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Processo disciplinar e farsa jurídica

06/06/2016 às 15:03
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Faz-se um balanço da insegurança jurídica nos processos administrativos disciplinares, instaurados sem juízo de admissibilidade, instruídos de improviso e julgados sem os critérios da lei.

“As coisas não mudam; nós mudamos.”

(Henry David Thoreau)

O que se assiste no país em relação aos processos disciplinares é algo que enoja o profissional da advocacia dedicado, com honradez, ao seu ofício e alinhado, por vocação, aos primados da ciência e da justiça. Naquilo que corregedorias e comissões denominam de autos, invariavelmente há capas com papéis desconexos; amontoados de documentos que a burocracia agrupa sem qualquer lógica ou método. De nada valem os comandos de leis processuais; as próprias orientações de órgãos controladores são desconhecidas ou, se conhecidas, abusadamente desprezadas por quem deveria aplicar.

Enquanto os processos judiciais têm ritmo, andam dentro de um sistema pré-estabelecido, as ações administrativas são conduzidas ao improviso e, como trens desgovernados, é alta a probabilidade de produzirem desgraças.

A Constituição Federal equiparou os processos administrativos aos processos judiciais, o que significa que não existe diferença entre funcionário e réu para efeitos de segurança jurídica nos respectivos processos a que respondem. À sombra desse equilíbrio deve repousar o respeito à dignidade da pessoa humana, independentemente de quem seja o acusado e qual seja a acusação. Não obstante essa equivalência jurídica, é de fácil constatação que enquanto aos assassinos confessos e aos réus da pior índole são asseguradas as garantias do devido processo legal, agentes do serviço público, muitos deles com a vida honrada, são atropelados pelo rolo compressor de processos disciplinares instaurados sem juízo de admissibilidade, instruídos ao bel prazer e julgados à revelia de critérios técnicos.

O regime militar que vigorou no Brasil por duas décadas ficaria ruborizado com agressões que atualmente são feitas à honra, à carreira e à vida de servidores. Lançados sem pressupostos no bojo de processos que são farsas jurídicas, experimentam tortura psicológica ao nível das piores ditaduras. Muitos, acometidos de doenças psicossomáticas, perecem no caminho; outros, invadidos pela depressão, buscam a solução extrema do suicídio.

Prerrogativas da advocacia – como acesso aos autos, o direito de manifestação e o direito de ver as razões consideradas – são frequentemente tratadas com desprezo nos balcões de órgãos públicos. Teses sustentadas com esmero resultam ignoradas sem a devida motivação; ou os arrazoados para desconstituí-las são desprovidos de mínimo amparo na ciência jurídica.

A exemplificar, servidor de uma das mais relevantes carreiras de Estado foi demitido sem que contra ele houvesse qualquer prova nos autos. Mas a conclusão da administração foi:

“(...) o fato de não existir provas nos autos, ora sob análise, não significa, de pronto, a não responsabilidade.”[1]

Ou seja, a inexistência de prova não tem qualquer repercussão. A prova é um detalhe, como sustentava o guerrilheiro Ernesto Che Guevara, mito inadvertidamente celebrado por gerações:

“Para mandar homens para o pelotão de fuzilamento não é necessária nenhuma prova judicial. Estes procedimentos são um detalhe arcaico burguês.”

Inexistência de provas e provas obtidas por meios ilícitos são recorrentes nas ações disciplinares intentadas pela administração federal. E não há, no espaço administrativo, possibilidade real de reconhecimento do arbítrio. Diz-se, em relação a uma Corregedoria federal em São Paulo, por exemplo, que quem advoga perante ela está apto a atuar em qualquer tribunal de exceção do mundo.

Nesse contexto, os advogados têm sido meros coadjuvantes de um teatro de horror. As probabilidades de mudança de resultado ao longo de um processo disciplinar estão significativamente aquém do sucesso obtido pelos profissionais nas ações criminais, o que demonstra, por si só, que os critérios de aferição não são balizados pela ciência jurídica.


O combate à corrupção

A corrupção escancarada, associada a negociações espúrias entre Governo e Parlamento, campeia em grandes espaços da vida nacional; em contraponto, aos servidores são debitados os males nacionais. Todo semestre, com lustre nas palavras, o órgão controlador da União apresenta relatório com o número de cabeças decepadas ao longo do período. Sob o rótulo de corruptos demitidos, estão muitos funcionários dignos; são pessoas com a vida ao serviço da causa pública, que por uma fatalidade da burocracia – ou por ações de narcisistas destrutivos –, acabam esmagadas pelo rolo compressor do sistema.

Há relatos (e provas) de funcionários que foram a óbito; de internações hospitalares em quadros de gravidade, de suicídios de inocentes que tiveram as vidas particulares destruídas a partir desses processos instaurados sem razão ou decididos sem justiça. Nessa trilha, um alto funcionário do Estado brasileiro, jogado na máquina trituradora de carreiras, resultou internado em emergência cardíaca, submetendo-se às pressas a delicada intervenção cirúrgica. Por trás do incidente, a negativa de acesso aos autos, mesmo aos procuradores habilitados no processo; e decisões tomadas em surdina, sem que a defesa pudesse compartilhar do andamento da causa.[2] Em ambientes de tortura psicológica como esse a dignidade dos cidadãos é aos poucos esfacelada.

Mas o clima favorece o abuso: tudo vale, quando alguém sustenta que a truculência faz parte do combate à corrupção. Mentira danosa: a corrupção não se combate de improviso, colocando na mira do pelotão pessoas indefesas, calando as suas vozes para que não se proclamem inocentes. A corrupção, o branqueamento de capitais surrupiados do erário e o crime organizado dentro das organizações oficiais exigem enfrentamento profissional, o que é substancialmente diferente do que fazem os assassinos de carreiras, os torturadores de almas, os que elegem funcionários de quinto escalão para serem apresentados ao público como bandidos; ou entregues à saciedade dos que querem castigo sem examinar se procede.


O Judiciário imprestável

No mesmo compasso de absoluto descaso com a dignidade de terceiros, o Poder Judiciário não se mostra receptivo às causas que têm como autor o servidor do Estado. O papel timbrado da União e a rubrica de autoridades impressionam de tal ordem a muitos magistrados, que vão muito além daquilo que o Direito admite como presunção de legitimidade e legalidade dos atos administrativos. Trata-se de escandalosa aceitação de qualquer papel fabricado em órgão público como sendo manifestação do Olimpo.

A ilustrar, um servidor envidou incontáveis tentativas de conseguir uma prosaica certidão de uma Corregedoria federal[3]. O documento foi sucessivamente negado. Buscou a tutela jurisdicional, onde não teve melhor sorte: o pedido adormeceu na mesa de magistrado por meses[4] para, ao fim, receber sentença que declarou que a administração não devia resposta certificada ao cidadão. Causa simples. Direito líquido e certo. Urgência do documento comprovada para exercício das suas razões. Mas a Justiça, que é cega, mostra-se surda aos apelos da parte e paralítica ao não se mover para prestar seu ofício.

Pelo amor dos céus, pelas boas almas do Paraíso, pelos deuses do Olimpo, alguém explique: por que os juízes deixaram de ler os autos? Há processos que ficam dois ou três anos à espera de sentença. Quando é proferida, é nítida a percepção que o magistrado não leu; se o fez, não teve interesse; se interesse teve, não foi por dar a cada um aquilo que lhe pertence, como deve ser o mantra da justiça.

Reina no Judiciário, lastimavelmente, o completo descaso com a desgraça alheia. Não é exagero dizer que o Direito deixou de ser uma ciência humana e social e passou a ser tratado como mais uma ferramenta da burocracia, onde as estatísticas na Justiça valem mais do que a honra dos cidadãos.

Não refletissem tragédias na vida das pessoas, seriam risíveis alguns pareceres do Parquet e sentenças prolatadas por magistrados federais. A desconstituição dessas decisões repreensíveis tem sido uma árdua caminhada que normalmente consome o que o funcionário não tem: dinheiro e tempo. Muitos perecem nas curvas da estrada.

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Um servidor injustiçado, se persistir, tem chance de reverter a tragédia, em média, nove anos depois. Precisa, todavia, acionar o Recurso mais que Extraordinário (recurso financeiro alcançado por familiares) e ser devoto de uma santa singular: a Santa Paciência.[5] Há registro de decisão no Supremo Tribunal Federal proferida 41 anos depois do ato praticado com ilegalidade.[6]

Então, dizer que a parte tem direito a recursos nos casos de decisões administrativas e judiciais equivocadas é desconhecer por absoluto o que representa na prática esse instituto. É certo que decisões interlocutórias ou sentenças desarrazoadas obrigam advogados a desprenderem desnecessariamente energias vitais, submetem cidadãos a uma espera que não se justifica no século 21, além de representarem a quase inutilidade do Judiciário no que diz respeito ao seu dever de patrulhar com presteza e eficiência as fronteiras da legalidade.


CONCLUSÃO

As garantias inerentes ao devido processo legal valem para os bandidos da pior estirpe e são desprezadas pela administração e pelo controle judicial aos servidores, muitas vezes íntegros, que caem em desgraça junto aos superiores hierárquicos – alguns narcisistas destrutivos ou doentes morais. De outra sorte, se forem responsáveis, se tiverem com efeito praticado ilícitos administrativos, que respondam dentro de regras jurídicas, da mesma forma como são processados os, estelionatários, estupradores e assassinados. Ou, então, que se rasgue publicamente a lei e não se façam de bobos os defensores habilitados nos autos, que estudam, esforçam-se nas respectivas instruções, arrazoam, para, ao fim, não terem a mínima consideração nos seus ofícios legítimos.

A solução para essa baderna processual, por ora, não pode ser esperada dos gestores públicos, porque a estes a matéria disciplinar tem importância terciária; não rende votos nem se harmoniza com o marketing. Também não passa pelo Legislativo, onde o assunto é de todo desconhecido. Ademais, se for para defender alguém, parlamentares preferem se alinhar a terroristas estrangeiros ou foragidos internacionais, porque estes proporcionam luzes à bandeira dos direitos humanos; e não se guarde grandes expectativas do Poder Judiciário; De onde deveria emergir a segurança da ordem jurídica, tem-se o manifesto desinteresse pelo Direito Disciplinar, com seus fundamentos de ciência.

Resta aos causídicos persistirem na luta: nos autos, nas sustentações orais, nas tribunas que aparecerem para a defesa da legalidade. Como pregou Sobral Pinto, a advocacia não é profissão de covardes.


Notas

[1] Fls. 1729/1730 do processo disciplinar nº 001/2006 – SR/SPF/AM.

[2] Processo nº 09030.000018/2013-19 – MRE.

[3] Processo administrativo nº 16302.000079/2012-56 – Escor 08 – CRF – MF.

[4] MS nº 0024.2013.01080 – 24ª Vara Federal – SP.

[5] Referências utilizadas pelo ministro da Justiça Saulo Ramos, no livro “Código da Vida”, ao se referir às dificuldades para o cidadão obter o resgate do direito no Poder Judiciário.

[6] Funcionário demitido em 1967, teve o processo disciplinar anulado em 2008.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. Processo disciplinar e farsa jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4723, 6 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46361. Acesso em: 23 abr. 2024.

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