Capa da publicação Lei da Pandemia (Lei nº 14.010 - RJET): questões de Direito Civil e Processual Civil
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Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).

Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil

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4.COMENTÁRIOS À LEI: IMPACTOS NO DIREITO DOS CONTRATOS

4.1. CONTRATOS EM GERAL (ARTS. 6º - VETADO – E 7º - VETADO)

Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos. (VETADO)

Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.

Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.

§ 1° As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.

§ 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários. (VETADO)

Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.

4.2. CONTRATO DE CONSUMO (ART. 8º)

Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

DIREITO DE ARREPENDIMENTO: CONCEITUAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

O art. 49 do CDC consagra o direito do arrependimento em favor do consumidor no caso de contratos celebrados a distância (fora do estabelecimento comercial), “especialmente por telefone ou a domicílio”.

Nessa linha, o consumidor tem direito de, no nos sete dias seguintes ao recebimento do produto ou do serviço ou à data da celebração do contrato, desfazer o contrato e receber de volta todos os valores já pagos com atualização monetária. Esse prazo de 7 dias é designado de “prazo de reflexão”.

Não se trata de uma resilição unilateral (prevista no art. 473 do CC), pois esta é, na verdade, uma hipótese de inadimplemento absoluto causado pelo fato da vontade unilateral e imotivada da parte. E, por ser um inadimplemento, a parte haverá de suportar todas as consequências da inadimplência, como o pagamento de multas e de eventual indenização. Trata-se, sim, de uma condição resolutiva puramente potestativa admitida por lei: o consumidor desfaz o contrato imotivadamente por vontade unilateral e sem dever de pagar qualquer multa por não se tratar de inadimplemento contratual[20]

Igualmente, não se cuida de uma resolução motivada do contrato por vício do produto ou do serviço (arts. 12 e seguintes do CDC) ou por descumprimento, pelo fornecedor, de deveres anexos (como o dever de informação, de proteção, de cooperação, de qualidade etc.). Estes últimos representam hipóteses de desfazimento de contrato por justo motivo a impor, inclusive, que o fornecedor se submeta a todas as punições decorrentes do inadimplemento contratual, como pagar indenização.

O fundamento do direito de arrependimento do art. 49 do CDC ("ratio essendi”) é o de que o consumidor, nos contratos a distância, não vê o produto nem amostras do serviço contratado, além de, notadamente em compras pela internet, não haver tido um auxílio técnico na realização da contratação e sequer acesso a todas as informações do serviço e do produto. Por isso, nesses casos, é assegurado ao consumidor um prazo de reflexão para impunemente desistir do contrato.

Já há, na doutrina, quem empreste interpretação extensiva ao dispositivo para afastar ou flexibilizar o direito de arrependimento do art. 49 do CDC para casos que escapem a essa "ratio essendi"[21].

É o caso, por exemplo, de compras de produtos de consumo imediato adquiridos, no mesmo dia, por telefone, por aplicativos ou pela internet. Se alguém contacta um restaurante oriental e pede um Yakisoba em serviço de “delivery” (entrega domiciliar), não faz sentido que, após receber o prato, o consumidor exerça o direito de arrependimento após 7 dias. Não é razoável tal interpretação e escapa aos imperativos da boa-fé objetiva, pois: (1) a comida já terá perecido e (2) o regime de “delivery” não trouxe nenhuma diferença prática em relação aos pedidos feitos dentro do restaurante: assim como o cliente pede um prato ao garçom apenas com base na descrição constante no cardápio, o cliente que pede a comida para entrega em regime de “delivery” igualmente faz seu pedido apenas com apoio na descrição disponibilizada no cardápio virtual. Em nenhuma das hipóteses, o cliente tem direito a uma “amostra grátis” do prato. Por essa razão, o art. 49 do CDC deve ser flexibilizado para essas hipóteses de compra de produto de consumo imediato.

É claro que, se o Yakisoba estivesse estragado ou com alguma contaminação de parasitas, aí o consumidor teria direito à devolução do seu dinheiro com direito ainda a indenização, pois aí haveria uma situação de responsabilidade por vício do produto (art. 12 do CDC). Não se falaria, pois, de direito de arrependimento do art. 49 do CDC.

Mais um exemplo de afastamento do art. 49 do CDC é o de compra de produtos ou serviços a distância com inequívoco conhecimento, pelo consumidor, de todas as qualidades, e sem diferença prática alguma em relação à compra feita presencialmente. É o que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) decidiu ao negar o direito de arrependimento do art. 49 do CDC a uma consumidora que havia adquirido um serviço fotográficos de álbum de formatura, conforme se vê neste julgado:

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PROCESSO CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS FOTOGRÁFICOS. ÁLBUM DE FORMATURA. VENDA EM DOMICÍLIO. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. ART. 49 DO CDC. INAPLICABILIDADE. TERMO INICIAL DOS JUROS MORATÓRIOS. VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO INADIMPLIDA. MORA EX RE. SENTENÇA MANTIDA. 1. O direito de arrependimento assegurado pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor não pode ser interpretado isoladamente, mostrando-se necessário o cotejo com as demais normas do regramento jurídico. 2. O inequívoco conhecimento do tipo, quantidade e qualidade dos produtos adquiridos e a disponibilização do material em dispositivo digital (pen drive), que facilita sua reprodução, obstam o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor, ante as peculiaridades do caso concreto. 3. Nas ações monitórias baseadas em contrato de prestação de serviços, em que a obrigação é positiva, líquida e com termo certo de vencimento, os juros de mora incidem a partir do vencimento de cada parcela inadimplida, nos termos do art. 397 do Código Civil (mora ex re). 4. Apelação conhecida, mas não provida. Unânime.  

(TJDFT, Processo nº 07149157720198070001 - (0714915-77.2019.8.07.0001 - Res. 65 CNJ), 3ª Turma Cível, Rel. Desembargadora Fátima Rafael, DJe 20/03/2020)

Há, ainda, casos mais complexos, como os envolvendo contratação de transporte aéreo pela internet. Qual é a diferença prática entre comprar a passagem aérea em uma loja (presencial) ou pelo site da companhia aérea (a distância)? É verdade que, em ambos os casos, por óbvio, o consumidor não tem direito a uma “amostra prévia” do voo, mas, no caso de compra pela internet, o consumidor não tem o auxílio técnico de um representante da companhia aérea e, assim, pode cometer algum erro no momento da aquisição do serviço de transporte aéreo (ex.: digitar errado a data de partida). Por isso, nesses casos, entendemos que é razoável que o art. 49 do CDC seja interpretado restritivamente para reduzir o prazo de reflexão de 24 horas, o que seria um tempo razoável para o consumidor reanalisar a sua compra.

O tema, porém, é ainda controverso na doutrina e na jurisprudência, a depender do caso concreto. Há, por exemplo, precedentes do TJDFT no sentido de que, no caso de “reserva de hotel” pela internet, o consumidor tem direito a exercer o direito de arrependimento em 7 dias, conforme se vê neste julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. PRELIMINARES. VIA INADEQUADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. REJEIÇÃO. INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. MATÉRIA QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO. RESERVA DE HOTEL. INTERNET. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. ART. 49 DO CDC. TEMPESTIVIDADE. COBRANÇA INDEVIDA. CARTÃO DE CRÉDITO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DIREITO À RESTITUIÇÃO. 1. O mero erro material na nomenclatura atribuída ao recurso interposto no prazo legal não inviabiliza, por si só, o conhecimento da apelação, em observância princípios da instrumentalidade das formas, economia processual e primazia do julgamento do mérito. 2. É assegurado o direito de arrependimento nos termos do art. 49 do CDC quando manifestado no prazo de 7 dias a contar da assinatura do contrato ou do ato do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial. 3. Exercitado o direito de arrependimento na forma legal, o consumidor tem direito à restituição imediata dos valores pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, sem prejuízo da correção monetária. 4. Cancelada a contratação de diárias de hotel em razão do exercício de direito potestativo do consumidor, é indevida a cobrança lançada na fatura do cartão de crédito, por constituir enriquecimento sem causa. Logo, fica configurada a responsabilidade solidária das administradoras de cartão de crédito, bancos e instituições financeiras, que têm notório interesse jurídico e comercial na venda. 5. Preliminares rejeitadas. Recurso conhecido e desprovido. 

(TJDFT, Processo nº 07401744520178070001 - (0740174-45.2017.8.07.0001 - Res. 65 CNJ), 8ª Turma Cível, Rel. Des. Diaulas Costa Ribeiro, DJe 26/11/2018)

RAZÃO DE SER DO ART. 8º DA LEI DO RJET

Em meio às controvérsias interpretativas da real extensão do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, o legislador decidiu positivar uma interpretação no art. 8º da Lei do RJET, ao menos até 30 de outubro de 2020, data escolhida pelo legislador como o de provável fim dos transtornos da pandemia da Covid-19 no Brasil.

Não se ignora que, com o fechamento de estabelecimentos e a reclusão das pessoas ao seu domicílio por força de medidas de isolamento social e de quarentena destinadas a evitar a proliferação do vírus, houve aumento exponencial das vendas em regime de “delivery”.

Com o objetivo de dar segurança jurídica aos fornecedores, o art. 8º do RJET positivou uma interpretação extensiva do art. 49 do CDC especificamente para dois tipos de produtos essenciais: (1) os bens perecíveis ou de consumo imediato, como os casos de pedidos de pratos de comida por “delivery”; e (2) os de medicamentos.

Já tratamos da primeira hipótese.

Quanto à segunda, é fato que os medicamentos possuem qualidade notoriamente conhecida e não há nenhuma diferença prática se a compra desses produtos se deu presencialmente ou a distância.

Em síntese, até 30 de outubro de 2020, fica suspenso o direito potestativo conferido ao consumidor, previsto no art. 49 do CDC, no sentido de rejeitar imotivadamente a compra na hipótese de entrega domiciliar (“delivery”) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

É importante que fique claro que, após 30 de outubro de 2020, a doutrina e a jurisprudência estarão livres para seguir nos debates acerca da adequada interpretação do art. 49 do CDC, de modo que poderão, até mesmo, optar por uma interpretação diversa da escolhida pelo art. 8º da Lei do RJET. Seja como for, a ideia do legislador é dar segurança jurídica, ao menos, no período excepcional da pandemia.

4.3. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEIS URBANOS (ART. 9º - VETADO)

Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020. (VETADO)

Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.

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Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46412. Acesso em: 19 abr. 2024.

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