Originária do Direito Francês, as astreintes são aquelas multas diárias impostas por uma decisão ou condenação judicial. É quando você ouve ou lê no jornal ou mesmo nas redes sociais que determinado juiz decidiu que fulano deva faz isso ou aquilo, em tal tempo e de tal modo, sob pena de pagamento de uma importância em dinheiro geralmente a favor do autor da ação.
Vamos a um breve e único exemplo. A sua mãe está no saguão de entrada de um hospital, sangrando e urrando de dor, e o plano de saúde ou a portaria do nosocômio bate o pé dizendo que a sua velha não será internada pois a mesma não trouxe consigo em trêmulas mãos o comprovante do último boleto pago da mensalidade do plano de saúde. Admitindo ser da operadora do plano de saúde a responsabilidade de demonstrar a eventual inadimplência da usuária, o juiz defere medida liminar determinado a pronta e imediata internação de sua genitora, sob pena de multa de um trilhão de reais por hora de descumprimento (astreintes).
Recebendo a intimação do oficial de justiça de plantão, ninguém cumpre a decisão judicial, direta e consequentemente sua mãe – que sempre pagou uns dez dias antes a mensalidade do plano de saúde, por prudência e precaução – morre estendida na portaria do hospital ao lado daquele cinzeiro branco e grande que mais parece um vaso de planta. Você, todo feliz, enterra sua mãe e corre para a boca do caixa do banco para sacar sua bolada correspondente à multa judiciária em razão do não cumprimento da decisão judicial.
Caro leitor, é assim que a vida funciona?!! Será que dinheiro ainda é tudo ou compra tudo em nossas vidas?!! No exemplo dado, quanto vale estar na companhia de sua mãe, abraçá-la, beijá-la, fazer e estar naquele almoço de domingo em companhia dessa maravilhosa criatura abençoada que tanto te ama?
Ora, no exemplo acima, é claro que nada, absolutamente nada, nenhum dinheiro do mundo, poderia substituir o célere e efetivo cumprimento da decisão liminar tão aguardado. Bem nenhum, importância em espécie nenhuma, poderia preservar a vida, a possibilidade da sobrevivência do ser humano, senão a providência judicial deferida.
E é assim que acontece no dia-a-dia forense. Parece que nos tempos atuais vai brotando um novo ramo do direito, o “Direito Processual das Decisões Judiciais Não Cumpridas”! Os volumes dos processos judiciais estão sendo tomados mais por laudas sobre a discussão do não cumprimento da decisão liminar do que a petição inicial, a contestação e a própria liminar somadas. Algo do tipo: da lauda 01 até a lauda 37 tratamos da petição à decisão liminar deferida; da lauda 38 até milionésima lauda do milionésimo apenso lidamos com a discussão do não cumprimento da decisão judicial. E agora com essa moda de juntar e-mails nos processos, a coisa ficou feia! Triste mesmo!
Mas o drama do pobre infeliz do cidadão comum é ainda maior, de proporções jupiterianas. Caro leitor, sabe o quê a lei processual brasileira diz a respeito das astreintes, sua cobrança e efetivo recebimento? Para não acharem que estou de avacalhação ou me arriscando no mundo do stand up comedy, vou transcrever o trecho de uma recentíssima decisão do STJ que reverencia fielmente o texto da nossa lei vigente:
“A multa prevista no §4°, do Art. 461 do CPC só é exigível após o trânsito em julgado da sentença (ou acórdão) que confirmar a fixação da multa diária, que será devida, todavia, desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. Precedentes” (DJe 03/08/2015).
Então você pode imaginar quem ainda está na fila esperando para receber o valor das astreintes aqui no Brasil, né?!! Matusalém, Moisés, Tutancâmon, Cleópatra, Pero Vaz de Caminha, entre tantas outras figuras de nossa antiguidade e idade média.
Com zilhões de instâncias judiciais e trocentos recursos previstos na lei processual, sem falar nos embargos nos embargos nos embargos (...) nos embargos de declaração nos agravos regimentais dos Códigos e Regimentos Internos dos TJs, o trânsito em julgado de uma decisão judicial no Brasil levaria mais ou menos o tempo que a Nasa levará para colonizar Plutão.
E estou falando da série infinita de recursos e instâncias judiciais para discussão da liminar, da decisão interlocutória! A sentença, o acordão de mérito do TJ local ainda terá o seu calvário recursal próprio.
Tinha me esquecido ainda da Ação Rescisória, que poderá, sim, suspender a exequibilidade das astreintes. Esta ação também e certamente será alvo de todos os recursos e instâncias admitidas pela lei processual pelo sucumbente.
Lembre-se, não estamos aqui discutindo o recebimento ou não das astreintes. Voltemos ao exemplo. O caso é que a sua mãe está no saguão de entrada de um hospital, sangrando e urrando de dor, e o plano de saúde ou a portaria do nosocômio diz que a mesma não será internada, mesmo com decisão judicial determinando essa internação.
Você acha que a sua e a minha tragédia, de um cidadão brasileiro comum, para por aqui? Lamento, pois então, vou dizer mais uma lástima, talvez a mais funesta de todas.
Qualquer pessoa física ou jurídica responsável pelo cumprimento de uma decisão judicial são obrigados a ter bens móveis ou imóveis em seu próprio nome? Já ouviu falar da figura do laranja, da esposa ou filho de conveniência? Daquele cara que empresta CPF, CNPJ ou até a mãe para tirar algum proveito ou prestígio de determinada situação, nem que seja para ganhar aquele camarote de folia de carnaval?
Pois é. Você acha que uma figura, réu de um processo, sem nenhum bem penhorável – apesar de morando naquele suntuoso palácio de frente para o mar, com vários carrões na garagem, registrados todos esses bens em nome de seu poodle ou de sua calopsita – está mesmo preocupado com as astreintes e sua cobrança?!! Fala sério...
Sabe o quê que acontece na vida forense nesses casos? O diligente oficial de justiça escreve no verso do mandado de intimação: “Certifico e Dou Fé que em cumprimento a r. Decisão me dirigi ao endereço declinado e não encontrei bens para penhorar”. Sabe o quê o juiz pode fazer por você neste caso? Digo: “Vistas ao Autor para se manifestar”. E sabe o que você pode fazer por si mesmo? Nada, exatamente nada.
Ah, sim, grandes doutores da lei falarão para você se acalmar, que ainda restam as temidas penhora on-line, os ofícios aos registros gerais de imóveis do País afora, ao Detran etc.
Insisto. Pessoa física ou jurídica responsável pelo cumprimento de uma decisão judicial é obrigado a ter bens móveis ou imóveis em seu nome?
E o laranjal segue triunfando neste País ...
Aqui, abro um parêntese. Absolvo juízes e Tribunais de todo esse drama vivido pelos jurisdicionados. Talvez sejam os próprios juízes os mais sensíveis conhecedores dessa verdadeira frustação do cidadão comum frente a um emaranhado de leis inúteis, que não servem de nada, a não ser para sustentar a opressão e a tirania do poder econômico e da velha nobreza que devora a casa das viúvas.
Como se vê, no caso de liminares não cumpridas, o melhor e único remédio é a decretação da prisão em flagrante do responsável pelo cumprimento da decisão judicial, por crime de desobediência. Doa a quem doer. É a mesma profilaxia do mal pagador de pensão alimentícia. Cadeia resolve. É só o oficial de justiça chegar acompanhado de uma viatura com giroflex ligado, balançando as algemas, que toda corte, puxa-sacos e baba-ovos, se reúnem em torno do desidioso réu para cumprimento da ordem judicial.
Quem bate as portas da Justiça não é mercenário, não quer dinheiro, deseja o bem da vida incólume, salvo, resgatado pelo cumprimento da decisão judicial salvífica, pronto e imediato, sem rodeios. O que o jurisdicionado ou jurisdicionada desejam é ver o filho matriculado na escola, o medicamento entregue, a cirurgia ou exame médico sendo realizados, a internação psiquiátrica sendo levada a efeito. Ninguém fica por deleite ou passatempo nas longas e ensolaradas fileiras da Defensoria Pública para constituir uma poupança com promessa de saque futuro na Justiça com a cobrança das astreintes. O povo quer dignidade, socorro, nada mais. Vou repetir uma frase que ouço quase todos os dias em meu gabinete: “Doutor, só quero que minha filha volte a sorrir, a falar, a andar, nada mais”.
Mas como diria o insuperável Murphy, “nada é tão ruim que não possa piorar”. Vou lhe contar um segredo. E peço que não espalhe por aí. Ok?!!
É que existe uma grande e torrencial posição jurisprudencial, inclusive de Tribunais Superiores, que diz que em caso de descumprimento de decisão judicial não existe crime de desobediência, não existe crime algum. Senão, vejamos:
“O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica” (DJe 21/10/2015).
Não, caro leitor! Não estou de gozação, nem fazendo hora com a sua cara. É a lei, a lei brasileira que diz isso, a lei do seu País. O Código de Processo Civil sempre prevê outro tipo de sanção específica, que não a prisão, como as astreintes, conversão da obrigação em perdas e danos, bloqueio de rendas públicas etc. Ou seja, o descumprimento da decisão judicial será sempre um fato atípico (um não crime).
Chega! Vou parar por aqui! Tchau! Boa sorte para nossa mãe!