No caso do encarceramento feminino, há uma histórica omissão dos poderes públicos, manifesta na completa ausência de quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas especificidades advindas das questões de gênero. Isso porque, como se verá mais a frente, há toda uma ordem de direitos das mulheres presas que são violados de modo acentuado pelo Estado brasileiro, que vão desde a desatenção a direitos essenciais como à saúde e, em última análise, à vida, até aqueles implicados numa política de reintegração social, como a educação, o trabalho e a preservação de vínculos e relações familiares.
É certo, no entanto, que as circunstâncias de confinamento das mulheres presas e a responsabilidade do Estado pela sua custódia direta demandam do poder público uma ação ainda mais pró-ativa e um tratamento de fato especializado, com o fim de garantir às mulheres encarceradas o acesso e gozo dos direitos que lhe são assegurados pela normativa nacional e internacional.
A propósito, nesse sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994, OEA) – já reconheceu expressamente a condição específica de vulnerabilidade a que estão submetidas as mulheres privadas de liberdade e determinou a consequente especial atenção e consideração que os Estados devem dar a essa situação.
As mulheres encarceradas apenas deveriam sofrer limitações ao seu direito de ir e vir, mas o descaso, a negligência e omissão do Estado no cumprimento de seus deveres dissemina violações de todos os demais direitos das presas que não deveriam ser afetados. O Estado, que deveria nesse universo específico construir espaços produtivos, saudáveis, de recuperação e resgate de autoestima e de cidadania para as mulheres, só tem feito ecoar a discriminação e a violência de gênero presentes na sociedade para dentro dos presídios femininos.
A condição de encarceramento para as mulheres tem implicações diferenciadas daquela vivida pelos homens, e para além da falta do Estado em atender às condições gerais comuns a toda a população carcerária, é de extrema preocupação a situação que se arrasta devido à falta de uma política pública de gênero para as mulheres encarceradas.
Representando menos de 5% da população presa, a mulher encarcerada no Brasil é submetida a uma condição de invisibilidade, condição essa que, ao mesmo tempo em que é sintomática, “legitima” e intensifica as marcas da desigualdade de gênero à qual as mulheres em geral são submetidas na sociedade brasileira, sobretudo aquelas que, por seu perfil socioeconômico, se encontram na base da pirâmide social, como é o caso das encarceradas.
Quando se toma como análise o campo da formulação das políticas penitenciárias propriamente ditas, é certo que, não obstante sua precariedade – se voltam apenas a propostas de expansão física do sistema – contemplam unicamente os homens, não alcançando a medida mais primária que se refere à dotação de vagas e à construção de estabelecimentos carcerários femininos. As violações contra os mais diversos direitos das mulheres encarceradas, que são cotidianamente promovidas pelo Estado brasileiro, afrontam não apenas as recomendações, tratados e convenções internacionais (como as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos), mas a própria normativa nacional que, a partir de estatutos legais e da própria Constituição Federal, reconheceu um extenso rol de direitos e garantias às pessoas privadas de liberdade no país, como já bem demonstrado anteriormente.
O processo de consolidação do projeto democrático delineado na Constituição de 1988 encontra, dentre tantos desafios, dois obstáculos de porte: a redução das desigualdades de gênero e a superação das disfunções de um sistema penitenciário que não tem se mostrado eficaz em seus propósitos. O encarceramento de mulheres merece destaque, tendo em vista a forte vinculação do sistema penal brasileiro a uma matriz histórica patriarcal.
Uma breve retrospectiva se faz imprescindível para a análise do momento em que a mulher foi inserida na esfera punitiva do Direito Penal e em quais circunstâncias essa inserção ocorreu, em resumo, como se deu o processo de criminalização da mulher.
No intuito de compreender de que forma o direito penal exerce seu controle sobre a mulher, a nova vertente teórica da criminologia, a criminologia crítica, parte da ideia de “seletividade do processo de criminalização”. A seletividade, por sua vez, refere-se à supremacia masculina, alimentada pela lógica da sociedade patriarcal, em que a mulher é vista como um ser inferior, e suas transgressões não são interpretadas do mesmo modo que o comportamento do homem. Nas palavras de Alessandro Baratta (1999, p. 45):
“A relação de condicionamento recíproco entre esta seletividade e a realidade social não é mensurável apenas com a escala das posições sociais e com a sua reprodução. A estrutura dos papéis nas duas esferas da divisão social de trabalho, quais sejam, a da produção material e a da reprodução, não é menos importante. É nesta diferenciação das esferas e dos papéis na divisão do trabalho que age a construção social dos gêneros. A sociedade patriarcal reservou, de forma ampla, o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo reprodutivo, às mulheres”.
No contexto de criação do sistema penal, a mulher não era sinônimo de perigo, logo, não fazia sentido puni-la. O estereótipo feminino girava em torno da fidelidade, castidade e gestação (dos herdeiros, no caso das mulheres das classes dominantes; da futura mão de obra barata, no caso das mulheres das classes subalternas). Enquanto ao homem, era reservado o estereótipo de trabalhador, racional, forte, ativo e com potencial para cometer delitos. Em suma, ao homem foi reservada a função de produção, e à mulher foi reservada a função de reprodução.
O que encontramos até o momento, é o império de conceitos masculinos e a respectiva coisificação da mulher, seja no desenvolvimento da sociedade, ou na formação do próprio sistema penal. Alessandro Baratta, ao citar Frances Olsen, afirma que o desenvolvimento dos conceitos masculinos mostra o caráter androcêntrico do direito, haja vista que esses excluem os critérios de ação extraíveis dos femininos.
A mudança da posição da mulher no sistema penal veio atrelada à mudança na sua representação social. Durante muito tempo, a sociedade patriarcal traçou e limitou o papel da mulher e suas funções a algumas esferas sociais. Geralmente, o protagonismo feminino estava reservado ao lar. No momento em que a mulher começa a ganhar espaço na vida pública, quebrando o paradigma “público-privado”, esta consegue modificar, gradualmente, o universo patriarcal. A própria revolução industrial contribuiu no sentido de estender o campo de atuação feminino.
Quando a mulher ousa invadir o âmbito público, e praticar determinadas ações que antes eram vistas como atitudes masculinizadas, não necessariamente perde sua identidade como mulher, quando potencialmente praticante de delitos.Tanto assim, que a própria punição estatal passou a recair sobre a mulher, no momento em que esta extrapola os limites da dicotomia público-privado. A própria legislação penal passa a reconhecer que existem aquelas mulheres que não se enquadravam no modelo idealizado pela sociedade patriarcal, reconhecendo a existência das chamadas mulheres “desonestas”.
O controle penal em relação às mulheres era restrito ao âmbito privado como, por exemplo, a criminalização do aborto, os crimes passionais, o crime de infanticídio, entre outros e, o reconhecimento da mulher como praticante de crimes relacionados à esfera pública é um assunto extremamente atual.
O sistema penal foi pensado por homens e para homens, e “o ideais de objetividade e neutralidade, dos quais se adorna o direito, são valores masculinos que foram aceitos como universais” (Baratta, 1999, p. 31) e, nesta perspectiva a mulher não foi considerada.
De fato, o sistema penal nunca esteve preparado para receber mulheres. Contudo, a maior atuação da mulher na esfera social e jurídica, bem como a sua potencialidade de praticar condutas juridicamente reprováveis, foram fatos recepcionados, pouco a pouco, pelo Direito Penal. Neste estudo, cabe pontuarmos alguns avanços do sistema, no sentido de aumentar a presença da mulher na sua esfera protetiva, e adequar-se ao novo cenário social no qual estava inserido.
Um deles foi da mudança na legislação penal, no que se refere ao termo “mulher honesta”, adotado pelo Código Penal, mais especificamente nos artigos 215 e 216, até a entrada em vigor na Lei 11.106/ 2005. Essa Lei buscou desmembrar da ideia de crime o juízo de valor ao qual a mulher era submetida. Nas palavras de Mirabete e Fabbrini (2007a, p. 417):
“A inclusão de um elemento normativo obrigava a um juízo de valor a respeito da honestidade da mulher. Honesta seria a mulher honrada, decente, de compostura, ‘não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes’. Estavam excluídas da proteção, portanto, não só as prostitutas como as promíscuas, francamente desregradas, as mulheres fáceis, de vários leitos”.
A redação atual dos tipos penais passou a ser “constranger a mulher”, independente das características que a envolvem. No mesmo sentido, a inadequação histórica e cultural da tipificação do adultério revogou o art. 240 do Código Penal (Mirabete e Fabbrini, 2007b, p. 17)
A contribuição da Lei 11.340/ 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi no sentido de trazer, pela primeira vez, a visibilidade da violência intramuros contra a mulher, apesar de construída sob uma perspectiva androcêntrica.
A já comentada Lei de Execução Penal procurou trazer para o sistema penitenciário as peculiaridades pertinentes à mulher, como o reconhecimento da condição pessoal do detento ao determinar que a mulher e o maior de sessenta anos devem ser recolhidos, separadamente, a estabelecimento próprio e adequado a esta condição pessoal (art. 82, § 1.º). No mesmo sentido, a garantia do acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido (art. 14, § 3.º).
O sistema penitenciário deve ter um ambiente preparado para abrigar a mulher encarcerada, nas suas peculiaridades como o caso da maternidade, com berçários e espaços para amamentação de seus filhos (art. 83, § 2.º, da LEP), em sintonia com o art. 5.º, L da Constituição Federal. Além disso, agentes do sexo feminino para atender os estabelecimentos prisionais femininos (art. 83, § 3.º, da LEP).
Mais recentemente, a previsão legal do feminicídio revela essa tentativa da lei penal em incluir a mulher, dessa vez na condição de vítima.
Assim, observa-se que, em um primeiro momento, a legislação penal está disposta a direcionar a construção de um sistema heterogêneo, que respeite as diferenças dos condenados, tratando-os de acordo com suas peculiaridades e condições pessoais. Entretanto, para que seja, de fato, um sistema que torne visível a perspectiva de gênero, é necessário muito mais do que a simples letra da Lei.
As determinações legais não foram postas para alimentar um ideal, um sistema penitenciário utópico. Mas sim, para direcionar a construção de um Direito Penal que coloque em prática sua real função e, acima de tudo, que respeite os direitos fundamentais nos quais esse Direito está firmado.
Além de todos os problemas enfrentados também pelo universo masculino excarcerado, as presas ainda convivem com as privações peculiares à sua situação de mulher.
De início, para se fazer um retrato do cenário carcerário femininos e das suas específicas problemáticas, é necessário ressaltar que nem sempre existiram prisões destinadas à custódia das mulheres. Durante muito tempo os presídios foram mistos, a separação somente foi efetuada a partir da nova legislação penal formulada na década de 1940.
Interessante frisar que a criação de penitenciárias para mulheres foi motivada antes pela preocupação em manter a tranquilidade nos estabelecimentos masculinos, vez que a presença feminina contribuía para agravar o martírio da forçada abstinência entre os homens, do que para dar mais dignidade às presas, que eram sujeitas a uma série de privações, constrangimentos e violências nestas acomodações carcerárias mistas[1].
Ainda hoje existem poucos estabelecimentos especificamente destinados à custódia feminina, sendo muitas mulheres alojadas em unidades masculinas. Nos estabelecimentos penais mistos, o espaço das presas é improvisado e adaptado, e, em geral, não há uma preocupação com políticas e serviços voltados especificamente às singularidades da mulher aprisionada.
Como o número de unidades é reduzido dentro do universo de instituições do sistema prisional, há uma concentração da população carcerária feminina em poucas unidades, as quais, em muitos casos, estão distantes dos locais de origem das presas, onde residem seus familiares e amigos. Assim, o isolamento geográfico que marca a penitenciária feminina acaba por inviabilizar a assiduidade da visita às internas.
A distância, associada ao custo financeiro do transporte, torna-se um desestímulo às visitas. Visitas estas que acabam sendo também desestimuladas pelas já discutidas humilhantes regras impostas para a realização da visita nas unidades prisionais. Tudo isso contribui com o rompimento dos vínculos sociais e familiares, sobretudo em relação aos filhos. Muitas delas são praticamente abandonadas pelos familiares.
“Muito como são os casos em que a família custeia inicialmente os honorários do advogado e, após algum tempo, interrompe o pagamento deixando as mulheres entregues a sua própria sorte[2]”.
Situação dramática é a das prisioneiras que são mães. Grande parte das presas exercia o papel de chefe de família e, quando condenadas, o destino dos filhos é incerto. Há a possibilidade de que, até certa idade, permaneçam na creche da penitenciária. Outra alternativa é encaminhar as crianças para os cuidados de familiares. Na falta de alguma pessoa próxima que aceite a guarda e ultrapassada a idade limite da creche, elas são enviadas a estabelecimentos públicos para menores.
Na Lei de Execução Penal, há a previsão da instalação de berçários para bebês de até seis meses e de creches para crianças entre seis meses e sete anos[3]. Apesar disso, poucos são os estabelecimentos penais do país possuem este tipo de estrutura e acaba por predominar o improviso no que diz respeito ao abrigo dos filhos das presas, sendo comum que permaneçam com a mãe na própria cela.
Os pais dificilmente mantêm a guarda da criança. A grande maioria das mães é solteira e, portanto, obrigada a arcar sozinha com os encargos da maternidade. A Fundação Nacional de Assistências aos Presos (FUNAP) informa que apenas 20% das crianças ficam sob a guarda dos pais quando a mãe é presa. Os homens casam-se novamente, esquivam-se de assumir as responsabilidades da paternidade, ou simplesmente somem no mundo. A taxa de abandono, internação em orfanatos ou em unidades de crianças abandonadas corresponde a 1/5 dos filhos das presas[4].
Um problema bastante sério é o desaparecimento de crianças após a condenação das mães. Por vezes, meses se passam até que se descubra o paradeiro de algumas crianças. Além disso, privadas da liberdade, as chefes de família devem encontrar um meio de obter recursos para o sustento de seus filhos, situação penosa considerando a baixa remuneração do trabalho prisional.
Cumpre salientar, neste sentido, o papel da maternidade dentro da sociedade patriarcal: acredita-se que todas as mulheres possuem uma vocação natural para serem mães e que o cuidado com os filhos é um encargo que lhe cabe qua
se que exclusivamente. Reflexo disso é o fato de que apenas existem creches nas unidades prisionais femininas. Este dever atribuído à mulher gera na encarcerada um sentimento de culpa, pelo abandono dos filhos ou pelo fato de terem colocado uma criança inocente na prisão.
Ademais, o estigma associado à criminalidade feminina é muito maior do que em relação à masculina. “Para algumas famílias, a desonra de ter um membro preso, é constrangedora. Preferem fazer as crianças acreditarem estar a mãe morta[1].
Quanto á criança nascida na prisão, elas não conhece nada além daqueles muros, e, em muitos casos, não consegue se adaptar ao ambiente externo, pela sensação de estranhamento e pela ausência da mãe quando a separação faz-se necessárias por não mais poderem frequentar as creches penitenciárias. “É difícil prever o futuro de indivíduos que em sua infância tiveram experiência tão desastrosa. Até que ponto o estigma sofrido pelas mães e, necessariamente por eles compartilhado, marcará sua vida após deixarem a prisão?[2]”. Neste sentido, Soares e Ilgenfritz relatam ter encontrado, durante suas pesquisas, mais de um caso de internas que declararam ter nascido no Talavera Bruce. Abandonadas pelos familiares ainda muito novas, elas viveram de pequenas infrações e, assim, foram construindo seu caminho de volta à penitenciária[3].
Toda essa realidade pode ser melhor compreendida quando se observa o perfil da mulher encarcerada. O que ocorre no presídio masculino aqui se repete: a mulher presa no Brasil é majoritariamente jovem, afrodescendente, com baixa escolaridade, subempregada, oriunda de segmentos sociais marginalizados e, como visto nas estatísticas do tópico anterior, condenada pelo envolvimento pelo tráfico de drogas.
Assim, confirma-se a seletividade do sistema penal, vez que a situação anterior ao aprisionamento é de marginalização e vulnerabilidade social. Na sua maioria são mulheres analfabetas, advindas de famílias numerosas e com faixa etária entre 23 a 27 anos.
Mais da metade da população prisional feminina nunca frequentaram a escola ou possuem somente o primeiro grau incompleto. Entre os trabalhos mais comuns antes da prisão estão o de empregada doméstica e serviços no comércio, o que deixa bem claro a predominância de ocupações de baixa remuneração.
A prisão para tais pessoas, na verdade, dificilmente constitui um fato novo. Ela quase que se torna a continuação, sob outra forma, de uma vida social já, em si mesma, reprimida em seus aspectos essenciais. Tanto é assim que a prisão não representa um estigma para pessoas há muito tempo duplamente estigmatizadas pelo meio social: por serem mulheres e por serem pobres[4].
No que diz respeito à prestação de saúde e de assistência médica nos complexos prisionais, é cediço o descaso, tanto em relação aos homens quando em relação às mulheres, por parte do Estado. A situação do quadro feminino, contudo, é agravado diante das particularidades e das patologias associadas à fisiologia feminina, sobretudo no que tange à maternidade.
A maioria das mulheres encarceradas não recebe do Estado os produtos essenciais de higiene e asseio, como papel higiênico, pasta de dente, xampú, entre outros. O acesso fica restrito à capacidade da família em comprar e entregar esses produtos nos dias de visita. Acirrando o quadro de extremo desrespeito aos direitos da mulher, a maioria das cadeias públicas não disponibiliza absorventes íntimos para as presas. Há notícias de que aquelas que não têm família ou amigas que possam ceder o produto, passam todo o mês acumulando miolo de pão para improvisar absorventes durante o período menstrual.
Não está disponível atendimento ginecológico nas Cadeias Públicas. Como todas as equipes médicas os profissionais especializados vinculados às unidades prisionais do sistema penitenciário, os ginecologistas também não estão disponíveis nas instituições femininas. Acirrando o quadro de violação dos direitos das mulheres o Estado brasileiro não assegura atenção médica integral à mulher encarcerada. A deficiência encontrada no atendimento nas unidades do sistema penitenciário destinado aos homens se multiplica quando se trata de especialistas nas necessidades femininas. Em decorrência dessa omissão, o controle e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis também inexistem, assim como os exames de rotina de prevenção de câncer ginecológico.
De acordo com o Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil, existem presas sem qualquer atendimento pré-natal. Muitas acabam descobrindo serem soropositivas ou portadoras de outras doenças transmissíveis, como a sífilis, somente na ocasião do parto. Esta situação, além de colocar em risco a saúde do nascituro, causa um impacto psicológico profundo na mãe. Os dados colhidos mostram que, somente no ano 2006, vários partos foram realizados nos pátios ou nas celas das unidades prisionais, alguns, inclusive, na viatura policial a caminho do hospital. Devido a tais condições, há muitos registros de óbitos de recém-nascidos[5].
Além disso, existem enfermidades físicas e psíquicas, cuja susceptibilidade, embora não tenha viés de gênero, atinge preferencialmente as mulheres encarceradas. As más condições de habitabilidade, a superpopulação e a insalubridade são fatores fomentadores de doenças infecto contagiosas, como tuberculose, micose, leptospirose, pediculose e sarna. O ambiente degradante, ademais, contribui para acentuar o cenário de baixa autoestima, alimentando doenças de cunho psiquiátrico, como a depressão, melancolia, angústia, e pânico. Para além das condições desfavoráveis, a probabilidade da disseminação destas doenças é, ainda, exacerbada pela ausência de práticas de prevenção, tratamento e devido acompanhamento médico[6].
Por fim, cumpre ressaltar a própria privação das relações heterossexuais para as mulheres. Como demonstrado, o encarceramento feminino frequentemente ocasiona o rompimento de relacionamentos afetivos. São poucos os companheiros que permanecem visitando as encarceradas.
Existe um protecionismo discriminatório quando se trata de questões que envolvem a sexualidade feminina, sendo a mulher presa desestimulada em sua vida sexual devido à burocratização para o acesso à vida conjugal [...]. Através de uma análise comparativa dos procedimentos das visitas íntimas nos presídios masculinos e femininos de Porto Alegre, observou-se grande discrepância no que diz respeito à autorização de visita dos cônjuges dos presos não casados oficialmente. Na prisão masculina tal procedimento é informal, basta à companheira uma declaração por escrito de sua condição para que tenha acesso às visitas conjugais até oito vezes ao mês, duas vezes por semana. Já na casa de detenção feminina a visita é regulamentada por uma portaria da instituição. Para a apenada ter direito à visita do companheiro, este deverá comparecer às visitas semanais, sem possibilidade de relação sexual, por quatro meses seguidos e ininterruptos. Caso não falte nenhum dia, ainda dependerá da anuência do diretor da penitenciária para que a presa tenha direito à visita íntima duas vezes ao mês[7].
A atividade sexual é uma necessidade natural das pessoas, independentemente do gênero, e deve constituir um direito inalienável da presa. Mas a interna é desestimulada a manter uma vida sexual, tanto pela burocratização para o acesso à visita íntima, quanto pela repressão á prática do homossexualismo.
A natureza da prática homossexual em prisões femininas apresenta características diferentes em relação aos presídios masculinos, onde é marcada pela agressão sexual e pela violência. Entre as presas, ninguém é coagido a manter relações por meio de força física. A tendência é a manutenção de contatos repetidos e carregados de afetividade. Trata-se, majoritariamente, de um homossexualismo circunstancial, visto que as internas passam a praticá-lo somente depois de encarceradas. Essas relações certamente preenchem uma série de necessidades de natureza afetiva, psicológica e sexual[1].
Assim, ainda que o homossexualismo seja um modo de adaptação bastante recorrente em unidades prisionais femininas, a sua repressão é intensa, diferentemente do que ocorre em presídios masculinos, e, em geral, o ato constitui falta grave informal.
À posse de todos esses dados, o que se conclui é que as mulheres encarceradas são objeto de múltiplas violações, geradas pela discriminação de gênero e pela negligência do Estado. Na prática, as mulheres não são privadas apenas de seu direito de ir e vir, são também privadas de seu direito à intimidade, á saúde, à liberdade sexual, e à maternidade. É evidente a ausência de políticas penitenciárias com uma perspectiva de gênero, dotadas de sensibilidade para as peculiaridades da situação da mulher encarcerada.
Os dados referentes ao perfil da população carcerária feminina reforçam a aludida função seletiva e classistas do sistema de justiça criminal, comprovando que o direito penal tem como alvo as classes marginalizadas da sociedade e possui uma gênese masculina.
[1] LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, p. 102-103.
[1] OLIVEIRA, Odete Maria de. A mulher e o fenômeno da criminalidade, p. 165.
[2] LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, p. 42.
[3] SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: Vida e Violência atrás das grades, p. 27.
[4] PERRUCI, M. F. de A. Mulheres Encarceradas, p. 75.
[5] CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL et al. Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil, p. 32.
[6] CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL et al. Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil, p. 27-28.
[7] BUGLIONE, Samantha. A mulher enquanto metáfora do direito penal, p. 212.
[1] SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: Vida e Violência atrás das grades, p. 57.
[2] LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, p. 85.
[3] Cf. “Art. 83 - § 2º. Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”. / “Art. 89 - [...] a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”.
[4] CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL et al. Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil, p. 40