A cobrança, por associações de moradores de loteamentos fechados, de taxas ordinárias e extraordinárias “de condomínio” tem sido objeto de enorme dissenso social e jurídico no Brasil.
O problema surge porque os loteamentos fechados, por não se confundirem com os condomínios em edificações, não se submeteriam, em linha de princípio, à Lei nº 4.591/1964, que disciplina os condomínios edilícios e as incorporações imobiliárias. Por consequência, à míngua de previsão legal, não poderiam aqueles, também chamados de “condomínios de fato”, cobrar compulsoriamente taxas de manutenção, serviços ou melhoramentos dos titulares dos respectivos lotes (“taxas de condomínio”).
Nesse sentido, confira-se o escólio de Carlos Roberto Gonçalves[1]:
“Os chamados ‘condomínios fechados’, que proliferaram em virtude de preocupações com a segurança individual e familiar, não passam de loteamentos fechados, que nenhum vínculo guardam com o condomínio edilício. Trata-se de figura anômala, que não se submete à disciplina do condomínio tradicional, nem do condomínio edilício, tendo acesso ao registro imobiliário somente como modalidade de parcelamento do solo urbano”.
Uma das soluções buscadas pelos loteamentos fechados, com a finalidade de garantir a sua subsistência econômico-financeira, tem sido a constituição de associações de moradores para administrar os interesses comuns, às quais caberia, por possuírem existência jurídica (art. 44, I, do Código Civil), suposta legitimidade para cobrar as taxas referidas dos titulares das unidades autônomas dos empreendimentos.
Ocorre, porém, que o art. 5º, XX, da Constituição Federal assegura a liberdade de associação nos seguintes termos: “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”. Mencionado direito fundamental encerra, portanto, dupla face: a faculdade de associar-se (aspecto positivo) e a de não permanecer associado (aspecto negativo). Assim, sob o argumento de que não são obrigados a associar-se ou a permanecer associados, muitos titulares de lotes em “condomínios de fato” têm se esquivado ao pagamento de quaisquer valores a título de contribuição no custeio de despesas comuns do seu loteamento.
E, nessa empreitada, têm encontrado o respaldo dos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Com efeito, no julgamento do RE 432.106/RJ, o Pretório Excelso proferiu decisão que restou assim ementada, em 20/09/2011, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio:
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES – MENSALIDADE – AUSÊNCIA DE ADESÃO. Por não se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei nº 4.591/64, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido. Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de vontade – artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição Federal.
Na mesma trilha segue a jurisprudência do Tribunal da Cidadania, que ostenta diversos julgados convergentes com a transcrita decisão da Suprema Corte.
A título ilustrativo, citam-se o REsp 1.439.163/SP e o REsp 1.280.871/SP, ambos julgados sob o rito dos repetitivos, no dia 11/03/2015, sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que ficou vencido. Na ocasião, restou assentada a seguinte tese: “As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram”.
Os principais argumentos utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça, especialmente no voto-vista vencedor do Ministro Marco Buzzi, são basicamente dois: a) a já citada liberdade associativa (art. 5º, XX, CF), que a ninguém impõe o dever de associação compulsória; e b) a ausência de previsão legal da cobrança de taxas “condominiais” por associações de moradores. Faltaria, assim, a necessária fonte obrigacional, que, no nosso ordenamento jurídico, só pode ser a lei ou a vontade.
A consequência fática desse entendimento jurisprudencial é a seguinte: moradores de loteamentos fechados que não pagam taxas “condominiais” são beneficiados pelo esforço financeiro daqueles que honram regularmente seus encargos sociais. Há, pois, evidente enriquecimento ilícito de uns em detrimento de outros. Pior: a socialização da referida prática de obstinação tornará progressivamente rarefeito o universo daqueles que ainda pagam referidas taxas. Ao fim e ao cabo, os loteamentos fechados serão extintos por inanição financeira, com a subsequente encampação de seus serviços pelo ineficiente Poder Público.
Isso porque, segundo se argumenta, a tese do enriquecimento ilícito, de índole legal (arts. 884 a 886 do Código Civil), não poderia, em ponderação de princípios, sobrepujar o direito fundamental da liberdade associativa (art. 5º, XX, CF), de viés constitucional.
Em nosso sentir, porém, referida ponderação é desnecessária. É que há regra legal, embora obscurecida por aqueles que advogam a tese da ausência de previsão legal, que obriga os titulares de lotes em loteamentos fechados a contribuírem com as correspondentes despesas sociais. Cuida-se, com efeito, do art. 3º do Decreto-Lei nº 271/1967, que dispõe sobre loteamentos urbanos. Confira-se o teor do citado preceptivo legal: “Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os comprovadores de lote aos condôminos e as obras de infraestrutura à construção de edificação”.
Não há nenhuma dúvida, portanto, de que a Lei nº 4.591/1964, aplicável originalmente aos condomínios edilícios, deva ser aplicada também aos loteamentos urbanos, inclusive aos fechados, por expressa determinação do Decreto-Lei nº 271/1967. Há, portanto, fonte legal para a obrigação de contribuir com as despesas sociais dos loteamentos, que já foram, desde 1967, legalmente equiparados aos condomínios em edificações. Inexiste, assim, vácuo legislativo a ser preenchido pelo Projeto de Lei nº 275-C, de 2011, da Câmara dos Deputados.
Ad argumentandum, ainda que previsão legal não existisse para a dita equiparação, princípios constitucionais da maior envergadura preponderariam, sim, sobre a propalada liberdade de associação, de molde a possibilitar a cobrança compulsória das taxas de manutenção criadas por associações de moradores. Mencionam-se aqui, para fins meramente exemplificativos, os princípios da igualdade material (art. 5º, caput, CF, pois moradores em situações iguais seriam tratados desigualmente, se prevalecer o atual entendimento do STF e do STJ), da justiça (art. 3º, I, da CF) e da solidariedade (art. 3º, I, da CF). Admitida, ademais, a existência de regra jurídica a respeito (art. 3º do Decreto-Lei nº 271/1967), haveria ainda o princípio da legalidade (art. 5º, II, CF) como parâmetro de ponderação em face da solitária liberdade de associação. A balança penderia, sem dúvida, para o lado da igualdade, da justiça, da solidariedade e da legalidade. Aliás, quanto a esse último, não haveria sustentáculo lógico em deixar de aplicar o princípio da legalidade (Decreto-Lei nº 271/1967) às associações criadas nos loteamentos fechados – que são pessoas jurídicas, segundo o art. 44, I, do Código Civil – e, doutra banda, reconhecer sua perfeita incidência (Lei nº 4.591/1964) aos condomínios edilícios – que sequer têm personalidade jurídica. Seria negar a incidência da legalidade ao que existe (associações de moradores) para só admiti-la ao que não existe juridicamente (condomínios edilícios).
A relevância do tema é tanta que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sua repercussão geral no RE 695.911/SP, em 20/10/2011, sob relatoria do Min. Dias Toffoli, consoante esta ementa:
DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE COBRANÇA DE TAXAS DE MANUTENÇAO E CONSERVAÇÃO DE ÁREA DE LOTEAMENTO. DISCUSSÃO ACERCA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE MILHARES DE PESSOAS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal possa, em esperado avanço jurisprudencial, apresentar a mais adequada solução da controvérsia, quer corrigindo a omissão judicial quanto ao reconhecimento da completa vigência e eficácia do art. 3º do Decreto-Lei nº 271/1967, quer assentando a preponderância da igualdade, da justiça e da solidariedade sobre o tão citado princípio da liberdade de associação.
Nota
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 5. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 385.