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Evasão de divisas:

da inconstitucionalidade do tipo penal ante ao direito constitucional de liberdade de locomoção

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12/03/2016 às 13:50
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Caracteriza-se como ilegítima e ofensiva ao princípio da intervenção mínima vigente no direito penal a eleição da política governamental de proteção às reservas cambiais do país através da criminalização da conduta de remeter divisas ao exterior.

Evasão – Divisas – Lavagem de dinheiro - Câmbio – Moeda – Bem Jurídico Protegido – Constitucionalidade – Direito Penal Econômico

RESUMO: Caracteriza-se como ilegítima e ofensiva ao princípio da intervenção mínima vigente no direito penal a eleição da política governamental de proteção às reservas cambiais do país através da criminalização da conduta de remeter divisas ao exterior como objetividade jurídica no campo da ultima ratio. Ademais, a Constituição Federal de 1988 assegura a liberdade de locomoção, conforme o Art. 5o, XV, que preleciona, in verbis: “XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Destarte, o artigo 22 da Lei 7.492/1986 impõe uma excessiva intervenção penal que não condiz com o estado democrático de direito vigente na atualidade. Devido às posteriores criminalizações efetuadas pelas Leis 8.137/90, que protege a ordem tributária, e Lei no 9.613/98, que tipifica o crime de lavagem de dinheiro, além da previsão no Código Penal Brasileiro dos crimes contra as finanças públicas (artigos 359-A a 359-H do CPB), não se justifica mais a existência do delito de evasão de divisas, tendo em vista que os crimes mencionados acima desempenham muito bem a tarefa de proteção do bem jurídico que se pretende preservar com a criminalização da conduta: a política econômica estatal latu sensu. Com efeito, ocorre o malferimento dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em razão da estipulação de pena privativa de liberdade para o agente que pratica a conduta abrangida pelo tipo penal em comento. Conclui-se que o crime em estudo é eivado de inconstitucionalidade material.


INTRODUÇÃO

O presente estudo objetiva analisar a compatibilidade do crime de evasão de divisas com a Constituição da República de 1988, bem como aferir se o referido crime ofende o princípio da ultimo ratio do Direito Penal.

Criado pela Lei 7.492/1986, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional e dá outras providências, a criminalização da conduta objeto desta pesquisa foi fruto de um contexto econômico caracterizado pela escassez de divisas internacionais, em que havia uma necessidade inexorável do governo federal de acesso fácil à moeda estrangeira, para fazer frente aos pagamentos internacionais, em virtude das sucessivas crises cambiais, período no qual o Brasil vivia uma situação de alta dependência do capital externo para equilíbrio do balanço de pagamentos. Dessa forma, os controles cambiais eram focados na restrição de fluxos de moeda estrangeira.

Assim, caminhando na direção contrária ao direito constitucionalmente assegurado, a criminalização da chamada evasão de divisas suprimiu a garantia constitucional estatuída no inciso XV no artigo 5o da Lei Maior, da livre locomoção no território nacional em tempo de paz, impondo uma excessiva intervenção penal que não condiz com o estado democrático de direito vigente na atualidade.

Nesse contexto, quase trinta anos após o surgimento do referido crime, já é possível fazer uma análise que seja imune às influências políticas, econômicas e sociais próprias daquela época. É aí, portanto, que reside a importância do presente estudo: analisar, de forma serena e, ao mesmo tempo, com precisão científica, a compatibilidade entre o delito de evasão de divisas e a Constituição, refletindo acerca dos riscos que a criminalização dessa conduta pode acarretar ao estado garantista atualmente vigente no Brasil.


ANÁLISE DA COMPATIBILIDADE DO CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Brasileira de 1988, no Título II, artigo 5o, estabeleceu os principais direitos e garantias individuais, os quais não podem ser restringidos, nem mesmo por Emenda Constitucional (artigo 60, § 4o, inciso IV), pois constituem-se em cláusulas pétreas.

Entre esses comandos supremos, encontra-se o inciso XV, do artigo 5o, cuja dicção é a seguinte, ipsis litteris: "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". Referido direito inalterável - até mesmo por norma de nível constitucional -, tem respaldo nos próprios princípios fundamentais do Direito estabelecidos em convenções internacionais. Não faz sentido, numa democracia, ou num Estado Democrático de Direito vigente atualmente, que as pessoas não possam se movimentar livremente, entrando e saindo do país, sem restrições.

Conforme ensina Ivens Gandra da Silva Martins[1],

É bem verdade que o legislador maior referiu-se, no texto mencionado, a estar assegurado "nos termos da lei", o que exige do intérprete uma reflexão maior sobre a matéria. Esta reflexão já foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal, o STF, em sucessivos julgados, segundo os quais a lei apenas pode explicitar o conteúdo do preceito constitucional, mas nunca condicioná-lo ao alvedrio do legislador inferior. Em outras palavras, é o legislador ordinário que se subordina ao constituinte e não o constituinte ao legislador ordinário, que apenas pode esclarecer o princípio constitucional que lhe cabe regular. Nada pode criar. Nada pode modificar. Não pode atuar, além de suas modestas forças de intérprete oficial.

O ex-Ministro do Supremo Trbunal Federal, Moreira Alves, acertadamente declarou que "a Constituição não se interpreta por lei infraconstitucional, mas é a lei infraconstitucional que se interpreta pela Constituição"[2].

Para todos os casos em que a Constituição outorgue ao legislador maior o poder de regulamentar, leva, evidentemente, no caso concreto, a perceber que o legislador ordinário ou a autoridade administrativa do Banco Central encarregada de expedir atos administrativos sobre a matéria não podem impedir a entrada ou a saída de recursos do país de qualquer cidadão brasileiro, desde que sejam legítimos, declarados para a Receita Federal e não decorram de operações ilícitas, tais como de narcotráfico, corrupção etc.

Destarte, não há que se falar em saída ou entrada ilícita de recursos, nem se justificam as permanentes manifestações de autoridades administrativas de que há irregularidades na remessa de recursos para o exterior, sempre que tais recursos estejam legitimados e tenham sido declarados à Receita Federal do Brasil para efeitos fiscais.

Ademais, os titulares de recursos financeiros no exterior têm total liberdade para aplicar suas disponibilidades como bem desejarem fora do país, pois o constituinte não estabeleceu limitação dessa espécie, sendo de manifesta inconstitucionalidade qualquer legislação ou ato normativo proveniente do Poder Executivo que impuser exigências restritivas à livre aplicação desses recursos fora do país ou mesmo que exigir seu eventual retorno.

Para o constituinte brasileiro, a lucratividade das aplicações financeiras no exterior deve ser declarada perante a Receita Federal para compor a "aquisição de disponibilidade econômica", a que se refere o artigo 43, caput, do Código Tributário Nacional, in verbis: O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica. É forçoso reconhecer que os rendimentos destas aplicações devem ser declarados e pagos os tributos respectivos, nos termos da legislação em vigor ou naqueles dos tratados contra dupla tributação.

Cabe mencionar que não se pode considerar que a desvalorização da moeda nacional perante a moeda estrangeira, que cidadão brasileiro ou residente no Brasil possua no exterior, constitua rendimento. Referida conclusão é óbvia, pois o brasileiro que adquire dólares ou euros, não obtém nova aquisição de disponibilidade econômica decorrente do fato de a moeda nacional desvalorizar-se. O indivíduo continua com os mesmos dólares ou euros, com a diferença de estarem preservados das desvalorizações cambiais ocorridas no país.

Tem-se que a questão das remessas para o exterior de recursos de brasileiros ou de residentes é exclusivamente uma questão de natureza fiscal, podendo apenas a legislação impor restrições à saída se os recursos forem adquiridos de forma ilícita ou não declarados ao Fisco, tendo em vista que, neste último caso, tais recursos devem garantir o pagamento de eventuais tributos sonegados, sendo mais difícil à Receita cobrá-los no exterior do que em território nacional.

Fora desta hipótese de interesse exclusivamente tributária, as remessas efetuadas são perfeitamente lícitas, não podendo ser impedidas, nem o legislador infraconstitucional impor limitações não autorizadas pela Carta Magna.


OFENSA AO PRINCÍPIO DA ULTIMA RATIO DO DIREITO PENAL

No que diz respeito à aplicação do princípio da intervenção mínima ao delito em estudo, revela-se importante no cenário penal a discussão em torno da legitimidade da institucionalização dos crimes de perigo abstrato, como o tipificado pelo artigo 22 da Lei 7.492/1986. Consoante lição de Cezar Roberto Bitencourt[3],

O crime de perigo concreto é aquele que precisa ser comprovado, ou seja, deve ser demonstrada a situação de risco corrida pelo bem juridicamente protegido. O perigo, portanto, somente é reconhecível mediante uma valoração subjetiva da probabilidade da superveniência de um dano. O perigo abstrato é presumido juris et de jure. Este não precisa ser comprovado, pois a lei se contenta com a mera conduta que pressupõe perigosa.

A problemática reside em conciliar a criação dos tipos penais de perigo abstrato em cotejo com os princípios limitadores do Direito Penal, mormente no que diz respeito à necessidade de interferência da esfera criminal. Com o surgimento do fenômeno da constitucionalização do Direito Penal, a existência do perigo concreto constitui pressuposto à tipificação penal. A sanção penal apenas se justifica nas hipóteses em que a conduta do agente tenha submetido o bem jurídico tutelado ao menos a um perigo real de lesão, sob pena de não restar legitimada a intervenção penal.

Nada obstante o avanço perpetrado pelo advento da Lei 7.492/1986, que criminalizou os chamados delitos de colarinho branco, é importante ter em mente que a utilização irresponsável do recurso da tipificação de crimes de perigo abstrato para proteção de bens jurídicos de menor potencial ofensivo pode ser tida como verdadeira formação de um Direito Penal de Perigo, a exemplo do que ocorrera na Alemanha nazista.

Cabe mencionar que a utilização do recurso da criminalização desenfreada possui forte relação com a produção social de grande parte da riqueza, que vem acompanhada por igual produção de riscos. Conforme são alcançados maiores índices de forças produtivas humanas e tecnológicas, surgem muitos riscos até então desconhecidos. Também a dificuldade de prova, nesse peculiar segmento de crimes financeiros e econômicos, estimulou, numa interpretação equivocada, os legisladores modernos na tipificação dos crimes de perigo.

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Dessa forma, essa sociedade complexa e em contínua expansão, onde a violência toma proporções cada vez maiores, dá azo ao surgimento do Direito Penal de Risco, caracterizado por excessiva intervenção estatal, muitas vezes desnecessária, como na criminalização em comento, e por uma legislação simbólica, desprovida de princípios axiológicos ou garantistas.

Com efeito, a relação entre os delitos de perigo abstrato e os princípios limitadores do Direito Penal clássico pode ser tida como conflituosa. A necessidade do Estado de tutelar bens jurídicos de fundamental importância para a coletividade não deve aniquilar outros valores fundamentais do Direito, em especial, se tais valores funcionarem como garantia do cidadão contra eventuais arbitrariedades praticadas pelo Poder Público.

A primeira baliza que se põe diante dos crimes de perigo abstrato é o Princípio da Lesividade, corolário do princípio da ultima ratio. De acordo com tal axioma, o Direito Penal deve interferir somente nas relações sociais quando existir lesão ou perigo de lesão a determinado bem juridicamente relevante. Dessarte, não ensejam a tutela penal atitudes meramente internas, que não passam do plano da cogitação, não havendo quaisquer atos executórios; condutas que não excedam o âmbito do próprio autor ou mesmo aquelas que não afetem qualquer bem jurídico. Nessa esteira, Nilo Batista44 preleciona que,

O Direito Penal só pode, de acordo com o princípio da lesividade, proibir comportamentos que extrapolem o âmbito do próprio agente e que venham atingir bens jurídicos de terceiros, conforme o brocardo nulla lex poenalis sine injuria.

O princípio da intervenção mínima, no Direito Penal, por sua vez, deve ser compreendido sob dois aspectos primordiais. Inicialmente, deve ser entendido como um princípio de análise abstrata, servindo de orientação ao legislador criminal no momento da criação ou da revogação de tipos penais. Num segundo momento, confunde-se com a própria natureza subsidiária do Direito Penal, que deve ser alçado à qualidade de ultima ratio, em matéria de intervenção estatal.

Nessa linha de raciocínio, ao serem criadas as figuras de perigo abstrato, é relevante ponderar a real necessidade de intervenção do Direito Penal na tutela de determinados bens jurídico-penais. Demais formas de tutela e atuação estatal já se revelam eficazes na persecução desse objetivo, verbi gratia, o poder de polícia do Estado, nos ilícitos de natureza ambiental, por exemplo.

Depreende-se que se tutelam, por meio dos crimes de perigo presumido, como o crime previsto no artigo 22 da Lei 7.492/1986, bens jurídicos que poderiam ser protegidos com bastante eficácia por intermédio de outras esferas do Direito, como o Direito Administrativo, o Direito Tributário e o Direito Civil.

Tem-se que a Ciência Penal mostra-se inadequada e até morosa para oferecer resposta satisfatória para a sociedade na proteção de certos bens. Ademais, a utilização simbólica do Direito Penal sem o resultado esperado configura grave atentado à própria essência do Direito Penal, como ultima ratio, comprometendo sua eficácia.

O Direito Penal deve ser utilizado pelo Estado unicamente como pretendido foi em sua elaboração, ou seja, como a ultima ratio e não como a prima ou sola ratio, sob pena de extinção do Estado Democrático de Direito. E, nesse sentido, faz-se mister empregar o mesmo tratamento quando o assunto for a privação de liberdade do acusado/condenado.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM[4], posicionou-se, com inteira propriedade, no sentido de haver

Um agigantamento da criminalização primária, que – para aqueles que querem ver – revela a fragilidade e a ineficácia das instâncias formais de criminalização secundária (Polícia, Ministério Público, Judiciário, Sistema Penal etc). Para isso, faz-se tabula rasa de conquistas históricas orientadas à limitação do poder punitivo, volatizando-se a ideia de bem jurídico penal e convertendo-se a resposta criminal na prima ratio para a solução dos problemas sociais. Relações econômicas são exaustivamente usadas como objeto da tutela penal, sempre recrudescida, num movimento de expansão que parece não encontrar fim. Consequencia do uso – melhor seria, do mal uso – do direito penal como solução para todos os embates humanos. Mais preocupante, entretanto, é a reação letárgica da sociedade a esse modelo repressivo. O discurso penal materializa o poder simbólico – ou seria dele uma manifestação? - pois conquista, seduz, envolve as pessoas sem que essas se dêem conta da violência que representa. Em lugar de funcionar como instrumento de contensão do arbítrio estatal limitando o âmbito de ingerência do poder punitivo na vida dos cidadãos, o direito penal simbólico amplia esse campo até as raias do indeterminado, sempre apoiado na falácia do preventismo e do retributivismo.

Não se pode olvidar que na década de 80, em que foi publicada a Lei dos Crimes Contra o Sistem Financeiro Nacional, acreditava-se que o problema socioeconômico do país só seria resolvido com a edição de legislação penal, a fim de se garantir a punição efetiva dos criminosos do colarinho branco.

Nada obstante a implantação de políticas econômicas mais acuradas, concluiu- se, equivocadamente, que o Direito Penal era o meio de controle social apto a solucionar os conflitos econômicos, precipuamente pela garantia de efetiva punição dos delinquentes. 

Em razão das posteriores criminalizações efetuadas pelas Leis 8.137/90, que protege a ordem tributária, e Lei no 9.613/98, que tipifica o crime de lavagem de dinheiro, além da previsão no Código Penal Brasileiro dos crimes contra as finanças públicas (artigos 359-A a 359-H do CPB), não se justifica mais a existência do delito de evasão de divisas, tendo em vista que os crimes mencionados acima desempenham muito bem a tarefa de proteção do bem jurídico que se pretende preservar com a criminalização da conduta: a política econômica estatal latu sensu.

Ademais, ocorre o conflito aparente de normas no Direito Penal Brasileiro quando duas ou mais leis penais (ou dois ou mais artigos de lei) vigentes são aplicáveis para a mesma infração cometida, tendo como requisito um único fato jurídico abrangido por duas ou mais regras.

A resolução dos conflitos aparentes de normas acontece através da análise dos princípios da especialidade, da subsidiaridade, da consunção/absorção e da alternatividade, todos decorrentes do princípio da intervenção mínima, sob o fundamento de que o Estado não pode punir duas vezes pela mesma conduta.

A peculiaridade dessa problemática reside no fato de que se convencionou afirmar que a distinção entre os crimes de evasão de divisas e o crime tipificado pelo artigo 1o da Lei 8.137/90 (sonegação fiscal) seria a tutela de bens jurídicos diferentes. Em tese, o bem jurídico protegido pelo crime de evasão de divisas é a regular execução da política cambial, como exaustivamente explanado em tópicos anteriores, e o da Lei 8.137/90, a preservação da ordem tributária.

Ocorre que os bens jurídicos tutelados pelo artigo 22 da Lei 7.492/1986 e pela Lei 8.137/90, apesar de distintos, são muito semelhantes. Há uma tênue linha que divide os bens jurídico-penais protegidos pelas referidas leis. Na verdade, ambas as legislações protegem, por vias diferentes, os mesmos bens jurídicos.

Sobre essa controvérsia, importante mencionar ensinamento de Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fábio M. De Almeida Delmanto[5] :

O bem juridicamente tutelado pela Lei 7.492/1986, portanto, é, como já afirmado, eminentemente supra-individual, e amplo, abrangendo, inclusive, a fé pública dos negócios em geral, não obstante, por via reflexa, acabe protegendo interesses individuais como o patrimônio de determinados investidores e a sua circulação. Assim, a Ordem Econômica acabou sendo tutelada tanto pela Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional quanto pela Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo.

Nesse diapasão, importante não confundir o conceito de bem jurídico com o de objeto da conduta. Sabe-se que o bem jurídico relaciona-se com o plano axiológico da tutela penal, devendo estar em consonância com o quadro valorativo constitucional.

Efetivamente, o bem jurídico se apresenta como um juízo positivo de valor que integra dada realidade social que no momento da sua tipificação criminal é abrangido por uma abstração e generalidade pelo legislador, produzindo, dessa forma, desconexão com suas formas de determinação.

A conclusão a que chegamos de que as Leis 7.492/1986 e Lei 8.137/90 tutelam o mesmo bem jurídico, qual seja, a ordem econômica, demonstra ser absolutamente possível a aplicação do princípio da consunção, no caso da conduta de remeter divisas para o exterior com o intuito de burlar o Fisco, já que se trata do mesmo fato, com unidade de bens jurídicos lesados e pluralidade de dispositivos legais que regem a matéria, caracterizando o conflito aparente de normas.

Nessa hipótese, cujo objetivo da conduta de remeter as divisas para o exterior é sonegar tributos, tratando-se do crime-fim, a conduta da evasão de divisas se constitui como mero crime-meio. Logo, depreende-se que o envio de dinheiro para fora do país é parte integrante do iter criminis da sonegação fiscal, como instrumento para a consecução do crime fim, devendo, pois, neste caso, o delito de evasão de divisas ser absorvido pelo crime contra a ordem tributária, como corolário da aplicação do princípio do no bis in idem.

Isso porque é fundamental perquirir acerca do dolo do agente ao praticar a conduta, que no caso foi o de sonegar tributos, e não promover evasão cambial. Destarte, ainda que o crime fim seja punido de forma mais severa, como no caso analisado, o crime-fim o absorverá, tendo em vista que o crime-meio estará localizado meramente na linha de desdobramento de lesão ao bem jurídico.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4a Região[6], cujo relator do processo, atualmente Ministro do STJ, Gilson Dipp decidiu que extinguindo a punibilidade do crime contra a Ordem Tributária, não subsiste o delito de evasão de divisas, em decisão cuja ementa é a seguinte:

Ementa: 1. Penal. Delito contra a ordem tributária e contra o Sistema Financeiro Nacional. Extinção da punibilidade pelo pagamento. Consumação. Extinção da punibilidade. 2. Segundo regras do Direito Penal, a conduta se consuma com a prática do delito, ainda que outro seja o momento do resultado (ART-4 do CP-40), ou seja, quando é feita a falsa declaração com o fim de sonegar impostos. O ano de exercício do lançamento do tributo é de índole tributária e não penal. 3. Uma vez ocorrida a extinção da punibilidade com relação ao delito perpetrado contra a ordem tributária, não subsiste o crime contra o sistema financeiro nacional, eis que as falsas declarações de câmbio emitidas tiveram o fim claro e específico de enganar o fisco, sem maior potencial lesivo. Deve-se ter presente a intenção das fraudes, e esta, inequivocamente, era a de burlar o fisco, não remanescendo daí conduta delituosa alguma, mesmo que diversos os bens jurídicos tutelados. 4. Recurso a que se nega provimento.

No voto, o Relator do acórdão demonstra de forma indubitável a aplicação do princípio da consunção/absorção ao verificar que a conduta do agente foi direcionada para a prática de sonegação fiscal, e não de remeter divisas para o exterior:

Os denunciados pelo que se abstrai dos autos emitiram falsas declarações nas operações de câmbio com o fim claro e específico de enganar o fisco. Em sendo assim, a conclusão é de que com as falsificações das operações de câmbio, praticaram apenas um delito, ou seja, o de sonegação fiscal. Aplica- se ao caso, o princípio da consunção, conforme bem analisado na sentença monocrática.

Destarte, visando à aplicação de um Direito Penal Garantista, torna-se absolutamente necessário revisar os fundamentos de aplicação e construção do princípio da consunção adequando-os a uma visão constitucionalista em prol de um direito penal mais justo e menos simbólico, em observância ao princípio da intervenção mínima.

Com efeito, o delito de evasão de divisas afigurava-se ilegítimo em sua origem, considerando a ratio que inspirou sua edição. A própria doutrina, inobstante com parcela de razão criticando a omissão do legislador penal no âmbito do sistema financeiro nacional, reconhecia que o bem jurídico protegido na hipótese deveria direcionar-se à correta execução da política cambiária estatal, visando a coibir as condutas que contra ela ofendam os direitos delegados ao Banco Central, no campo específico das suas prerrogativas de fazer funcionar regularmente o mercado cambial, bem como o normal processamento do comércio exterior.

Entretanto, insta enfatizar que políticas econômicas governamentais, sejam elas econômicas, sociais ou culturais, emergenciais ou não, jamais podem ser implementadas pela via penal, ao menos num Estado que pretenda autodenominar-se democrático e de direito.

O tipo penal de evasão de divisas, por seu patente anacronismo, consubstancia, atualmente, um dispositivo dissonante agredindo a sintonia do regime cambial adotado pelo país. Ademais, a criminalização das conduta típicas pelo artigo 22 da Lei 7.492/1986 não tem lugar dentro dos processos de integração econômica internationes que se desenvolvem ao redor do mundo, pois, como bem observado pelo eminente jurista e professor José de Faria Costa[7], “se todo comportamento, quer individual, quer colectivo, está inexoravelmente determinado pelo fenómeno da globalização, então, os comportamentos criminais, também eles não podem deixar de ser determinados por essa mesma realidade.”

Dissecada a ilegitimidade da ratio fundante do tipo penal de evasão de divisas, percebe-se consistir em mera função de controle cuja carga ética foi fincada pela norma, exposto seu descompasso com o regime cambial hodiernamente em vigor no Brasil, que revela sua desnecessidade à vista do caráter fragmentário do direito penal.

4.3. O malferimento da garantia constitucional da livre locomoção no território nacional

Conforme explanado, existe uma garantia constitucional que autoriza todos os brasileiros e residentes no Brasil a transitarem livremente pelo país ou até mesmo atravessar suas fronteiras levando consigo seus bens.

Nesse sentido, vale enfatizar que resoluções do Banco Central, Decretos, Atos Normativos, Instruções Normativas, Parecereces Normativos ou quaisquer outros atos administrativos que veiculem manifestações do oriundas do Poder Executivo não são lei e nem têm o condão de explicitar o inciso XV do artigo 5o da Constituição Federal.

É evidente que cabe ao legislador apenas a função explicitadora, não podendo aumentar, restringir ou alterar o alcance da norma constitucional. Se pudesse, claramente, seria a Constituição que se subordinaria à legislação complementar ou ordinária, e não estas à Constituição.

Considerando que apenas pode explicitar o conteúdo dos comandos supremos, pergunta-se: poderia o legislador infraconstitucional limitar a livre circulação de bens e pessoas, constante do inciso XV, do artigo 5o, apenas permitindo a saída de bens a determinadas circunstâncias e não a outras? Obviamente que a resposta é não, pois, se o fizesse, estaria impondo um impedimento à livre circulação de bens para o exterior, que não consta do dispositivo constitucional. Pela Constituição Federal de 1988, qualquer pessoa pode trazer e levar seus bens do país, pois é uma garantia constitucional que nenhuma lei ou mesmo emenda constitucional pode suprimir. O legislador inferior jamais pode se opor ao legislador superior.

Nessa esteira, de conformidade com essa linha de raciocínio, qualquer dispositivo legal que restrinja a saída de bens, a título de “evasão de divisas”, é de manifesta inconstitucionalidade. Não está aqui se negando a prerrogativa a que tem direito o Governo – e isto de forma inequívoca — de verificar se aqueles bens não são frutos da sonegação, corrupção, narcotráfico ou qualquer outro ilícito, podendo e devendo punir o agente infrator, seja ele brasileiro ou não, que promova essa movimentação, jamais a título evasão de divisas, mas por sonegação tributária, peculato, crime de lavagem de dinheiro ou outro crime tenha sua conduta tipificada pela legislação penal.

Por sua vez, o contribuinte que cumpre com suas obrigações fiscais, aquele que tem seus bens devidamente declarados, está autorizado, pela Constituição, a fazer circular seus bens dentro e fora do país, de acordo com a sua vontade, já tendo o Poder Judiciário, ao realizar controle difuso, derrubado ações do Ministério Público Federal que pretendiam enquadrar como evasão de divisas a conduta de cidadãos que levavam para fora recursos declarados e de sua legítima propriedade

Nessa esteira, já se manifestou o Tribunal Regional Federal da 3a Região[8] sobre a impossibilidade de consumação do delito quando o dinheiro trazido consigo ao território nacional pelo indivíduo seria devidamente vistoriado pela Polícia Federal, ante a aplicação do inciso XV do artigo 5o da CF/88, in verbis:

PENAL. LEI 7.492/86. ART. 22. EVASÃO DE DIVISAS. ART. 5o, XV, CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLVIÇÃO. I- A ATITUDE DO DENUNCIADO, COLOCANDO OS DÓLARES NA MALETA DE MÃO, A QUAL NECESSARIAMENTE SERIA VISTORIADA PELO RAIO X DA POLÍCIA, TORNOU IMPOSSÍVEL A CONSUMAÇÃO DO DELITO. II- INEXISTIU TENTATIVA DE CRIME, DADO QUE O CRIME IMPOSSÍVEL NÃO CONSTITUI FIGURA TÍPICA PENAL. III- SEM DOLO ESPECÍFICO NÃO SE CONSUMA O DELITO CAPITULADO NO ART. 22 DA LEI 7.492/86. IV- AS PROVAS COLHIDAS NOS AUTOS CONVENCEM QUANTO ÀS JUSTIFICATIVAS DADAS PELO APELADO, QUE ADQUIRIRA A MOEDA NO MERCADO FORMAL, VIAJAVA COM REGULARIDADE AO EXTERIOR E COMO É EXTREMAMENTE ECONÔMICO, CUIDOU DE JUNTAR AO MONTANTE ATUAL, AS SOBRAS DE VIAGENS ANTERIORES, AS QUAIS CONSTITUÍRAM MERA SEGURANÇA FINANCEIRA ÀS INCERTEZAS DA VIAGEM, QUE DEVERIAM RETORNAR EM PARTE AO PAÍS, ATÉ SEREM ALVO DE SEMELHANTE COMPORTAMENTO QUANDO DAS PRÓXIMAS FÉRIAS. V- TENDO ADQUIRIDO AS DIVISAS REGULARMENTE NO MERCADO FORMAL, OS DÓLARES APREENDIDOS SÃO PATRIMÔNIO DO APELADO. AO CASO, POIS, É DE SER APLICADO O DISPOSTO NO ART. 5o, XV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE GARANTE AOS CIDADÃOS O LIVRE INGRESSO, PERMANÊNCIA E SAÍDA DO PAÍS, COM OS SEUS BENS. VI- HAVENDO CIRCUNSTÂNCIAS QUE EXCLUEM A PUNIBILIDADE DO ACUSADO, A R. SENTENÇA DEVE SER MANTIDA EM TODOS OS SEUS TERMOS. VII- APELAÇÃO CRIMINAL IMPROVIDA

No mesmo entendimento o Tribunal Regional Federal da 2a Região[9] ao conceder habeas corpus a estrangeiro que não adquiriu a moeda trazida consigo ao território nacional que não foi adquirida no governo brasileiro, senão vejamos:

HABEAS CORPUS. EVASÃO DE DIVISAS. SONEGAÇÃO FISCAL. - Paciente alemão residente na Alemanha, portando dólares de origem lícita em bagagem de mão ao embarcar para seu país, não comete crime de evasão de divisas, se não adquiriu a moeda do governo brasileiro. Constituição Federal, artigo 5o, XV. Não se pode imputar crime de sonegação fiscal, antes de decisão da autoridade fiscal competente, impondo o tributo. - Habeas corpus deferido

Destarte, nada obstante a criminalização das condutas de remessa de divisas para o exterior efetuda pela Lei dos Crimes do Colarinho Branco, a jurisprudência majoritária, acertamente, têm reconhecido a garantia estatuída pelo inciso XV do artigo 5o da Carta Maior, assegurando o direito à livre locomoção de qualquer pessoa com seus bens no território nacional em tempo de paz.

Ainda assim, a aplicação pelos citados tribunais do dispositivo constante da Carga Magna, por si só, não se mostra suficiente para garantir a efetiva justiça aos acusados do cometimento do delito de evasão de divisas, tendo em vista a sua evidente inconstitucionalidade, dado que não cabe a uma norma inferior limitar uma garantia assegurada pela Constituição, elevada inclusive ao status de cláusula pétrea, situado topograficamente no título da Carta Magna dedicado aos direitos fundamentais.

Com efeito, estamos diante de uma inconstitucionalidade material, pois os atos normativos emanados do Poder Executivo, através do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetário Nacional, vão de encontro ao que está estipulado pela Constituição Federal de 1988, sendo certo que não deveriam ter o condão de obrigar os jurisdicionados, em razão do seu status infralegal.

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Sobre a autora
Natalia de Rosalmeida

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSALMEIDA, Natalia. Evasão de divisas:: da inconstitucionalidade do tipo penal ante ao direito constitucional de liberdade de locomoção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4637, 12 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46262. Acesso em: 5 nov. 2024.

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