípios constituem agressões à ordem pública e constitucional.
Diante disso, atendo-se apenas ao que diz respeito à responsabilidade do Estado frente a situação socioeconômica da população e, portanto, alheios às demais anomalias desse ente político, pode-se afirmar com clareza que a garantia da igualdade dos indivíduos apenas no plano formal é insuficiente. É preciso que todos os direitos e condições assegurados pela Carta Cidadã no intuito de garantir a igualdade entre os indivíduos sejam efetuados no plano material, de modo que, nesse sentido, as negligências às determinações do artigo 3º e dos demais artigos protetores da igualdade e da dignidade humana configuram ato inconstitucional do chefe de Estado, sujeitando-o à responsabilização nos termos da Carta Política e da legislação infraconstitucional por ato de improbidade administrativa, independentemente da causa, seja ela por prevaricação, abuso de autoridade, corrupção ou meramente por inépcia funcional.
Nesse sentido, analisando esse fenômeno, o cientista político Dalmo de Abreu Dallari (2011, p. 107) disserta em sua obra que:
... Não basta assegurar a todos a igualdade jurídica, no sentido da igualdade perante a lei, ou do gozo idêntico dos direitos civis e políticos, bem como da igualdade de participação nos ônus públicos. É indispensável, além disso tudo, garantir a igualdade de todos os indivíduos nas condições iniciais de vida social.
A desigualdade social, na proporção em que vemos hoje, é fruto de um Estado que, há muito tempo, se omite de seus deveres jurídicos, teleológicos e deontológicos. Somos uma das maiores economias do mundo, e, ao mesmo tempo, um dos piores países no que diz respeito a distribuição de renda.
Essa realidade é gritante e se apresenta com facilidade a quem quiser percebê-la, sobretudo nas grandes cidades. Helicópteros, carros importados, prédios luxuosos, contrastam ao lado de favelas, barracos, casebres, e mais um exército de desabrigados, miseráveis e marginalizados. A desigualdade está clara a quem quiser olhar.
O Estado brasileiro está sonolento e precisa acordar. Precisa assumir sua condição de gestor da felicidade geral e do desenvolvimento público, atuando de forma proativa na promoção de uma educação mais formadora e menos autômata ou meramente formalista; no incentivo de uma cultura centrada no conhecimento, no respeito, na tolerância, no bem-estar, na solidariedade e no desenvolvimento; num modelo de distribuição de renda focado no trabalho e na equalização econômica entre as diversas regiões do país, através do incentivo à livre iniciativa, da instituição de um salário mínimo capaz de atender a todas as necessidades fixadas no artigo 7º, IV, da Constituição Federal, e do combate à inflação e dos altos juros; no oferecimento de serviços de saúde capazes de assegurar o direito à vida ou, ao menos, a dignidade da pessoa humana; na efetivação de uma segurança pública que viabilize a liberdade de todos, tornando o cidadão menos refém da criminalidade; no oferecimento de um serviço de transporte público cuja qualidade incentive o uso por mais cidadãos, e não somente por aqueles que não possuem outra alternativa, diminuindo o caos do trânsito das grandes cidades; enfim, no oferecimento de serviços públicos que atendam ao princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Lei Maior, acabando com a atual situação de incompetência, descaso e abandono gerencial, que causa tanto sofrimento ao cidadão.
Os deveres da administração pública, exemplificativamente apresentados acima, podem parecer utopia, mas, se comparados à carga tributária do país e à arrecadação pública, justificada pela necessidade de sua atividade financeira, que, por sua vez, se explica em razão de suas funções e finalidades de todas as ordens, pode-se concluir com facilidade que é possível o Estado investir em bem-estar social de forma eficiente.
Desse modo, o direito tributário, sobretudo quando analisado a partir de sua natureza de direito público, está intimamente ligado à efetivação dos objetivos fundamentais da república, uma vez que a redução das desigualdades, o oferecimento de serviços públicos de qualidade compatível à situação econômica do país, a construção de uma sociedade justa, o desenvolvimento integral da personalidade dos indivíduos, enfim, a promoção da qualidade de vida e do bem-estar da nação como um todo, dependem diretamente da correta atuação estatal, que, por sua vez, necessita fundamentalmente aplicar os recursos que arrecada já com essa finalidade. Essa conclusão se resume no princípio da destinação dos recursos públicos ou princípio da retributividade tributária.
Trata-se de um princípio implícito na Constituição Federal e estudado por raríssimos doutrinadores. Alguns estudiosos atribuem a ocorrência do princípio da retributividade apenas em relação aos tributos vinculados, como as taxas e as contribuições. Entretanto, existe uma corrente de juristas que defendem que todo tributo, independentemente de sua espécie, deve ser retribuído em bens e serviços à sociedade, visando o bem-estar geral. Em relação às mencionadas espécies tributárias, aquelas são regidas pelo princípio da contraprestação ou reciprocidade, uma vez que sua arrecadação é vinculada a uma contraprestação pré-definida em lei.
Seguindo esse entendimento, Joaquim José Gomes Canotilho (2010, p. 22), ao tecer uma crítica ao errôneo método de aplicação do dinheiro público pelos governos, que dificulta a concretização dos direitos constitucionais, afirma que “as políticas públicas optam por encaminhar os dinheiros públicos para grandes investimentos infraestruturantes (aeroportos, vias férreas, autoestradas) em vez de os desonerar para os serviços garantidores da efetivação de direitos sociais. ”
Nesse mesmo sentido, a advogada e jurista Betina Treiger Grupenmacher (2006, p. 102), fundamentando-se no princípio da destinação dos recursos públicos sustentado por Ricardo Lobo Torres, discorre que:
A vinculação entre o Direito Tributário e os Direitos Fundamentais é uma tendência da doutrina contemporânea, que se consolida a partir da conscientização de que a tributação existe como forma de realização da justiça social, sendo um importante instrumento para que se alcance o propósito de uma vida digna para todos.
Sendo assim, de acordo com Torres (2008, p. 121-122, ) todo o produto da arrecadação tributária “deve se destinar exclusivamente a atender às necessidades públicas”, de modo que o Estado deve observar as necessidades socioeconômicas do povo, bem como a supremacia do interesse público.
Em decorrência disso, Canotilho (2010, p. 27) argumenta que a destinação das disposições financeiras do Estado não pode ser definida ao bel prazer do administrador público, devendo este promover o desenvolvimento social de forma progressiva e proporcional ao PIB e à arrecadação.
Entretanto, ao contrário do que foi descrito, a realidade nos apresenta uma situação diferente. O dinheiro público tem sido gerido e aplicado em total disparidade com o interesse público. O pouco investimento em infraestrutura é realizado muito mais com fins políticos e/ou eleitorais do que em observância às necessidades coletivas e a dignidade individual. Os tributos, inclusive os vinculados, em alguns casos, não têm sido retribuídos à população de forma proporcional, tampouco eficiente. E isso reflete diretamente na qualidade dos serviços públicos ofertados e, portanto, na felicidade geral.
De acordo com o advogado e professor Nelson Lopes de Figueiredo (2012, p. 121-122), tais fatos são oriundos das mais variadas modalidades de improbidade administrativa, tais como “a malversação e o desvio de recursos, a corrupção, a concussão, o peculato e outros delitos lesivos ao patrimônio público”, sendo que:
Com destaque negativo entre os demais, a corrupção é, sem sombra de dúvida, um dos maiores males que comprometem a atuação estatal, sendo responsável pela carência ou pelo menos o agravamento da pobreza de cidades e regiões inteiras. Quanto ao país, a corrupção prejudica gravemente o desempenho econômico nacional na medida em que afeta as decisões de investimentos, compromete o crescimento econômico, altera artificiosa e negativamente a composição dos gastos governamentais, abala a legitimidade dos governos e enfraquece a legitimidade do Estado. A corrupção está relacionada, portanto, direta e indiretamente, com a propagação da criminalidade, do desemprego, dos déficits na educação e na saúde e com o subdesenvolvimento econômico.
Traduzindo nossa realidade, não há fidelidade aos princípios constitucionais por parte dos governos, tampouco aos princípios dogmáticos da República, do Estado, da Democracia e do Direito. Desembolsa-se muito, mas realiza-se muito pouco. Gasta-se mais do que se arrecada, e sem nenhuma observância ao bem-estar social ou às normas de bem comum. Há um real esforço por parte do Estado em negar direitos ao cidadão em prol de seus interesses financeiros, sob o uso tão demasiado do princípio da reserva do possível que beira a litigância de má-fé. A supremacia do interesse público, admitida por toda a doutrina nacional, é desrespeitada em todos os aspectos, demonstrando a fragilidade das bases do Estado social e do regime democrático brasileiro.
O que se pretende demonstrar é que, observando o montante geral arrecadado, o importante não é o quanto é gasto de dinheiro público, mas sim, como é gasto. As necessidades da nação, sobretudo as dos mais pobres, devem ser consideradas na escolha da destinação dos recursos. Quando se fala em contrapartida tributária, há de se pensar no bem-estar da sociedade como um todo. Há de se observar o interesse público, tendo em vista a sua supremacia, e há de se observar o princípio da retributividade por dever e por legitimidade.
Em conclusão, reafirma-se a real possibilidade de a administração pública promover a redução das desigualdades através da realização de políticas públicas voltadas a esse fim e fomentadas pelos tributos arrecadados, mas, antes disso, tendo em vista a postura dissimulada dos governos, observados, pelo menos, desde a promulgação da Constituição de 88, é necessária a implementação de políticas voltadas a redução da corrupção e inépcia funcional dos gestores desse país, pois são elas as grandes causadoras de todas as negligências do Estado e é o que deve ser debatido antes de tudo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais Sociais. 1ª Edição. São Paulo, SP: Saraiva, 2010.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 30ª Edição. São Paulo, SP: Saraiva, 2011.
FIGUEIREDO, Nelson Lopes. O Estado Infrator. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2012.
JÚNIOR, Valter Peixoto da Silva. O Estado e a Gestão dos Recursos Públicos à Luz do Princípio da Retributividade Tributária. Monografia Jurídica apresentada à disciplina Trabalho de Curso II do bacharelado em Direito da Escola de Direito e Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GOIÁS). Goiânia, GO: 2015.
PAPA JOÃO XXIII. Mater et Magistra. 13ª Edição. São Paulo, SP: Paulinas, 2010.
PIRES, Adilson Rodrigues; TORRES, Heleno Taveira. Princípios de Direito Financeiro e Tributário. 1ª Edição. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2006.