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O Estatuto do Desarmamento e a anistia seletivamente ignorada

12/11/2015 às 15:21
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É recalcitrante a omissão em reconhecer que o Estatuto do Desarmamento se tornou plenamente eficaz apenas em 31 de dezembro de 2009, após o prazo de anistia nele previsto e que desde então as taxas de homicídio no país não param de crescer.

Sempre que um novo estudo sobre violência homicida é publicado ou repercute no Brasil, imediatamente se busca associar os dados que nele são apresentados à nossa legislação sobre armas de fogo. Invariavelmente, os defensores das normas atuais buscam aludir a uma suposta redução de homicídios logo após a entrada em vigor da Lei nº 10.826/03, o chamado "estatuto do desarmamento", atribuindo tal fato às rígidas restrições por ele impostas. Os dados em si já são amplamente contestáveis, principalmente porque a redução não se estabeleceu uniformemente no país - o que seria o esperado para uma lei federal -, mas há outro fator que insiste em ser desconsiderado e que deixa patente a absoluta impossibilidade de vincular as taxas de homicídio de 2004 a 2009 ao estatuto.

Embora tenha sido promulgado em 23 de dezembro de 2003, contendo um conjunto de regras inegavelmente restritivas para o acesso às armas de fogo, a plena eficácia do estatuto do desarmamento não pode ser tomada junto à época de sua promulgação. Primeiro, em razão de sua regulamentação - fundamental para que passasse a ter aplicação prática - somente ter sido editada em 02 de julho de 2004, através do Decreto n° 5.123/04. Segundo, e mais importante para esta abordagem, porque sua maior restrição permaneceu suspensa por seis anos, a contar de sua vigência.

Tratava-se da necessidade de recadastramento de todas as armas de fogo em circulação no país, seguindo o regramento instituído pela então nova legislação. A disposição foi originalmente registrada no artigo 30 do estatuto, com o seguinte teor:

"Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos."

O prazo inicialmente exíguo, de 180 dias, foi de logo prorrogado, passando, já em junho de 2004, a somente ter seu início computado a partir do decreto regulamentador, conforme disposto no art. 1º da Lei nº 10.884/04:

"Art. 1º O termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da publicação do decreto que os regulamentar, não ultrapassando, para ter efeito, a data limite de 23 de junho de 2004."

Em dezembro de 2004, o prazo foi novamente prorrogado, através da Medida Provisória nº 229, de 17.12.2004, que foi convertida na Lei nº 11.118/05:

"Art. 3º Os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, com a redação dada pela Lei no 10.884, de 17 de junho de 2004, ficam prorrogados, tendo por termo final o dia 23 de junho de 2005."

Nova prorrogação foi instituída com a Medida Provisória 417/08, convertida na Lei nº 11.706/08, estendendo o prazo até 31 de dezembro de 2008, através de alteração na redação do art. 30 do estatuto:

“Art. 30.  Os possuidores e proprietários de arma de fogo de uso permitido ainda não registrada deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de proprietário, ficando este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do art. 4º desta Lei.

Parágrafo único.  Para fins do cumprimento do disposto no caput deste artigo, o proprietário de arma de fogo poderá obter, no Departamento de Polícia Federal, certificado de registro provisório, expedido na forma do § 4º do art. 5º desta Lei.” (NR)

Finalmente, com a promulgação da Lei nº 11.922, em abril de 2009, o prazo foi prorrogado pela última vez, concedendo aos proprietários de armas até o dia 31 de dezembro de 2009 para promoverem o registro daquelas que ainda não o possuíam:

"Art. 20.  Ficam prorrogados para 31 de dezembro de 2009 os prazos de que tratam o § 3º do art. 5º e o art. 30, ambos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003. "

Do que se infere da evolução legal sobre a matéria, somente ao final do ano de 2009 se tornou necessário o registro de todas as armas de fogo em circulação no país, já se submetendo à disciplina trazida no estatuto do desarmamento. Aqueles que não optaram pelo registro puderam entregar suas armas em campanhas voluntárias, passando a, caso com elas permanecessem, incidir em clandestinidade, circunstância jurídica que somente se implementou a partir de então.

Considerada essa evolução regulatória, prontamente se observa que, nos anos de 2004 a 2008, quando se aponta um menor quantitativo de homicídios no país - 48.374, 47.548, 49.145, 47.707 e 50.113, respectivamente -, o maior mecanismo  legal para a retirada de armas de circulação simplesmente ainda não estava vigente. Todos os proprietários de armas, registradas ou não, tiveram até o dia 31 de dezembro de 2009 para regularizá-las ou delas se desfazerem, até quando, justamente diante do permissivo legal, nenhuma sanção lhes podia ser imposta. Não por outra razão, o período é popularmente conhecido como o de "anistia".

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Se, durante o período compreendido por essa anistia, os homicídios tiveram queda, isso jamais pode ser atribuído ao estatuto do desarmamento, cujos efeitos, para um cômputo estatisticamente adequado, somente podem ser tomados a partir de 2010, ou seja, quando a rigidez das normas legais se perfectibilizou. No entanto, os números desde então disponíveis demonstram que a plenitude na aplicação do estatuto do desarmamento corresponde, não a qualquer decréscimo, mas a um substancial aumento nos homicídios no país.

Em 2010, foram registrados 52.260 assassinatos no Brasil, número semelhante ao de 2011 (52.198) e que, em 2012, já saltou para 56.337 - o recorde contabilizado pelo Mapa da Violência. Portanto, atribuir a variação de homicídios à vigência do estatuto do desarmamento não pode conduzir à conclusão diversa da de que, com ele plenamente eficaz, os homicídios só aumentaram - e muito. 

Afirmar que, antes de 2010, homicídios foram reduzidos com essa lei é apenas mais um erro grosseiro na sua interpretação, somente possível através do - conveniente - "esquecimento" do período de anistia legalmente estabelecido.

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Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. O Estatuto do Desarmamento e a anistia seletivamente ignorada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4516, 12 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44460. Acesso em: 4 nov. 2024.

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