Capa da publicação Lei da Pandemia (Lei nº 14.010 - RJET): questões de Direito Civil e Processual Civil
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Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).

Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil

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5. IMPACTO NO DIREITO DAS COISAS

5.1. USUCAPIÃO (ART. 10)

Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.

EXTENSÃO DOS COMENTÁRIOS FEITOS AO ART. 3º PARA O USUCAPIÃO

Antes do Código Civil de 1916, o usucapião era tratado como uma prescrição aquisitiva. Apesar de haver controvérsia acerca da natureza do usucapião como uma prescrição aquisitiva, é fato que o próprio legislador, no art. 1.244 do Código Civil, estendeu as regras de paralisação e de interrupção do prazo prescricional para o usucapião.

Desse modo, tudo quanto expusemos ao comentarmos o art. 3º da Lei do RJET – que trata de paralisação do prazo prescricional – também se estende ao artigo sob exame, que cuida da paralisação dos prazos de usucapião.

E não poderia ser diferente. O fundamento dos arts. 3º e 10 é o mesmo: não se deve fluir contra quem não pode agir ("contra non valentem agere non currit praescriptio").

Desse modo, entre a data de vigência da Lei do RJET e 30 de outubro de 2020, fica congelada a fluência tanto dos prazos de prescrição e de decadência quanto dos de usucapião.

Isso significa, por exemplo, que, se o sujeito exercia posse mansa e contínua, com justo título e boa-fé (usucapião ordinária - ar. 1.242, CC), há 8 anos, tendo em vista a superveniência da pandemia, o prazo de prescrição aquisitiva ficará suspenso, dentro da “janela” da vigência da nova Lei até 30 de outubro de 2020. Com o advento do termo final, o prazo voltará a correr, devendo ser computado o lapso já transcorrido.

Como isso, o proprietário contra o qual corre o prazo estará favorecido, em virtude da paralisação do decurso prazal do possuidor/prescribente.

Em nosso sentir, o legislador deveria ter previsto essa hipótese de suspensão para a aquisição, por usucapião, de todo e qualquer direito real, uma vez que outros direitos podem ser adquiridos por usucapião, a exemplo da servidão, da laje e do direito de superfície.

Além do mais, à semelhança dos comentários que fizemos ao art. 3º da Lei do RJET, deve-se emprestar interpretação restritiva ao art. 10 para não beneficiar proprietários negligentes, assim entendidos aqueles que iriam se manter inertes mesmo se não tivesse havido pandemia alguma.

Por fim, assim como expusemos nos comentários ao art. 3º da Lei do RJET, para período anterior à entrada em vigor dessa lei emergencial, é cabível sustentar a paralisação do prazo de usucapião com base no princípio do "contra non valentem agere non currit praescriptio" desde 3 de fevereiro de 2020 (data da Portaria GM/MS nº 188/2020), ou, em situação extremamente excepcional de comprovada impossibilidade de reivindicar seus direitos no caso concreto, desde uma data anterior.

5.2. CONDOMÍNIO EDILÍCIO (ARTS. 11 – VETADO –, 12 E 13)

Art. 11. Em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, além dos poderes conferidos ao síndico pelo art. 1.348 do Código Civil, compete-lhe:

I - restringir a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação do coronavírus (Covid-19), respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos;

II – restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do coronavírus (Covid-19), vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade.

Parágrafo único. Não se aplicam as restrições e proibições contidas neste artigo para casos de atendimento médico, obras de natureza estrutural ou a realização de benfeitorias necessárias. (VETADO)

Dispositivo vetado. Os coautores, em breve, pretendem publicar artigo com reflexões críticas acerca desse veto.

Art. 12. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino por esse meio será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial.

Parágrafo único. Não sendo possível a realização de assembleia condominial na forma prevista no caput, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020.

ASSEMBLEIA VIRTUAL: EXTENSÃO DOS COMENTÁRIOS FEITOS PARA AS ASSEMBLEIAS DE PESSOAS JURÍDICAS

Tudo quanto expusemos ao comentarmos o art. 4º da Lei da RJET deve ser estendido, "mutatis mutandi", para o art. 12, pois o fundamento de ambos os dispositivos é o mesmo: autorizar conclaves virtuais em razão da inadequação de aglomeração de pessoas nesses tempos de crise viral.

Assim, o síndico deverá, unilateralmente, escolher um meio de virtual para a realização das assembleias e para a coleta dos votos, admitido, porém, que a assembleia determine mudanças nesses procedimentos. Reportamo-nos o leitor ao que expusemos nos comentários ao art. 4º da Lei do RJET.

PRORROGAÇÃO DO MANDATO DOS SÍNDICOS

Os síndicos, salvo disposição contrária na convenção, têm mandato de 2 anos, renováveis por igual período (art. 1.347, CC).

Expirado o prazo do mandato sem que nova assembleia seja feita para nomeação de outro síndico ou para a recondução do atual, a doutrina majoritária admite que haja uma prorrogação tácita. Entretanto, na prática, isso se torna pouco operacional, pois, por exemplo, as instituições financeiras costumam bloquear o acesso do síndico à conta bancária do condomínio após o fim do prazo do mandato.

Nesse período de coronavírus, o síndico deverá convocar assembleia virtual para deliberar sobre a nomeação de novo síndico se o prazo do seu mandato estiver para expirar. Caso tal não seja viável, o art. 12, parágrafo único, da Lei do RJET admite a prorrogação automática do mandato para 30 de outubro de 2020. Entendemos que, para efeito de comprovação perante terceiros (como os bancos), basta declaração do síndico de que não foi viável realizar a assembleia virtual antes da expiração do prazo do mandato.

Art. 13. É obrigatória, sob pena de destituição do síndico, a prestação de contas regular de seus atos de administração.

PENA DE DESTITUIÇÃO DO SÍNDICO

O art. 13 da Lei do RJET incorreu em redundância, talvez pelo receio de abusos que possam ser cometidos por síndicos em virtude da excepcionalidade do período pandêmico.

Já é dever do síndico prestar à assembleia contas regularmente de seus atos de modo anual e sempre que for exigido (art. 1.348, VIII).

Se não for viável a realização da assembleia, nem mesmo a virtual, o síndico deverá, logo que possível, convocar a assembleia para prestar contas.

A punição pela falta da prestação de contas é a sua destituição, seja por força do art. 13 da Lei do RJET, seja porque o art. 1.349 do CC já previa essa destituição.

O art. 13 da lei emergencial veicula uma redundância enfática.


6. IMPACTO NO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES

No âmbito procedimental do Direito de Família e das Sucessões, a Lei do RJET fez dois destaques: na prisão civil e no aspecto atinente ao prazo de inventário e de partilha[22].

6.1. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS (ART. 15)

Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações.

O descumprimento voluntário e inescusável da obrigação legal de pagamento de alimentos enseja a prisão civil do devedor.

Trata-se da única forma de prisão civil admitida em nosso sistema (art. 5º, LXVII, CF) e de grande utilidade prática e social.

Registre-se, de plano, que somente o descumprimento dessa modalidade de alimentos autoriza a medida extrema, não sendo aplicável a alimentos voluntários ou indenizatórios (derivados do Direito Obrigacional).

Nesse contexto, vale lembrar, antes mesmo do CPC-15, o enunciado 309 da Súmula do STJ, no sentido de que “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.

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E, de acordo com o § 3º do art. 528 do CPC-15, se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

Ora, conforme a nova norma da Lei do RJET, enquanto vigente o regime jurídico emergencial, o cumprimento da prisão civil dar-se-á exclusivamente por meio da custódia domiciliar.

Trata-se de previsão que vai ao encontro de entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de decisão da lavra do eminente Min. Paulo de Tarso Sanseverino que, a pedido da Defensoria Pública da União, estendeu, em habeas corpus (HC 568.021), a todos os presos por dívida alimentar do País, os efeitos de liminar até então com eficácia restrita apenas ao Estado do Ceará[23].

Em nosso sentir, a previsão legal justifica-se, diante do perigo de contágio da grave doença viral, na perspectiva do princípio maior da dignidade da pessoa humana, sem que haja prejuízo à exigibilidade da obrigação inadimplida.

6.2.  PRAZO PARA A INSTAURAÇÃO DE PROCESSO DE INVENTÁRIO E PARTILHA (ART. 16)

Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.

Parágrafo único. O prazo de 12 meses do art. 611 do Código de Processo Civil, para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.

Para a adequada compreensão do dispositivo, é necessário passarmos em revista o art. 611 do CPC:

Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.

Por abertura da sucessão entenda-se a morte do autor da herança.

Nesse diapasão, caso a morte haja ocorrido a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial do prazo de dois meses previsto no referido art. 611 será postergado para 30 de outubro de 2020..

E a norma vai além, ao estabelecer que o prazo de 12 meses para se ultimar o inventário, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência da Lei que instituiu o Regime Emergencial até 30 de outubro de 2020.

Exemplo: a abertura do inventário foi requerida em 20 de novembro de 2019. Segundo a redação do CPC, o prazo ultimar-se-ia em 20 de novembro de 2020. Com o advento da Lei do RJET, opera-se a suspensão do curso do prazo, que somente voltará a correr após 30 de outubro de 2020, abatendo-se o período já decorrido[24].

Tal previsão se justifica pela provável dificuldade, diante do cenário turbulento causado pela pandemia, para o levantamento de dados, reunião de documentos e formalização do pedido judicial, mormente levando em consideração a elevada quantidade de informações que deve ser fornecida por ocasião da prestação das primeiras declarações ou para realização do inventário pela via extrajudicial.

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Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46412. Acesso em: 26 abr. 2024.

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