Sumário: 1. Introdução. 2. Disposições Gerais (arts. 1º e 2º). 3. Comentários à Lei: Impactos na Parte Geral. 3.1. Prescrição e Decadência (art. 3º). 3.2. Pessoas Jurídicas de Direito Privado (arts. 4º - vetado – e 5º). 4. Comentários à Lei: Impactos no Direito dos Contratos. 4.1. Contratos em Geral (arts. 6º - vetado – e 7º - vetado). 4.2. Contrato de consumo (art. 8º). 4.3. Contrato de Locação de Imóveis Urbanos (art. 9º - vetado). 5. Impacto no Direito das Coisas. 5.1. Usucapião (art. 10). 5.2. Condomínio edilício (arts. 11 – vetado –, 12 e 13). 6. Impacto no Direito de Família e das Sucessões. 6.1. Prisão Civil do Devedor de Alimentos (art. 15). 6.2. Prazo para a instauração de Processo de Inventário e Partilha (art. 16).
1. INTRODUÇÃO
Cidades desertas. Comércios fechados. Pessoas evitando a aproximação física com as outras.
Um microscópico inimigo conseguiu viajar desde a pacata cidade chinesa de Wuhan para causar esse cenário desolador no mundo inteiro.
Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) externou seu estado de incerteza diante desse patógeno invisível por meio da “Declaração de Emergência em Saúde Pública”. Em 11 de março, ela se rendeu totalmente à sagacidade aterrorizante desse vírus, declarando situação de pandemia em virtude da Covid-19.
No Brasil, o take desse filme - cujo gênero vacila entre suspense e terror – começou a ser gravado em fevereiro.
No dia 3 daquele mês de fevereiro, o Ministério da Saúde editou a Portaria GM/MS nº 188/2020, para declarar “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional” (ESPIN). Essa data pode ser considerada o momento em que, ao brado do “Luz, Câmera e Ação” e da batida da claquete, o vilão invisível entra em cena.
Cidadãos já passam a evitar sair às ruas. A Bolsa de Valores entra em turbulência. O abraço fácil cede para as saudações distantes com as mãos. As cidades brasileiras passavam a se escurecer embaixo da nuvem de pavor soprada pelas notícias do aumento exponencial de mortes de nossos irmãos italianos: os dois falecimentos registrados em 23 de fevereiro na Itália saltaram para mais de 13.155 despedidas eternas em 1º de abril[3].
Em 6 de fevereiro de 2020, nasce a Lei da Covid-19 (Lei nº 13.979/2020), que prevê medidas destinadas ao enfrentamento da situação emergencial, como a quarentena e o isolamento.
Os atos infralegais da União e dos Estados se espalham como se estivessem a imitar a multiplicação viral atroz da Covid-19[4]. Governadores decretam medidas de restrição de circulação de pessoas e de comércio. Por exemplo, em 11 de março de 2020, o Distrito Federal já havia restringido o funcionamento de estabelecimentos comerciais para evitar a circulação e a aglomeração de pessoas, conforme Decreto DF nº 40.509, de 11 de março de 2020[5].
O Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconhece estado de emergência pública para flexibilizar as rígidas regras orçamentárias[6].
Todo esse ambiente de terror cinematográfico, que lembra filmes de guerra (com a diferença de que o letal inimigo é invisível e ainda não apareceram heróis para nos salvar), impactou severamente as relações de Direito Privado.
Sem dinheiro, empresas deixam de pagar suas contas.
Sem saída, trabalhadores perdem seus empregos.
Acurralados, inquilinos suspendem o pagamento do aluguel de sua moradia e levantam as mãos ao céu rogando por um milagre para não serem despejados.
Pais e mães, humilhados por não conseguirem dar o “pão de cada dia” aos filhos, tremem diante da prisão por dívida e da possibilidade de vir a conhecer, atrás das grades, o feroz vilão microscópico.
Síndicos vedam a livre circulação nas áreas comuns dos prédios, despertando a revolta de alguns condôminos menos amantes da prudência.
Membros de pessoas jurídicas e de condomínios não se arriscam a engrossar a lista de vítimas e cogitam transformar as assembleias presenciais em conclaves virtuais.
Praticamente todos os ramos do Direito Civil foram atingidos sem que a legislação estivesse adequadamente preparada para esse momento de caos causado pela pandemia.
Os vários juristas, às vezes com ímpetos acrobáticos, tentam brandir as armas que têm para dar soluções aos inúmeros problemas nas relações particulares. Vários artigos doutrinários são publicados[7]: a Covid-19 já se torna o epicentro das produções acadêmicas.
O Congresso Nacional se move para socorrer juridicamente os particulares.
O Senado Federal, por meio do Projeto de Lei nº 1.179/2020, dá à luz o RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório) de Direito Privado.
A proposição, talhada por uma legião de civilistas (que participaram direta ou indiretamente da gestação), esforça-se por abastecer todas as áreas do Direito Civil, desde a Parte Geral (ex.: prescrição e decadência) até a de Sucessões (ex.: prazos de inventários), passando pela de Família (ex.: prisão civil domiciliar), pela das pessoas jurídicas (ex.: assembleias virtuais), pela das Coisas (ex.: condomínio edilício e usucapião) e pela dos contratos.
Duas são as inspirações para a criação de uma lei emergencial e temporária.
A primeira é da França da Primeira Guerra Mundial. Em 1918, os franceses editaram a famosa Lei Faillot para tratar da revisão de contratos que haviam sido atingidos pelas contingências econômicas de uma guerra. Essa lei era transitória, limitada aos três meses seguintes ao encerramento da conflagração.
A segunda é de parlamentos de outros países, especialmente o alemão. Diante dos impactos da pandemia nas relações jurídico-privadas, a Alemanha editou a Lei de Atenuação dos Efeitos da Pandemia da Covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Recuperacional. Trata-se de uma lei transitória que flexibiliza contratos e outras figuras de direito privado em meio aos escombros de incertezas causadas pela Covid-19[8].
Amigo leitor, nosso foco é fazê-lo inteirar-se dos principais aspectos de Direito Civil tratados na lei emergencial, tudo em forma de comentários aos seus dispositivos.
Chamaremos esse novo diploma de Lei do RJET (Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório).
Salientamos, por fim, que o Presidente da República vetou dispositivos nucleares do Projeto de Lei original, inclusive no que toca às relações contratuais, o que merecerá, oportunamente, em artigo próprio, a nossa reflexão crítica.
2. DISPOSIÇÕES GERAIS (ARTS. 1º E 2º)
Art. 1º Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid19).
Art. 2º A suspensão da aplicação de normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração.
Três diretrizes iluminam o diploma emergencial.
De um lado, a Lei do RJET não modifica nenhum dispositivo do Código Civil nem de nenhuma outra lei. Por quê? Isso foi proposital. A referida lei não pretende estabelecer nenhuma regra permanente, não objetiva revogar nada. Colima, apenas, suspender normas que se mostrem incompatíveis com o período excepcional de turbulência social, econômica e pessoal causada pela pandemia da Covid-19. É o que diz o art. 2º. Portanto, a primeira diretriz da Lei da Covid-19 é a de que suas normas se endereçam apenas a fatos jurídicos “aturdidos" com o caos socioeconômico causado pela pandemia.
De outro lado, a segunda diretriz é a de que o RJET tem uma data inicial bem precisa: 20 de março de 2020, data do Decreto Legislativo nº 6. Di-lo textualmente o parágrafo único do art. 1º. A ideia é que, a partir daí, haveria uma presunção absoluta de que as rebordosas que agitavam as relações de Direito Privado provinham da pandemia. O legislador escolheu esse marco porque, com o referido decreto, o Parlamento – que é a Casa do Povo e dos Estados – reconheceu a notoriedade da desordem causada pelo irrequieto vírus, a ponto de autorizar flexibilizações orçamentárias na forma do art. 65 da LRF.
Dessa segunda diretriz, surge a seguinte dúvida: para o período anterior à supracitada data, a pandemia pode ou não ensejar revisões contratuais, suspensão da prescrição ou de outros fenômenos de Direito Privado?
A resposta é um sonoro sim.
Conforme já vimos na “Introdução”, pelo menos desde 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), a dinâmica das relações de Direito Privado já estava perturbada pelos transtornos da pandemia. Há, porém, uma observação: a análise deverá ser feita com base nas normas e princípios gerais do Direito Civil, sem levar em conta as regras específicas do RJET.
Por fim, a terceira diretriz da Lei do RJET é a de que, em vários dispositivos, ela apenas positiva regras que já seriam alcançáveis com base em princípios ou regras anteriores. Em outras palavras, ainda que não houvesse a Lei do RJET, vários casos concretos haveriam de ser resolvidos da mesma maneira. O diploma emergencial apenas objetivou dar maior pacificidade, cristalizando, em texto legal, soluções que tinham um apoio na base mais fluida de princípios e de cláusulas gerais.
Por exemplo, o impedimento e a suspensão, sem a lei do RJET, poderiam ser defendidos com base no princípio do "contra non valetem agere non currit praescriptio". A lei da RJET deixa clara, de vez, essa paralisação dos prazos.
Dessa terceira diretriz decorre que, para fatos jurídicos anteriores à Lei do RJET, os juristas poderão alcançar, a depender do caso concreto, soluções similares à decantada no texto da nova lei emergencial. O fundamento jurídico, porém, não será a nova Lei, e sim princípios e cláusulas gerais já vigentes antes da criação do RJET.
Essa observação é fundamental para deixar claro que a Lei do RJET, em momento algum, haverá de desrespeitar a vedação à retroatividade (mesmo a mínima) diante de atos jurídicos perfeitos, direito adquirido e coisa julgada[9].
Afinal, se, no momento em que as partes celebram um contrato ou um outro ato jurídico perfeito, elas levam em conta as regras de Direito Material da época para desenhar as condições contratuais, como o preço, a depender das regras materiais em vigor, o preço poderá ser maior ou menor. Não pode, portanto, o legislador, posteriormente, mudar essas regras de Direito Material, sob pena de incorrer em vedada retroatividade contra ato jurídico prefeito.
Entretanto, casos concretos anteriores poderão ser resolvidos da mesma maneira como anunciado na Lei do RJET por uma verdadeira coincidência jurídica: os princípios e as cláusulas gerais anteriores podem desaguar no mesmo resultado prático.
3. COMENTÁRIOS À LEI: IMPACTOS NA PARTE GERAL
O novo diploma repercutiu em institutos de grande importância da Parte Geral do Código Civil: no âmbito da prescrição e da decadência e na disciplina das pessoas de jurídicas de Direito Privado[10].
3.1. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA (ART. 3º)
Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
§ 1° Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional.
§ 2° Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
NOÇÕES GERAIS
Para a devida compreensão deste dispositivo, algumas noções precisam ser revistas.
A legislação prevê diversas causas impeditivas e suspensivas da prescrição[11].
A priori, não há diferença ontológica entre impedimento e suspensão da prescrição, pois ambas são formas de paralisação do prazo prescricional.
A sua diferença fática é quanto ao termo inicial, pois, no impedimento, o prazo nem chegou a correr; enquanto na suspensão, o prazo, já fluindo, “congela-se”, enquanto pendente a causa suspensiva.
Por exemplo, o casamento entre devedores fará suspender a prescrição já iniciada, por aplicação do art. 197, I, do CC.
O mesmo dispositivo, porém, autoriza uma hipótese de impedimento do curso prescricional se a dívida for contraída durante a constância da sociedade conjugal.
Exemplificando: João é credor de Maria de uma dívida já vencida e exigível, constante em instrumento público ou particular, estando em curso o prazo prescricional (para se formular a pretensão condenatória, via ação de cobrança) de cinco anos (na forma do art. 206, § 5.º, CC). Dois anos após a data do vencimento da dívida, contraem matrimônio, por força do qual o prazo prescricional ficará suspenso até a dissolução da sociedade conjugal. No caso, decretada a separação ou o divórcio, o prazo prescricional (suspenso durante o tempo de convivência conjugal) continuará a correr, computados os dois anos transcorridos, até que o credor atue ou seja atingido o limite máximo da prescrição. O matrimônio, no caso, atuou como uma causa suspensiva da prescrição. Se, todavia, Maria, respeitado o regime de separação de bens, contrai a dívida perante João, no curso do casamento, o prazo prescricional ficará impedido de correr até a dissolução da sociedade conjugal.
Feitos esses esclarecimentos iniciais, voltemos a nossa atenção ao dispositivo sob análise.
FUNDAMENTOS DA PARALISAÇÃO DOS PRAZOS
Pretendeu o legislador, tendo em vista a grave situação socioeconômica desencadeada pela pandemia do coronavírus, obstar o transcurso do prazo prescricional, visando, com isso, a resguardar os interesses dos credores em geral.
Com efeito, ficaram impedidos ou suspensos (paralisados) prazos prescricionais para se formular pretensão em juízo, o que se explica pelas dificuldades de variada ordem derivadas da pandemia, inclusive com reflexo na rotina de trabalho dos Tribunais.
Nessa linha, transcrevemos a justa ponderação de RODRIGO MAZZEI e BERNARDO AZEVEDO:
Ademais, há que se registrar a ausência do exercício da advocacia privada no rol de atividades essenciais previstas nos decretos que regulamentaram o § 8º da lei 13.979/202015, de modo que, a toda evidência, a advocacia privada está sujeita às restrições de quarentena e isolamento social eventualmente impostas pelo Poder Público.
Dessa forma, é possível afirmar que, a depender das medidas impostas pelo Poder Público em determinada região, haverá, sim, justo motivo que impedirá a parte e o advogado de distribuírem ações judiciais antes do término do prazo prescricional[12].
E não são só os impactos no funcionamento regular do Poder Judiciário que justificariam o congelamento da fluência dos prazos prescricionais e decadenciais. A própria adoção de providências para viabilizar o ajuizamento de uma ação judicial nesse período excepcional ficou comprometida, como reunir documentos, obter certidões, contratar profissionais (advogados, peritos etc.). Para tais diligências, há necessidade de deslocamento para repartições públicas e privadas, o que era inviável em virtude do fechamento de estabelecimentos por atos dos governos locais ou, no mínimo, era desaconselhável por força de imperativos de cautela para evitar a contaminação viral.
Esse cenário justifica a paralisação dos prazos prescricionais, consoante o já citado princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio".
NATUREZA SUBSIDIÁRIA DA REGRA DE PARALISAÇÃO
Com efeito, de acordo com o caput do referido art. 3º, os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência da nova Lei até 30 de outubro de 2020.
Mas observe.
Trata-se de uma regra supletiva ou subsidiária, pois, conforme o § 1º, havendo previsão legal específica de impedimento, suspensão - ou até mesmo interrupção[13] - do prazo prescricional, esta prevalecerá em razão da regra constante no caput do artigo sob comento.
Assim, por exemplo, caso um prazo prescricional já não estivesse correndo contra um credor, ausente do Brasil a serviço da União (art. 198, II, CC), sem previsão do retorno, a regra constante neste art. 3º (no sentido da paralisação do prazo até 30 de outubro de 2020) não se aplicaria.
Ressalvamos apenas a hipótese de ele retornar ao Brasil antes do referido termo final, caso em que a norma de reserva seria aplicada, nos termos do próprio § 1º do artigo sob comento.
APLICABILIDADE À DECADÊNCIA
Dispõe o § 3º que as regras estabelecidas no artigo 3º (referentes ao impedimento ou suspensão do prazo prescricional) também se aplicam ao prazo decadencial, a exemplo daqueles previstos no art. 26 do Código de Defesa do Consumidor (30 ou 90 dias) para se exercer o direito potestativo de se reclamar em Juízo. Trata-se, aqui, de uma exceção legal à regra geral (prevista no art. 207 do Código Civil) de implacabilidade da fluência do prazo decadencial.
SITUAÇÕES JURÍDICAS ANTERIORES À ENTRADA EM VIGOR DA LEI DO RJET
A paralisação ampla e irrestrita dos prazos prescricionais, prevista no art. 3º da Lei do RJET, só se aplica entre a entrada em vigor dessa lei e final de outubro de 2020.
Indaga-se: para o período anterior à entrada em vigor da Lei do RJET, é possível defender uma paralisação específica dos prazos prescricionais?
Entendemos que sim, a depender do caso concreto, com base no princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio"[14]. Não se ignora que há quem defenda que as hipóteses de suspensão e impedimento da prescrição estão arroladas taxativamente na lei ("numerus clausus"), mas o próprio STJ admite outras situações de paralisação dos prazos mesmo sem previsão legal, a exemplo da Súmula nº 229/STJ (“O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”)[15]. No caso da pandemia do coronavírus, é razoável considerar que, a partir de 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), já se pode presumir que a pandemia já impunha dificuldades para os titulares de direitos violados adotarem atos de cobrança, a bloquear a fluência do prazo prescricional, salvo prova em contrária no caso concreto[16]. Antes de 3 de fevereiro de 2020, apesar de os rumores acerca do perigo da Covid-19 já estarem ecoando no Brasil, não é razoável entender que tenha havido obstáculos ao titular do direito para formular a sua respectiva pretensão em juízo, salvo prova contrária no caso concreto (ex.: o titular do direito estava retido na Cidade de Wuhan em janeiro de 2020 sem poder voltar ao Brasil para cobrar a satisfação de seu direito).
PROBLEMATIZAÇÃO: POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Como já dito, entre a data da entrada em vigor da Lei do RJET e 30 de outubro de 2020, estão paralisados os prazos prescricionais e decadenciais por força do art. 3º.
Daí se indaga: o negligente titular de um direito, que de tão relapso, só vem a praticar algum ato de cobrança (exigibilidade) de seu direito (como propor uma demanda) após 8 anos, às vésperas dos últimos dias do prazo prescricional, poderá ou não alegar, a seu favor, a paralisação de que trata o art. 3º da Lei do RJET?
De um lado, por uma interpretação teleológica, é viável restringir o sentido do art. 3º da Lei do RJET com o objetivo de estabelecer que a paralisação prevista nesse preceito transitório se destina a proteger apenas os prudentes titulares, os quais só não exigiram a satisfação de seus direitos até final de outubro de 2020 em virtude dos transtornos causados pela pandemia.
Não é, pois, objetivo do art. 3º da Lei do RJET beneficiar, como verdadeiros "free riders"[17], os negligentes titulares, que, mesmo se não tivesse havido pandemia alguma, haveriam de seguir na inércia.
Desse modo, os titulares que, depois de cessados os efeitos da pandemia, demorarem muito para praticar algum ato de cobrança de seus direitos poderiam ser considerados negligentes e, assim, em relação a eles, o art. 3º da Lei do RJET teria perdido eficácia: a fluência do prazo prescricional ou decadencial para eles não seria considerado congelado até outubro de 2020.
A questão aí é definir: a partir de quando o titular de um direito poderia ser considerado negligente para esse efeito?
A resposta é a de que, em regra, deve-se olhar o caso concreto para verificar qual seria o prazo razoável para que o titular de um direito pratique algum ato de cobrança da dívida (que não necessariamente seria a propositura da demanda). Nesse diapasão, entendemos que 1º de janeiro de 2021 deve ser considerado como um referencial: titulares que só pratiquem atos de cobrança após essa data devem ser considerados negligentes e, portanto, para eles, a paralisação de prazos prescricionais perdeu a eficácia. A data de 1º de janeiro de 2021 é usada como referencial em uma perspectiva (razoável) de superação dos efeitos mais graves da pandemia a partir dessa data.
A única exceção se daria na hipótese de as medidas de restrição de circulação de pessoas derivadas da pandemia perdurarem para além de janeiro de 2021, caso em que o titular do direito deverá praticar o ato de cobrança em um prazo razoável após a cessação dessas restrições de circulação, sob pena de perda da eficácia da suspensão do prazo prescricional. Este prazo máximo, em nosso sentir, deve ser de 60 dias. Trata-se da aplicação do postulado da razoabilidade na acepção de equidade[18].
Em suma, perde eficácia a paralisação do prazo prescricional previsto no art. 3º se o titular do direito não praticar nenhum ato de cobrança (exigibilidade) até 1º de janeiro de 2021 ou, se for o caso, em um prazo máximo de 60 dias após a cessação das medidas de restrição de circulação de pessoas decorrentes da pandemia.
Consideramos essa interpretação restritiva adequada.
De outro lado, contra tal interpretação teleológica restritiva, podem-se brandir dois argumentos: (1) essa interpretação geraria uma indefinição para as partes no momento da contagem do prazo prescricional; (2) se o legislador quisesse, teria previsto expressamente essa perda da eficácia do art. 3º para titulares negligentes.
Esse assunto ainda haverá de gerar controvérsias.
O ideal é que todos os juristas, no momento em que forem contar prazos prescricionais, ainda se recordem dessa “janela de paralisação” (da entrada em vigor da Lei do RJET até o final de outubro de 2020).
Tudo quanto aqui foi exposto é extensível à suspensão do prazo decadencial (art. 3º, § 2º, da Lei do RJET) e também deve se aplicar, "mutatis mutandi", à paralisação da fluência dos prazos de usucapião prevista no art. 10, na forma do exposto mais à frente.
3.2. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO (ARTS. 4º - VETADO – E 5º)
Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado, referidas nos incisos I a III do art. 44 do Código Civil, deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais até 30 de outubro de 2020, durante a vigência desta Lei, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais. (VETADO)
Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.
Art. 5º A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica.
Parágrafo único. A manifestação de participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial.
COMENTÁRIOS GERAIS
O art. 59 do Código Civil, inserido no capítulo dedicado às associações, trata da assembleia geral, o seu órgão máximo.
Compete, pois, privativamente à Assembleia Geral, ex vi do disposto no referido artigo, segundo a redação alterada pela Lei n. 11.127/2005:
I – destituir os administradores;
II – alterar o estatuto.
Ressalve-se, todavia, que as deliberações a que se referem os incisos I e II demandam “deliberação da assembleia especialmente convocada para esse fim, cujo quorum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores”.
Nessa linha, nos termos do art. 5º do novo diploma, toda assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59, poderá ser realizada pelos meios eletrônicos, caso em que a manifestação dos participantes poderá ocorrer por qualquer meio virtual indicado pelo administrador e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial.
Trata-se de uma previsão importante, que respeita as diretrizes sanitárias, e afasta eventual nulidade pela ausência de observância de requisito formal consistente no pregão e encontro presenciais.
OPERACIONALIZAÇÃO PRÁTICA
Do ponto de vista operacional, o administrador está autorizado, pelo art. 5º, a definir, sozinho, o meio eletrônico que será utilizado, desde que ele garanta identificação e segurança do voto. É claro que a assembleia – que é soberana[19] - pode deliberar por outro meio eletrônico para os encontros seguintes, de maneira que apenas a primeira assembleia será na forma indicada pelo administrador.
Apesar do silêncio legal, a comunicação entre os participantes da assembleia não precisa ser oral e pode ser por escrito também.
Ademais, entendemos que esse meio deve permitir comunicação instantânea (on-line), como plataformas de chat (como um grupo no WhatsApp) ou de videoconferências (como o aplicativo Zoom). Isso porque as assembleias precisam garantir que os participantes expressem suas motivações para convencer ou dissuadir os demais.
Para a lavratura da ata da assembleia virtual, não há necessidade de assinatura física específica de cada membro. Tampouco há necessidade de os membros se valerem de uma assinatura eletrônica no âmbito do ICP-Brasil (Medida Provisória nº 2.200-2/2001). Entendemos que o administrador poderá declarar, na própria ata, os votos que foram dados, atestando que, após a sua lavratura, todos os associados consentiram com o seu teor. A ata, pois, será redigida unilateralmente pelo administrador atestando o que viu e ouviu na plataforma eleita. Se a plataforma utilizada detiver um chat, convém que o administrador anexe cópia das conversas de cada membro, o que servirá de prova. E nada impede que toda a assembleia seja gravada, o que constará na respectiva ata.
Por fim, para o cadastro de cada membro, se o administrador tiver o número telefônico ou e-mail de cada um deles, ele poderá valer-se dessas vias para viabilizar a comunicação eletrônica. Se não tiver, o caso é de o administrador buscar entrar em contato com o membro pela via cabível para cadastrá-lo na plataforma virtual a ser utilizada.