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A população carcerária brasileira sob a ótica da criminologia crítica

19/11/2015 às 08:26
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Cuida-se de uma breve análise acerca do perfil geral do preso brasileiro à luz da criminologia crítica e da sociologia criminal.

O Brasil conta, hoje, com uma população carcerária de mais de meio milhão de pessoas. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em novembro de 2014, havia aproximadamente 570 mil presos, dentre os quais 308 mil seriam negros, 61,7% a mais que brancos. Desses, 75% estariam segregados por envolvimento com tráfico de drogas ou crimes patrimoniais. Hoje, a população carcerária já ultrapassou a casa das 600 mil pessoas.

São Paulo é o estado que mais encarcera negros do país. São 595 presos a cada 100 mil habitantes negros, de acordo com estudo da Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República. A taxa média do país é de 292 presos a cada 100 mil habitantes negros, o que faz o índice de negros presos ser superior ao de brancos em uma vez e meia; em São Paulo, sobe para duas vezes. Além disso, constata-se, a toda evidência, que a maioria esmagadora dos encarcerados foi acusada ou condenada por ter praticado crimes relativos a entorpecentes ou ao patrimônio, sendo composta, substancialmente, por jovens pobres. Destaque-se que os detentos, também em grande maioria, não concluíram o ensino fundamental.

A labeling approach theory, engendrada pela criminologia crítica, pode auxilar na explicação desse fenômeno prisional. Pela criminologia tradicional, em especial através da positivista e liberal clássica, o fenômeno criminológico decorreria, única e exclusivamente, de condições patológicas do agente, o qual possuiria características inerentes que o levariam à prática de determinada infração penal.

Todavia, sob a perspectiva da criminologia crítica e da labeling approach theory, a criminalidade seria um status atribuído a alguns indivíduos pertencentes às classes sociais economicamente inferiores. Tal atribuição seria levada a efeito pelas classes sociais dominantes, detentoras do poder econômico e que, lançando mão de seu prestígio social, imputariam aos pobres, negros e demais indivíduos desfavorecidos pela sociedade de consumo, a condição de marginalizados e criminalizados.

Por tais razões, a criminologia crítica entende que a prisão é, em verdade, uma necessidade do sistema capitalista, funcionando como verdadeiro sustentáculo de manutenção dessa estrutura excludente. Isso porque o sistema penal, dentro do qual se encontra a prisão, permite a manutenção e preservação do sistema social, possibilitando e fomentando as desigualdades sociais e a marginalidade. Neste contexto, o sistema penal atuaria como verdadeiro instrumento facilitador da estrutura vertical da sociedade, impedindo a integração das classes baixas e otimizando sua criminalização e estigmatização.

É de sabença elementar que a criminologia crítica não consegue explicar toda a fenomenologia criminal, uma vez que o delito também envolve aspectos individuais do agente que merecem ser levados em consideração. Não há como descurar em observar as peculiaridades que circundam a etiologia criminológica. Todavia, a contribuição da criminologia crítica, através da labeling approach theory, é indispensável para que se possa entender como o sistema penal, muitas vezes, atua. Neste sentido, os etiquetados, que são os marginalizados e criminalizados pelas classes sociais detentoras do poder econômico e que integram as altas posições nessa estrutura social vertical, passam a ser aqueles que ocupam, em quase sua totalidade, os espaços carcerários no Brasil.

Através de pesquisas empíricas, constatou-se que a população carcerária brasileira é composta, predominantemente, por jovens negros e pobres, que não tiveram acesso à educação básica, o que somente corrobora que, no Brasil, há uma tendência inexorável a encarcerar e criminalizar aqueles que em nada interessam à lógica perversa do capital, o que se constitui como um verdadeiro exercício de autoritarismo punitivista direcionado, evidentemente, aos excluídos.

O professor Alessandro Baratta, na obra "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal", busca desmistificar os elementos intrínsecos à ideologia da defesa social, segundo a qual o fenômeno criminólógico refletiria uma espécie de maniqueísmo sócio-criminal, o "nós contra eles" e o recrudescimento da figura do inimigo no direito penal, enquanto aquele que se vê despido de sua qualidade de pessoa humana, figurando como ente presumidamente perigoso. De acordo com Baratta e a criminologia crítica, o "nós" seria representado pelas classes sociais dominantes, proprietárias dos meios de produção, enquanto que o "eles" seria o espelho de uma parcela subalternizada da sociedade de consumo.

Alguns doutrinadores afirmam que o discurso da seletividade economicista do sistema penal encontra-se ultrapassado e desgastado, porquanto teríamos presenciado, na atual quadra histórica, intervenções penais em casos de criminalidade econômica, em que sujeitos que jamais figuraram como partes integrantes da "clientela" do sistema penal foram condenados criminalmente. De fato, há alguns casos isolados, entretanto, os dados são inequívocos e apontam para um hiperencarceramento de um determinado perfil de pessoas.

Não se trata de advogarmos as teses da esquerda punitiva, tão bem criticada por Maria Lúcia Karam, em que há uma aproximação temerária do famigerado Direito Penal neoliberalista, só que em bases inversas. A criminalização secundária não deve partir de nenhum estereótipo criminal, sejam os acusados ricos ou pobres, negros ou brancos. Todavia, a construção política do Direito Penal não deve ser desprezada, sob pena de compactuarmos com contornos autoritários e alheios ao sistema de garantias encartado no projeto democratizante da Constituição da República.

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Nesta senda, quando o professor Heleno Fragoso afirma que "a missão política do Direito Penal é a de defender os interesses da sociedade", estaria descurando em observar que, numa sociedade estruturada sobre matizes capitalistas, estratificada em classes, os interesses de cada uma dessas classes acabam por ser diametralmente antagônicos aos de outra. Logo, como compatibilizá-los através do Direito Penal? Em verdade, como a microfísica do poder Foucaultiana já alertava, a Lei corresponde à institucionalização formal deste poder, possibilitando sua incorporação natural ao imaginário social. E em "Derecho Penal y Control Social", Muñoz Conde já aduzia que o Direito não diz respeito a um consenso geral de vontades, mas a uma expressão de poder das classes sociais que ditam as regras do jogo e que dominam os meios de produção.

Neste contexto, não há como fecharmos os olhos para a triste e colapsada realidade prisional brasileira, nem como continuarmos insistindo no Direito Penal como soldado de frente no "combate" à criminalidade e demais problemas de ordens social, cultural e econômica. Historicamente, verificou-se que, quanto mais ativo e operativo o sistema penal, menos saudável se encontrava o regime político respectivo. Foi assim na Alemanha nazista de Hitler, na Itália fascista de Mussolini, em Portugal de Salazar, na Espanha de Franco, no Chile de Pinochet e até mesmo na União Soviética capitaneada por Stalin. Muitas prisões e diligências policiais, torturas e um agigantamento dos sistemas penal e processual penal, aliados a estruturas políticas autoritárias e persecutórias em essência.

A criminologia crítica, portanto, com apoio em bases zetéticas e desempenhando o papel de toda e qualquer teoria crítica, o de tornar vísivel o invisível e de romper com o conforto legalista, presta um enorme serviço no que tange ao entendimento da fenomenologia criminal, em termos de uma sociologia criminal e da reação social ao comportamento desviante. Através de uma análise crítica da atuação do sistema penal e da observância de sua construção política, poderemos enxergar que ainda estamos longe do aperfeiçoamento da democracia e do respeito às garantias e aos direitos humanos e fundamentais no espectro penal.

Destarte, os recortes raciais e sociais inerentes ao sistema penal brasileiro apenas demonstram a utilização de um controle social penal voltado aos excluídos, que sofrem com o avanço de pautas conservadoras, com o recrudescimento da direita e com a contração do welfare state.

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Sobre o autor
João Pedro Guerra

Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal; apoiador filiado ao LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition - Agentes da Lei Contra a Proibição); Membro da União dos Advogados Criminalistas (UNACRIM); Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, João Pedro. A população carcerária brasileira sob a ótica da criminologia crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4523, 19 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44597. Acesso em: 2 nov. 2024.

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