O homem entregou ao estado parcela de sua liberdade para viver em sociedade. Conforme preconiza BECCARIA[i] (2014, pg.17), “Pois, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era preciso para induzir os demais a defende-lo”.
Partindo-se desse pressuposto, a liberdade é a regra. Nenhuma interpretação deve ser realizada de forma a diminuir a liberdade do ser humano. Toda vedação ao direito à liberdade passa por uma rigorosa análise de princípios humanos, fundamentais e compatibilidade com normas constitucionais e internacionais.
A liberdade é direito assegurado pela Constituição Federal, previsto desde o preâmbulo até artigo 5º caput, incisos LIV, LXVI, LXVIII e artigo 227, dentre outros. Ainda, está prevista no artigo 9º do Pacto de Direitos Civis e Políticos e 7º do Pacto de San Jose da Costa Rica. A privação da liberdade é sempre medida excepcional.
Praticado um crime cuja condenação resulta em privação da liberdade do homem, diversos institutos em execução penal são utilizados para que sua reintegração à comunidade seja realizada de forma gradativa.
O sistema de progressões lato sensu possui como espécie a progressão de regime e o livramento condicional. Com isso, o livramento condicional não é fase de progressão da pena, mas faz parte do sistema de progressões.
A exposição de motivos da Parte Geral de origem do Código Penal de 1940 dispõe que: “O livramento condicional é restituído à sua verdadeira função. Faz ele parte de um sistema penitenciário (sistema progressivo) que é incompatível com as penas de curta duração”.
O livramento condicional é a concessão de saída antecipada da privação de liberdade. É direito subjetivo previsto no Código Penal. É instituto de individualização da pena.
Para FOUCAULT[ii] (2010, p.255/256) o princípio da modulação das penas, seria uma das sete máximas universais da boa ‘condição penitenciária’ há quase 150 (cento e cinquenta) anos: “(...) Sendo o objetivo principal da pena a reforma do culpado, seria desejável que se pudesse soltar qualquer condenado quando sua regeneração moral estivesse suficientemente garantida (Ch. Lucas, 1836). [1945]: É aplicado um regime progressivo... com vistas a adaptar o tratamento do prisioneiro à sua atitude e ao seu grau de regeneração. Este regime vai da colocação em cela à semiliberdade... O benefício da liberdade condicional é estendido a todas as penas temporárias (Princípio da modulação das penas)”.
A legislação pátria adota o sistema progressivo. O código Penal de 1940, já previa a progressão de penas em seus artigos, bem como previa que o livramento condicional era possível ao condenado e detenção ou reclusão superior a três anos se preenchido requisitos objetivo e subjetivo, exigido o bom comportamento e ausência ou cessação de periculosidade. A Lei 6.416 de 1977, que alterou o Código Penal ampliou alguns direitos da pessoa privada de liberdade e ressaltou a progressão de regimes e limitou a revogação do livramento condicional nos casos em que houver nova condenação irrecorrível a pena privativa de liberdade. A lei 7.209/84, que modificou a parte geral do Código Penal, disciplinou o sistema progressivo de execução de pena de acordo com o mérito do sentenciado condenado, afastou a necessidade de prévia análise do Conselho Penitenciário para a concessão do livramento condicional e passou a exigir como requisito subjetivo apenas comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto.
Nos termos do item 37 da Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, Lei 7.209, de 11 de Julho de 1984: “Sob essa ótica, a progressiva conquista da liberdade pelo mérito substitui o tempo de prisão como condicionante exclusiva da devolução da liberdade”.
Posto isso, o livramento condicional é imprescindível para cumprimento da legislação pátria. Preenchidos os requisitos objetivo e subjetivo, previstos nos artigos 83 e seguintes do Código Penal, o livramento condicional torna-se direito subjetivo do sentenciado.
O artigo 5º da lei de execução penal prevê a individualização da pena na fase de execução. A partir do momento em que se descobrem fatores peculiares de cada indivíduo, a individualização visa subsumir a pena à pessoa humana, determinando a forma, modo e regime de cumprimento de pena.
O princípio da individualização da pena vincula os poderes legislativo, judiciário e executivo. É limitador do poder punitivo estatal. Está previsto nos incisos XLVI e XLIII, do artigo 5º, da Constituição Federal.
A Constituição Federal dispõe que a lei regulará a individualização da pena. A individualização da pena, portanto, deve existir para proporcionar a harmônica integração social do condenado. Entretanto, deve existir dentro dos parâmetros principiológicos já existentes no sistema constitucional.
Lecionam SILVA e NETO [iii] (2012, pag.65) que as pessoas não são iguais e que cada um traz em si características que os individualizam e, com isso, a execução penal também não deve ser igual para todos os condenados.
O inciso V, do artigo 83, do Código Penal, com redação dada pelo artigo 5º da Lei 8.072 de 1990, bem como parágrafo único do artigo 44 da Lei 11.343/2006, vedam o livramento condicional ao reincidente específico em crimes hediondos.
Como o livramento condicional faz parte do sistema progressivo e é necessário à integração social, a reincidência específica não pode vedá-la, sob pena de se contrariar o princípio constitucional da individualização da pena e tornar o cumprimento da pena de forma equânime a todos os reincidentes específicos, mesmo que o comportamento seja diferenciado.
O artigo 7º, 2, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, afirma que “ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”.
O constituinte pátrio não estabeleceu que o condenado por delito de natureza hedionda não poderá usufruir do livramento condicional. Ao revés, previu a necessidade da individualização da pena sem nenhuma ressalva. A lei infraconstitucional não pode negar direito fundamental à liberdade quando a Constituição assim não o prevê e vedar etapa de progressão e, por decorrência, de individualização.
BARROS[iv] (2001, pg.150) leciona que “A referência feita no art.5º, inciso XLVI, da Constituição Federal à individualização da pena a torna princípio constitucionalmente assegurado e irrenunciável e que, portanto, não pode ser obstado. Ainda que regulada a individualização pela lei, a pena há de sempre ser passível de individualização, é o que determina a Constituição”.
O artigo 5º, 6, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos prevê que a finalidade essencial das penas privativas de liberdade é a reforma e a readaptação social dos condenados.
A individualização da pena existe desde a classificação para início de cumprimento de pena até o fim de uma das espécies do sistema progressivo. Do contrário, seria perpetuar regime único. A supressão de qualquer etapa pelo legislador viola diversos princípios constitucionais como o da individualização, igualdade, sistema de progressões, legalidade, dignidade da pessoa humana e humanização das penas.
O plenário do STF, em controle incidental de constitucionalidade, no HC n. 111840/ES e HC 82959/SP, declarou inconstitucional o §1º do art.2º, da lei nº 8.072/90, por contrariar o princípio da individualização da pena prevista no art. 5º, inciso XLVI da Constituição Federal.
Ademais, o Senado Federal, por meio da Resolução n. 05/2012, suspendeu a vedação à conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direito no que concerne o denominado tráfico privilegiado, também por ferir o princípio da individualização da pena.
A fundamentação é idêntica no caso de livramento condicional ao reincidente específico. Se é vedado o regime inicialmente fechado por violar a individualização da pena, com muito mais razão deve ser vedada a proibição do livramento condicional ao reincidente específico.
Explica ROIG[v] (2014) que “a proibição absoluta de livramento condicional, nesta hipótese, fere o princípio da individualização da pena, na medida em que um direito da execução vê-se obstado pela qualificação (gravidade) abstrata do delito, com o desprezo das particularidades de cada caso. Realmente soa paradoxal declarar-se (e apregoar-se doutrinariamente) a inconstitucionalidade do regime integralmente fechado – com fundamento maior no princípio da individualização da pena – e não fazê-lo em relação à vedação peremptória do livramento condicional”.
A Lei n. 11.464 de 28 de março de 2007, ao prever a possibilidade de progressão de regime para crimes hediondos, revogou tacitamente os dispositivos mencionados, uma vez que o livramento condicional também é instrumento de individualização da pena.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já apresentou decisões favoráveis, concedendo o livramento condicional ao reincidente específico, sustentando que a vedação prevista no inciso V, do artigo 83 do Código Penal é uma quebra no sistema de progressão do cumprimento da pena, afrontando a garantia constitucional da individualização da pena[1].
O Supremo Tribunal Federal ainda não enfrentou o mérito da matéria, apenas limitando-se a decidir sobre a violação ou não da cláusula de reserva de plenário, do artigo 97 da Constituição Federal, em alguns julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Destarte, patente a inconstitucionalidade e inconvencionalidade do artigo 83, inciso V, do Código Penal, bem como o parágrafo único, parte final, da Lei 11.343 de 2006, em razão da violação ao princípio da individualização, igualdade, sistema de progressões, legalidade, dignidade da pessoa humana e humanização das penas.
Possível, assim, a concessão do livramento condicional ao reincidente específico, obedecidos os requisitos objetivo e subjetivo, nos moldes fixados ao reincidente comum, até que se criem normas com proporções específicas para a percepção do estágio objetivo.
[1] HC em Processo n° 0035378-61.2013.8.19.0000; Processo único n. 0053953-20.2013.8.19.0000;
Notas e Referências:
[i] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Leme/SP: Edijur, 2014.
[ii] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. 38ª ed. RJ: Vozes, 2010.
[iii]SILVA, José Adaumir Arruda e NETO, Arthur Corrêa. Execução Penal. 2ª triagem. Manaus: Editora Aufiero, 2012.
[iv] BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
[v] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal – Teoria Crítica. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.