Resumo: Diante dos diversos desafios encontrados na proteção e defesa de crianças e adolescentes no contexto da sociedade de consumo em que vivemos, entendeu o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, que, ainda que emanadas das mais complexas e extensas fontes, as normas vigentes até então não abarcavam com a devida atenção e proteção a peculiar situação da criança e do adolescente frente a sociedade de consumo, em especial, diante dos diversos e sedutores mecanismos de publicidade e propaganda, organizando e promulgando resolução (Resolução CONANDA nº 163/2014) que, no início do ano de 2014, acabou por dar fim à publicidade/propaganda voltada a este peculiar público-alvo. Evidente que a resolução não veio livre de críticas, persistindo até o momento forte e intenso debate acerca da força normativa e vinculativa da referida resolução, bem como acerca do seu conteúdo material. De forma não terminativa, o presente trabalho apresenta a problemática da proteção da criança e do adolescente no Brasil, a evolução normativa da matéria, até alcançarmos o texto da Resolução CONANDA nº 163/2014, a qual possui seus méritos e problemas.
Palavras-chave: ECA – proteção da criança e do adolescente – sociedade de consumo – publicidade e propaganda abusiva – limites da intervenção estatal na esfera familiar – Resolução CONANDA nº 163/2014
Sumário: 1. Introdução – 2. Sociedade de consumo – 2.1 Surgimento da sociedade de consumo. 2.2 A inserção da criança e do adolescente na sociedade de consumo. 3. A proteção à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico brasileiro. 3.1. O Código de Mello Matos e o Código de Menores: o “menorismo”. 3.2. A Constituição Federal de 1988 e as normas internacionais. 3.3 O Estatuto da Criança e do Adolescente: uma mudança de paradgima. 4. Questões acerca da participação da criança e do adolescente nos meios de comunicação – Direito comparado. 4.1. A participação de crianças e adolescentes em programas de televisão: a aplicação do art. 149, do ECA. 4.2. O acesso de crianças e adolescentes à internet: uma experiência norte-americana. 5. A Resolução CONANDA nº 163/2014. 6. Conclusões.
1.Introdução
Vive-se hoje uma sociedade de consumo, mais do que isso, somos uma sociedade de pessoas consumistas, as quais buscam, por meio da aquisição de bens a satisfação dos seus desejos pessoais, o alcance dos seus objetivos e o mais pleno sentimento de felicidade. Somente quando consumimos – o que quer que seja – é que nos sentimos efetivamente felizes e, pior, pertencentes a um determinado grupo social.
Diferentemente do que se via outrora, a inserção ou não de um indivíduo em uma certa sociedade não se dá em razão das suas qualidades – físicas ou intelectuais – ou dos benefícios que a sua presença traz para o grupo, mas tão somente pela sua capacidade de consumo. Quem consome mais é do tido como melhor – isto porque este conceito está muito mais relacionado ao valor do produto do que à sua concreta qualidade, durabilidade e eficiência – é um membro da sociedade, é alguém.
Nunca consumimos tanto, nunca fomos tão infelizes...
A sede por consumo constante e insacíavel nos leva a perseguir o inatingível, muitas vezes atropelando, distorcendo e ignorando valores morais e éticos dantes existentes e pautadores da vida em sociedade, conduzindo-nos, todos, a um vazio de princípios, de certezas, de objetivos tanto individuais e coletivos. A ética e a ótica da sociedade de consumo parece seguir apenas um princípio: o do “um por todos, e todos para o shopping”.
Nessa busca desenfreada pelo contínuo incentivo ao consumo, ninguém fica de fora, tendo a sociedade de consumo encontrado na criança e no adolescente seu grande filão, seu público-alvo mais fácil e manipulável às artimanhas do consumismo. Conforme dados recentes de organizações voltadas ao estudo do consumo no público infanto-juvenil, crianças e adolescentes influem em 80% (oitenta por cento) das decisões de compras do seio familiar[1], representando o nicho que, hoje, mais consome bens e serviços.
Foi com os olhos nesta estarrecedora realidade que muitas organizações não-governamentais, bem como agentes públicos trouxeram à baila a necessidade de se discutir a criança e o adolescente como centro de campanhas publicitárias e propagandas voltadas justamente à exploração da sua vulnerabilidade e expansão do índice acima pontuado, assim como de outros que serão melhor detalhados no tópico a seguir.
Sem adiantarmos muito do que será abaixo explanado com a devia cautela e pormenorização, via-se que os problemas desta ostensiva publicidade/propaganda voltada à criança e ao adolescente, mais do que um desequilíbrio econômico-financeiro ao lar, trazia consigo outros perigosos efeitos, tais como o encurtamento da infância, o aumento da obesidade infantil e a precoce erotização de crianças e adolescentes.
Após diversos debates entre as mais diversas esferas e entes da sociedade, foi promulgada, no dia 13 de março de 2014, a Resolução CONANDA nº 163/2014, a qual tem por objeto justamente o controle e disciplina da publicidade/propaganda, com fins meramente mercadológicos, voltadas à criança e ao adolescente.
Em linhas gerais, a resolução supramencionada entendeu como abusiva – com base no disposto tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) como no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) – toda a “prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”[2], utilizando-se de recursos mercadológicos ludibriadores e que explorariam, ao máximo, a vulnerabilidade do seu público-alvo.
Conforme se verá a seguir, os dados acerca consumo infanto-juvenil são alarmantes, e sua ligação com a ostensiva publicidade/propaganda voltadas ao seu constante incentivo e ampliação é inegável, sendo mais do que louvável à iniciativa do CONANDA, a qual possuir inegáveis méritos e acertos.
Contudo, por mais que seja inegável o abuso verificado em certas situações, bem como a necessidade de se evitar que a porção mais jovem e vulnerável da sociedade ingresse na espiral viciosa que é a sociedade de consumo, nos parece ter havido um certo exagero por parte do CONANDA no exercício das suas atribuições, exagero este que é extremamente prejudicial à organização do seio familiar, assim como ao – no cúmulo da ironia – desenvolvimento da criança e do adolescente.
Sem negar os acertos da resolução, tampouco pretender fazer apologia à sociedade de risco e à sua falta de valores éticos e morais, o presente trabalho busca verificar se haveria na hipótese solução menos gravosa do que a adotada pelo CONANDA, inclusive com vistas à melhor concretização e harmonização das disposições do atual estatuto infanto-juvenil com aquelas previstas no texto da Lei Maior, assim como em outras normas do ordenamento jurídico vigente.
2.Sociedade de Consumo
2.1 Surgimento da sociedade de consumo
A sociedade de consumo tem como embrião a supremacia da razão e da ciência nos anos modernos, a qual levou o homem a supervalorizar os avanços tecnológicos e suas comodidades, crente que a infaliabilidade do modelo racional e científico o levaria ao ideal pleno de felicidade. Não obstante sejam mais do que válidos os avanços e conquistas das modernas tecnologias, é certo que o homem – enquanto ser humano – nunca esteve tão sozinho e infeliz.
Em busca do “progresso” prometido pela ciência, o paradigma social foi alterando, resumindo-se a vontade desmedida por um consumo constante de avanços, novidades e superações tecnológicas a todo e qualquer custo. Ao que tudo indica, o que busca a sociedade atual não é convivência harmônica e pacífica, a solução de conflitos sociais há muito presentes na história da humanidade. O que se realmente quer é o celular mais novo no mercado, custe o que custar.
O surgimento da sociedade de consumo e, posteriormente, da sociedade de risco, dá-se nesse contexto[3]. A felicidade passa a ser, portanto, um produto a ser adquirdo e fruído individualmente, e a se traduzir na possibilidade de aquisição – a custos muito maiores do que o financeiro – do que há de mais moderno no mercado. O “valor” que rege a sociedade, conforme já adiantado anteriormente, é a capacidade de consumo e, se alguém não se encontra neste círculo vicioso de compra/descarte, encontra-se à margem da sociedade.
Isto porque, em uma sociedade onde o projeto da racionalidade é levado ao extremo, coloborado pelos constantes avanços tecnológicos a se superar a cada dia, o que se verifica, em verdade, é uma irracionalidade a contaminar a todos, especialmente a população mais jovem e vulnerável, conforme se verá a seguir.
Há um descolamento entre razão (consumo) e ética, na medida em que o primeiro, na busca incesante por um suposto progresso pautado na constante movimentação do mercado parece não ter valores, tampouco ser capaz se agregá-los e passá-los às gerações futuras.
É neste descolamento que a questão central da Resolução CONANDA nº 163/2014 parece repousar: podem crianças e adolescentes, dentro desta ótica mercadológica do consumo pelo consumo, desprovida de valores e preocupações muito superiores à questões financeiras (meio ambiente, desenvolvimento sustentável, escravidão) serem tidas como consumidores, pura e simples, capazes de participar de igual para igual com os adultos e terem, assim como para estes, produtos e campanhas publicitárias voltadas justamente para o incentivo deste consumo? Em poucas palavras, podem crianças e adolescentes, integrar, sem prejuízo ao seu desenvolvimento, a máquina de mercado que é a sociedade de consumo?
Quanto a este ponto, nos parece não haver questionamentos acerca da impossibilidade de participação de crianças e adolescentes em modelo de sociedade como o da sociedade de consumo – o qual, diga-se de passagem, há muito já demonstra sinais de superação e colapso. No entanto, divergimos do conteúdo da supramencionada resolução, apenas por entendermos que esta, muito embora tenha louváveis e não-ingnoráveis méritos – acaba por interferir de forma exagerada em outros valores também fundamentais ao desenvolvimento da criança e do adolescente, assim como do seu núcleo familiar.
2.2.A inserção da criança e do adolescente na sociedade de consumo
No item anterior vimos a origem da sociedade de consumo, tal como alguns dos equívocos que apontam para o seu declíneo e inevitável colapso.
Muito embora seja inegável que tal modelo, até mesmo por uma ausência de recursos materiais, não tardará a ser substituído certo é que, no Brasil, ele ainda encontra bastante força, em especial junto ao grupo mais vulnerável da população, quais sejam, as crianças e adolescentes brasileiros.
Em nenhuma fase da vida é mais importante a aceitação do grupo social do que quando na infância e adolescência. O momento das primeiras experiências, da formação do caráter, do estabelecimento de perfis que irão moldar os adultos do amanhã dependem, e muito, da influência dos colegas, dos amigos, dos vizinhos.
Ocorre que, sendo a escola, o clube, o acampamento, um microcosmo do que a realidade social mais ampla, certo é que nestes também imperam os (des)valores da sociedade de consumo. Ou seja, somente quem consome encontra e desempenha seu papel no grupo, enquanto aqueles que não conseguem, por qualquer motivo que seja, acompanhar o dinamismo e frivolidade do mercado estão, necessariamente, à margem de qualquer grupo social.
Assim, crianças e adolescentes são hoje a fatia mais expressiva de consumidores, sendo realmente alarmantes e preocupantes os índices de participação infanto-juvenil no mercado.
Para que se possa ter uma melhor visão do que se alega, seguem abaixo alguns dados acerca da paticipação de crianças e adolescentes no consumo de bens e serviços, dentro e fora de sua famílias:
• No Brasil, em 2012, 24% da crianças com nove anos de idade já têm um celular, 16% ganham um aparelho aos seis anos e 7% aos cinco, de acordo com dados da pesquisa TIC Crianças 2010, realizada pelo NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR)[4];
- 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso, e 15% já são obsesas, sendo indiscutível a contribuição das redes de fast food e suas campanhas voltadas para o público infanto-juvenil para o percentual vislumbrado;[5]
- Conforme pesquisa da Academia Americana de Pediatria, aos 3 anos, quase um terço das crianças membros das famílias ouvidas no estudo possuem uma televisão no quarto, o que, além de fortalecer a ótica consumista, pode ser extremamente prejudicial ao desenvolvimento do bebê, caso os pais não regulem, com muita rigidez, a quantidade de horas de exposição da criança ao aparelho[6]; e
- Conforme pesquisa realizada em 2011 e divulada pelo Movimento Infância Livre de Consumismo - MILC, perto de datas comemorativas como Natal e Dia das Crianças (mais ou menos 15 dias de antecedência), são veiculadas em torno de 1.115 publicidades voltadas ao público infantil[7].
Os dados acima apresentados apontam o que já é há muito perceptível no seio social: em termos de consumo e propaganda, crianças e adolescentes são tratados como gente grande, sendo diariamente e ostensivamente incentivados a frequentar cada vez mais cedo as rodas de consumismo, perdendo valioso tempo da infância e da adolescência, os quais, no futuro, serão muito sentidos na formação do adulto.
Feitos estes apontamentos, reforçamos a importância na proteção da nossa população infanto-juvenil frente aos perigos e tentações da sociedade de consumo, inexistindo, neste ponto, divergência acerca do objetivo maior da Resolução CONANDA nº 163/2014.
O que nos parece – e isso será melhor exposto a seguir – é que a resolução faz tal proteção de forma por demais invasiva e agressiva, ignorando o fato de que o ECA, assim como todas as demais previsões legais que de alguma forma afetam ou protegem crianças e adolescentes, integram um sistema de jurídico único e indivisível, que deve prezar pela harmonização dos seus preceitos e maior concretização possível de todos os seus princípios e fins.
3.A proteção à criança e ao adolescente no ordenamento jurídico brasileiro
A preocupação com a formulação de mecanismos jurídicos de proteção e defesa da criança e do adolescente não é de hoje, tampouco foi instituída com a Constituição Federal de 1988 ou com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há anos voltam-se juristas e legisladores ao estudo desta temática tão delicada, buscando melhor adequá-la às necessidades do momento, bem como a harmonizá-la com as previsões internacionais também existentes sobre a matéria.
Antes da Constituição Federal de 1988, mais ainda do Estatuto da Criança e do Adolescente, a tutela da infância e da juventude era feita pelo Código Mello Matos, de 1927, e, posteriormente, pelo Código de Menores, de 1979. O “menorismo” instituído pelo Código de Menores, como se verá a seguir, ainda que louvável pela atenção, delicadeza e inegável auxílio na proteção de crianças e adolescentes, com o passar dos anos, acabou por ser superado pela inovadoras ideias trazidas com a Constituição Federal de 1988, sendo substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, legislação esta que, de 1990 até os dias atuais, é a referência da legislação brasileira em termos de proteção, cuidado e promoção da infância e da juventude.
Além do código específico, também podemos encontrar nas demais normas orientadoras do ordenamento jurídico pátrio disposições que tutelam e velam pelas crianças e adolescentes, tais como o Código Civil de 2002 (p.e., os arts. 1.538 e seguintes) e o Código Penal (p. e., arts. 217-A e seguintes).
Ainda, outras normas, por mais que não versem especificamente sobre crianças e adolescentes também podem ser aplicadas para solução de conflitos que os tenham como parte, tal como é o caso do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, em uma sociedade cada vez mais consumista, muito em breve acabará o Código de Defesa do Consumidor a ser a pedra de toque de todo o ordenamento jurídico.
Por fim, mas não menos importante, os tratados internacionais sobre direitos das crianças e dos adolescentes que tenham sido ratificados pelo Brasil também integram o enorme arcabouço jurídico de proteção desta população tão peculiar, de tal sorte ser bastante robusto é completo o conjunto de normas disciplinadoras e regulamentadoras da matéria.
É justamente com esta constatação em mente que se discute a pertinência da Resolução CONANDA nº 163/2014, a qual, dada a sua intensidade e veemência na proibição de publicidade e propaganda a crianças e adolescentes, nos parece um pouco exagerada, chegando até mesmo a contradizer e negar outras disposições já existentes em prol da população infanto-juvenil.
3.1. O Código de Mello Matos e o Código de Menores: “o menorismo”
Tal como não é recente a preocupação com a criança e com o adolescente, também não é de hoje que o Brasil é um país que sofre com as consequência da desigualdade social e regional, da insuficiência do Poder Público frente às demandas sociais, da concentração de renda e da pobreza[8]. De todas as consequências decorrentes das mazelas mencionadas, a pior é, sem sombra de dúvida, a marginalização e esquecimento de milhares de pessoas, a renegação destas à condições totalmente aviltantes ao princípio da dignidade da pessoa humana e àqueles direitos básicos, inerentes ao homem e que fogem daqueles previamente positivados.
Em situações de flagrante miséria e ignorância, é o Direito Natural que se vê afligido, situação esta que é inadimissível e inaceitável, porém, ainda bastante recorrente. Neste cenário, seja pela sua fragilidade, vulnerabilidade ou inexperiência, fica evidente que a parte da população mais afetada são as crianças e adolescentes, as quais se veêm obrigadas, em muitas hipóteses, a abandonar os estudos e demais alegrias da infância para serem prontamente inseridas no mundo adulto do trabalho e da dor.
Submetidas a trabalhos degradantes ou à mendicância, muitas destas crianças recorrem à criminalidade para garantir o seu sustento, perdendo-se no mundo das drogas, da violência e do crime, em um caminho muitas vezes sem volta.
Foi com os olhos neste cenário bastante recente, porém, já existente em 1927, que o jurista baiano José Cândido de Albuquerque Mello Matos vislumbra a necessidade de se pensar em instrumentos jurídicos que garantam a proteção e a recuperação do menor abandonado, elaborando para tanto aquele que seria a primeira legislação voltada exclusivamente à disciplina da situação do menor abandonado – o Código de Mello Matos (Decreto 17.943-A/1929), surgindo, assim o embrião do que seria o “menorismo”[9] e a doutrina da situação irregular.
Antes de prosseguirmos, duas observações se fazem bastante importantes para melhor compreendermos o avanço da legislação em matéria de disciplina da situação de crianças e adolescentes e a possível desnecessidade da Resolução CONANDA nº 163/2014 para o alcance dos fins por esta pretendidos.
Primeiramente, nota-se que, neste primeiro momento, não se fala em criança e adolescente, mas sim na figura do menor, o qual, conforme disposição do art. 1º, do Código Mello Matos, seria toda aquela pessoa com menos de 18 anos. Neste ponto, vê-se certa semelhança com o sujeito de direitos previso no Estatuto da Criança e do Adolescente vigente, o qual, também tem por idade limite os 18 anos completos, contudo, faz distinção entre quem seria criança (de 0 a 12 anos incompletos) e quem seria adolescente (12 anos completos até 18 anos), conforme se extrai da leitura do art. 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por mais que tal distinção possa, a princípio, ser banal, é crucia para fins de determinação do tratamento a ser dispensado ao sujeito, podendo este variar de acordo com a faixa etária em que este se encontra. Como exemplo, tem-se a situação da adoção, na qual, o maior de 12 anos, por expressa previsão do art. 43, §2º, deve ser ouvido antes do seu deferimento.
Outra fundamental observação diz respeito ao alcance da norma, haja vista que o intuito, naquele momento, era tão somente de disciplinar e proteger aqueles menores que estivessem em situação irregular, ou seja, que fossem pobres, abandonados ou delinquentes[10]. Isto porque, à epoca, entendia-se ser obrigação exclusiva da família o cuidado e sustento do menor, sendo dispensada a intervenção do Estado no seio familiar, para fins de determinação dos cuidados e criação da prole.
Desta feita, apenas um número bastante limitado de menores se encontravam resguardados pelo Código de Mello Matos, situação esta que se manteve mesmo depois da edição do Código de Menores (Lei nº 6.697/1979), o qual manteve e desenvolveu figuras e institutos essenciais à difusão da doutrina do “menorismo”, entre estes a do assistente social e das casas de internação de menores.
Prevalecia, portanto, a “doutrina da situação irregular”, a qual, funda-se, basicamente, na premissa de que, quando verificada a ausência da família, deve o Estado intervir para corrigir tal omissão ou falha, atuando o juiz de menores – outra figura fruto destas duas normas anteriores – como “o bom pai, aquele a quem caberia dizer, em última análise, qual o melhor interesse da criança[11].
Não é difícil verificarmos, hoje, à luz da doutrina da proteção integral da criança – já defendida pela Organização das Nações Unidas na Declaração Universal dos Direitos das Crianças, de 1959 -, contudo, para a época, tanto o Código de Mello Matos como o Código de Menores eram normas de vanguarda, sendo as primeiras a dispor sobre assunto até então tratado de forma breve e em normas esparsas, bem como a atribuir-lhe atendimento mais humanizado.
As críticas ao Código de Menores demoraram a surgir e vieram tão somente quando o sistema jurídico por este proposto começou a dar sinais de insuficiência frente a necessidade de expansão do tratamento dantes reservado somente ao menor abandonado, pobre ou deliquente a todas as crianças e adolescentes, bem como a vislumbrar outras situações e direitos que sequer estavam previstas no códex[12].
É com o advendo da Constituição Federal de 1988 que o modelo dantes instaurado pelo Código de Mello Mattos e pelo Código de Menores conhece sua ruína, haja vista não haverem muitas dúvidas da adoção pela Lei Maior da doutrina da proteção integral, em detrimento da superada doutrina da situação irregular e do excessivo enfoque por esta dado a uma determinada parcela da população infanto-juvenil, a qual também não parecia ter um compromisso com a melhora de condições de vida e futuro das crianças e adolescentes.
Assim, por mais que tenha o “menorismo” vigido até a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente – o que ocorreu tão somente em 1990 -, já com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o paradigma de proteção jurídica às crianças e adolescentes era outro.
3.2. A Constituição Federal de 1988 e as normas internacionais.
Como já adiantado alhures, o início do fim do “menorismo” e da doutrina da situação irregular antecede a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como marco a Constituição Federal de 1988 e o por ela determinado no se art. 227, o qual consagrou, no seu §3º[13], a opção pela doutrina da proteção integral.
Como bem pontua Luiz Alberto David Araujo, a doutrina da proteção integral parte de premissas bastante distintas daquelas adotadas pelo menorismo. Primeiramente, “crianças e adolescentes não formam simples objetos de medidas de proteção e receptores de assistencialismo estatal, mas antes constituem efetivos titulares de direitos e protagonistas da defesa dos seus próprios interesses”[14]. Ainda, a doutrina da proteção integral atribui “não só à família e ao Estado, mas também à sociedade o dever jurídico de assegurar os direitos da infância e da juventude”[15], dando fim ao grande poder e discricionaridade antes atribuídos ao magistrado, na qualidade de última palavra em prol do interesse da criança e do adolescente.
No mais, é curioso notar que a utilização da expressão “menor” acaba perdendo espaço neste novo paradigma de proteção infanto-juvenil, sendo substituído pelos vocábulos “criança” e “adolescente”. Até mesmo pelo foco da legislação anterior estar na figura do infante abandonado e marginalizado, bem como na sua recuperação em razão da prática de um ato infracional, a expressão “menor” acabou por tomar excessiva carga negativa, não se coadunando com a nova perspectiva jurídica dada à matéria, a qual tem um caráter assecuratório e de promoção da criança e do adolescente bastante elevado.
Conforme já adiantado alhures, a doutrina da proteção integral já era há muito adotada na esfera internacional, tendo sido prevista já em 1959, quando da edição, pela Organização das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos da Criança[16]. Em 1989, a doutrina da proteção integral é ratificada pela Organização das Nações Unidas, mediante a edição da Convenção sobre os Direitos das Crianças.
Como bem nota Flávia Piovesan, “A Convenção acolhe a concepção do desenvolvimento integral da criança, reconhecendo-a como verdadeiro sujeito de direitos, a exigi proteção especial e absoluta prioridade”[17], não restando dúvidas de que, no plano internacional, já está mais do que consolidada a necessidade de reconhecimento da peculiar condição de desenvolvimento da criança e do adolescente – para os fins da Convenção, criança são todos aqueles com menos de 18 anos -, bem como da proteção e promoção dos valores necessários para tanto.
Ainda que um pouco anterior à Convenção, a Constituição Federal de 1988, conforme já explanado, também adotada a doutrina da proteção integral, notando o professor José Afonso da Silva[18] a existência de uma importante relação entre o Texto Constitucional e a orientação internacial, a qual culmina com a elevação da doutrina da proteção integral ao status de direito fundamental de crianças e adolescentes:
“Assim, o art. 227, em consideração, é, por si só, uma carta de direitos fundamentais da criança e do adolescente correspondente aos previstos naquela Convenção. O caput do artigo contém a declaração de direitos, enquanto seus parágrafos indicam as providências a visando conferir eficácia aos direitos ali prometidos.
É neste cenário, e com vistas à completa superação do paradigma anterior e estabelecimento de novos parâmetros e atribuições com vistas à melhor promoção e proteção da criança e do adolescente, que surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, abaixo apresentado.
3.3 O Estatuto da Criança e do Adolescente: a confirmação de um novo paradigma.
Como adiantado alhures, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) veio para consolidar o novo paradigma de proteção infanto-juvenil inaugurado, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. Contudo, mais do que simplesmente reforçar o já previsto na Lei Maior, o Estatuto da Criança e do Adolescente, pautado nos princípios constitucionais previamente estabelecidos, acabou por dar toda uma nova e pormenorizada estrutura e disciplina aos mais diversos direitos e interesses do seu público alvo, dado à matéria a mais ampla e robusta regulamentação.
Assim é que no Estatuto da Criança e do Adolescente, encontram-se previsões que vão desde a anunciação e confirmação dos direitos fundamentais infanto-juvenis já delineados na Constituição Federal de 1988, como também dispositivos que regulam e disciplinam os institutos da guarda, tutela e adoção, que instituem uma política voltada especificamente ao atendimento de crianças e adolescente, organiza o Conselho Tutelar, Ministério Público e Juizados Especiais da Infância e da Juventude, com base no novo paradigma firmado, e regula as medidas socioeducativas a serem aplicadas tanto à criança ou adolescente infrator, como também aos seus pais e responsáveis[19].
Ainda que bastante amplo, o rol de direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente não é taxativo, admitindo, sempre com vistas à melhor execução da doutrina da proteção integral, complementação e interferência dos demais instrumentos normativos do ordenamento jurídico interno e, também, externo[20].
Uma importante observação a ser feita acerca do novo paradigma consolidado com o Estatuto da Criança e do Adolescente diz respeito ao sujeito passivo da proteção integral prevista no seu art. 4º[21], o qual traz significativa alteração quanto ao papel da família e do Estado na criação e proteção da criança e do adolescente.
Inicialmente, é curioso notar que a redação do caput, do art. 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente repete, quase que sem mudar uma vírgula, o teor do art. 227, da Constituição Federal de 1988, reforçando a introdução da comunidade e da sociedade em geral na função de zelar e garantir as crianças e adolescentes. Contudo, os incisos que se seguem ao caput parecem regulamentar melhor de que forma se daria esse dever de cuidado, observando, sempre a necessidade de proteção integral da criança e do adolescente, da qual decorrem os princípios da proteção integral strict sensu, do reconhecimento da peculiar condição de desenvolvimento e da prioridade absoluta[22].
Não obstante seja esta inovação bastante interessante e essencial à mais ampla e integral aplicação da proteção integral da criança e do adolescente em termos práticos[23], não se pode negar que, há no caput do dispositivo em estudo uma relação de subsidiariedade entre os sujeitos nele previstos.
Ainda que entenda parte da doutrina ser solidária a responsabilidade existente entre os entes previstos no caput, do art. 4º - e aqui pedimos vênia para discordar da citada autora Martha de Toledo Machado[24] -, nos parece que o papel da família, principalmente dos pais, na educação, formação e cuidados da criança e do adolescente merece especial destaque e responsabilidade, cabendo a interferência do Estado e da sociedade em assuntos voltados muito mais a concretização de um bem comum ou solução de um problema social (políticas públicas), admitindo-se sua intervenção direta em situações peculiares e muito específicas. Assim, entre os sujeitos do caput, do art. 4º, há uma predominância da família na educação, criação e proteção da criança e do adolescente, com a cooperação do Estado e da sociedade na realização deste mister.
Tal afirmação faz-se com base tanto na leitura do disposto no art. 22[25], do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, como também com a lição do art. 1.634[26], do Código Civil de 2002, os quais são claros acerca da existência de uma responsabilidade muito mais direta dos pais com relação aos seus filhos, situação esta que decorre não só do estabelecimento dos laços familiares, mas, principalmente, na inegável relação de dependência da prole em face dos seus genitores.
Neste sentido, vejamos a doutrina de Paulo Lúcio Nogueira[27]:
“Os pais são os maiores responsáveis pela formação e proteção dos filhos, tendo não só o pátrio poder [hoje, poder familiar, conforme alteração promovida pela Lei 12.010/2009], mas também o pátrio dever de lhes garantir os direitos fundamentais, mormente o direito à vida, saúde, à alimentação, à educação, bem como os demais direitos previstos na Constituição”.
Colocado o posicionamento pela preponderância da função da família – a qual poderia a até mesmo se traduzir como um dever fundamental dos pais -, tem-se, conforme se verá de forma mais detida a seguir, que a intervenção estatal promovida pela Resolução CONANDA nº 163/2014, pode ter, ainda que munida das mais nobres e válidas intenções, alçado poder que caberia, a princípio somente aos pais, interferindo de forma exagerada no seio familiar e no direito dos pais – em decorrência do exercício do seu poder/dever familiar – de gerir a educação dos seus filhos.