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Jurisdição constitucional, pós-positivismo e hermenêutica.

Bases teóricas de um neoconstitucionalismo que busque democratizar a teoria da decisão

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16/03/2016 às 14:08
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Estuda-se o pós-positivismo jurídico e a teoria da decisão no âmbito de uma jurisdição constitucional que se pretenda democrática tendo como pano de fundo as releituras da relação entre direito e moral e o giro linguístico-ontológico do último século.

1  INTRODUÇÃO

O estudo da teoria da decisão em uma jurisdição constitucional no contexto de superação do positivismo jurídico é tema ainda em construção. A crise de legitimidade gerada pela transição entre o positivismo jurídico exegético e o positivismo jurídico normativista no âmbito da teoria da decisão judicial, exige, sobretudo no âmbito da jurisdição constitucional, aportes teóricos que guiem a democratização do debate constitucional ora fragilizada com a insuficiência das idéias positivistas da modernidade.

O fenômeno da positivação é, no dizer de Ricardo Maurício Freire Soares (2011, p. 42), “expressão palmar da modernidade jurídica” esta que, ao entrar em colapso[1], o leva consigo e cede lugar aos elementos da pós-modernidade.

Como marco temporal que se queira localizar a ruptura jurídico-teórica sob comento costuma-se[2] associar o fim da Segunda Guerra Mundial, que teria neste aspecto funcionado[3] como o estopim da reviravolta contra o pensamento jurídico então vigente.

A percepção de que, sob o manto de leis formalmente válidas e de aplicações concretamente livres, as maiorias políticas poderiam provocar o desfacelamento das garantias mínimas da existência humana, levou a comunidade jurídico-filosófica da época a iniciar reflexões sobre imprescindível mudança de paradigma jurídico-teórico.

Conforme nos anuncia Luis Roberto Barroso (2004, p. 325) após a Segunda Grande Guerra “a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido”.

Na teoria jurídica a transição para o programa pós-moderno abre espaço para diversas reflexões, muitas delas, e por todas Ronald Dworkin (2010, p.35), com o fim de “lançar um ataque geral contra o positivismo”.

Tais teorias implicarão em alterar definitivamente o panorama jurídico vigente onde para alguns[4] (não todos reafirme-se) não há mais espaço para os ideais positivistas em quaisquer de suas vertentes e estaria em plena construção uma corrente teórica não positivista, genérica, difusa que por muitos é nomeada ainda que provisoriamente de pós-positivismo.

Assim é que se propõe este trabalho a analisar em que direção deve caminhar essa corrente jusfilosófica ainda formação que, no Brasil, é denominada de pós-positivismo (capítulo 2) analisando ainda algumas propostas teóricas básicas na relação entre direito e moral e na teoria da norma (capitulo 3) indispensáveis à sua diferenciação como pensamento teórico.

Em seguida verificar-se-ão as bases filosóficas (capítulo 4) que, surgindo no século XX, deram novos aportes teóricos às ciências sociais não podendo por sua importância e magnitude restar esquecidos pelo direito. Por fim, serão expostos os impactos na jurisdição constitucional (capítulo 5) de todo o contexto apresentado e como isso anuncia um caminho por uma democratização do debate constitucional.


2  O QUE É(SÃO) O(S) PÓS-POSITIVISMO(S)? POR QUE NÃO SE PODE ESQUECER O QUE SE BUSCA SUPERAR E O RISCO DE SE CAMINHAR PARA O LADO OPOSTO

Muito complexa e sempre sujeita a equívocos, é a busca por se definir algo cuja definição mesma se encontra ainda em construção. Nesta categoria certamente podemos incluir o pós-positivismo, o qual desde sua nomenclatura já é objeto de controvérsias[5].

Tal afirmação, todavia, não nos impede, ao menos em linhas gerais e nos limites dos atuais dos avanços doutrinários acerca do tema, de traçar singelas bases gerais por onde se entende que deve circundar o conceito em discussão, o que se apresenta suficiente aos limites objetivos aqui necessários.

Assim é que o conceito de pós-positivismo deve ser buscado essencialmente na percepção de seus teóricos acerca das insuficiências e conceituações próprias do seu oponente, o positivismo que se propõe a superar, mas, decerto sem desprezar os avanços por este empreendidos.

Conforme sustentado em doutrina, muito do que foi defendido pelo positivismo teve seu lugar na história e cumpriu com uma função, deixando ainda um grande legado teórico e prático para a posteridade, bem como, até mesmo suas insuficiências permitiram impulsionar a evolução do direito até a posição em que ele hoje se encontra. Neste sentido, novamente com Luis Roberto Barroso (2004, p. 328), o pós-positivismo “inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade”.

Principalmente no campo da interpretação é imprescindível modificar o (incipiente) entendimento positivista, nesta senda, conforme já se tem sustentado, o pós-positivismo deve procurar apresentar perspectivas teóricas e práticas que ofereçam soluções para a concretização do direito.

E aqui se deve afirmar travar-se a luta pós-positivista contra o positivismo normativista, não devendo se buscar, nesse momento da história, a derrota de um já inexistente juiz boca-da-lei, típico do positivismo exegético[6], muito pelo contrário. Tal compreensão é imprescindível, sob pena de se tomar um perigoso (e as vezes festejado) atalho na contramão da teoria jurídica[7].

Do positivismo busca-se a superação da decisão judicial como um momento de pura-vontade do intérprete que, entre as “molduras” (KELSEN, 2009) ou “penumbras” (HART, 2005) normativistas, escolhe a solução que livre, pessoal e incontrolavelmente entende ser seu desejo.

É assim, no âmbito da aplicação do direito, sobretudo na luta contra essa já sustentada discricionariedade (em sentido forte) outorgada ao intérprete pelo positivismo jurídico normativista de matriz kelseniana-hartiana, que deve se concentrar a maior parte dos esforços da teoria pós-positivista.

Outras preocupações também devem estar presentes na conceituação esperada de um pós-positivismo que pretenda de fato superar as insuficiências positivistas.

Nesse sentido, principalmente ante os clamores doutrinários do Segundo Pós-Guerra, também é preciso reavaliar a tese das fontes, uma das principais características positivistas na distinção de outras correntes teóricas conforme nos anuncia Dimitri Dimoulis (2006, p. 78). Na teoria das fontes é preciso (re)questionar: “somente o direito positivo é direito”?, para assim revisitar as relações entre direito e moral.

Na pós-modernidade é necessária uma teoria do direito que reencontre com os valores que rejeitou, no contrário, será aquela rejeitada por perder seu valor como teoria.

Por fim, não devem ser desconsiderados os importantes avanços do século XX no campo da filosofia, em especial o giro linguístico-ontológico, que, com fortes impactos sobre a hermenêutica, mudou por completo a compreensão da relação sujeito-objeto para um modo totalmente incompatível com a visão jus-positivista.


3  REFLEXÕES ENTRE A FATICIDADE E A VALIDADE: AS CONTRIBUIÇÕES DE JÜRGEN HABERMAS E RONALD DWORKIN PARA A RELEITURA DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E MORAL NO PÓS-POSITIVISMO

Seguindo o esquema acima proposto, mas apenas por uma questão de principio[8] invertendo a ordem de tratamento da matéria, vejamos como deve se configurar uma teoria das fontes que se queira apresentar pós-positivista.

 O contexto em que são construídas e desenvolvidas as teorias positivistas é marcado por uma construção sociológica de uma sociedade, no dizer de Jürgen Habermas (2012, p. 70), “descentrada, diferenciada funcionalmente e que se compõe de muitos sistemas que tendem a se separar”. Todo o empreendimento de uma purificação do Direito acabou por buscar um isolamento deste enquanto sistema.

Segundo Jürgen Habermas (2012, p. 71), em amparo teórico que, passando por Karl Marx e Husserl alcança seu ponto mais “sistematizado” em Luhmann, essa sociedade “estilhaçada policentricamente” é o resultado das mudanças de perspectivas levadas a cabo pela economia, para a qual “o direito perde sua posição-chave na estratégia teórica”. Como consequência, verifica-se, entre os muitos sistemas, o direito, que sobre uma perspectiva funcional, fecha-se como um sistema autônomo e “autopoiético”.

Muito percuciente a esse respeito a lição que nos traz Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p. 48), no sentido de que “o sistema autopoiético é autônomo por que o que nele se passa não é determinado por nenhum componente do meio circundante, mas por sua própria organização sistêmica”.

Um trecho de um autor positivista nos permite compreender como se traduziu o isolamento “sistemático” do direito nesta corrente justeórica, para esse fim e por todos vejamos o que nos traz Dimitri Dimoulis (2006, p.130):

A definição dada pelo PJ[9] strictu sensu ao direito válido se baseia no reconhecimento exclusivo de normas postas pelo legislador reconhecido para tanto em determinado espaço e momento histórico, excluindo interferência conceituais oriundas da moral, da política, dos costumes sociais, das regras de cortesia, da religião e de qualquer sistema normativo de outra origem, natureza, finalidade conteúdo e valor[...] Dessa forma, afirma-se a pela e absoluta independência conceitual do direito em relação aos demais sistemas normativos.

Novamente com Jürgen Habermas (2012, p. 73) é possível dizer que o sistema jurídico “é desengatado de todos os demais sistemas de ação” o que o desliga “de todas as relações internas com a moral e com a política”. Nesse sistema, o direito precisa deduzir sua validade apenas a partir do direito vigente lançando fora quaisquer pretensões de legitimidade que ultrapassem esse nível.

No dizer de Lenio Luiz Streck (2011, p. 456) o positivismo permite que se opere uma cisão entre validade e legitimidade “sendo que as questões da validade seriam resolvidas por uma análise lógico-semântica dos enunciados jurídicos, ao passo que os problemas de legitimidade – que incluem uma problemática moral – deveriam ficar sob os cuidados de uma teoria política...”.

Um legítimo pós-positivismo jurídico precisa (re)enfrentar a legitimidade no direito (re)valorizando as relações do direito com a moral. Para esse fim Jürgen Habermas apresenta-nos seu pensamento. Inicialmente o autor explicitará as razões sociológicas que exigiram as alterações na teoria jurídica para depois apresentar-nos sua proposta.

3.1 A racionalização do mundo da vida e a relação de diferenciação e complementaridade entre direito e moral na obra de Jürgen Habermas

A teoria habermasiana da relação entre direito e moral é decerto um momento ímpar de sua teoria do direito. O autor, ao amparo do desenvolvimento histórico já desenvolvido em seus escritos, bem como na própria obra Direito e Democracia, nos capítulos que antecedem o tratamento da matéria, alerta acerca do abalo dos fundamentos de um engate vigente até o século XIX, onde as doutrinas do direito natural ainda se refletiam em um (único e uniforme) ethos da sociedade global.

Segundo o autor (2012, p.43), em tal período, se encontra cristalizada o modelo da sociedade tradicional cujo complexo de convicções afirma um tipo de validade revestida do poder factual, “no modo de uma autoridade ambivalente que vem ao nosso encontro de forma impositiva”. Instituições detentoras de poder com uma força de convicções aglutinadoras, totalmente subtraídas à problematização.

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Em tal modelo de sociedade todos os domínios da vida social encontram-se referidos a um conjunto de valores (em regra religiosos ou míticos) que dão sentido as ações e interpretações de todos os membros da comunidade (NOBRE, 2008, p. 15) de modo único e geral.

Nesse sentido e implicando diretamente no direito, as “sanções impostas pelos homens são secundárias: elas apenas vingam transgressões contra uma autoridade cogente e obrigatória que vem antes dela” (HABERMAS, 2012, p.43). A idéia que subordina o direito positivo ao direito natural é própria dessa sociedade.

Mas no que Jürgen Habermas (2012, p. 129) interpreta como “racionalização do mundo da vida”, tal engate se rompe e tal sociedade se torna complexa. Segundo o autor (2012, p.128):

Nas doutrinas do direito natural clássico, especialmente o aristotélico, vigente até o século XIX, e do direito natural cristão, transformado por Tomás, ainda se reflete um ethos da sociedade global que perpassa as camadas da população, interligando as diferentes ordens sócias.

[...]

No impulso do desenvolvimento que eu interpreto como racionalização do mundo da vida, esse engate é rompido. As tradições culturais e os processos de socialização são os primeiros a caírem sob a pressão da reflexão, de tal modo que eles gradativamente passam a ser tema dos próprios atores.

Dessa sociedade (pós-racionalização do mundo da vida), agora complexa, pluralizada, profanizada e cada vez mais diferenciada, as ordens normativas buscam manter-se sem as garantias meta-sociais de antanho. É nesse contexto que vai surgir toda a relação de diferenciação e complementação recíproca entre o direito positivo e a moral autônoma.

Aqui Jürgen Habermas inclui a teorização sobre a diferenciação entre direito e moral, até então inexistente. Na forma da teoria habermasiana, o direito e a moral simultaneamente se diferenciaram do “ethos da sociedade global” (2012, p. 141), “no qual o direito tradicional e a ética da lei ainda estavam entrelaçados entre si”.

Ambos, direito e moral, assumem fardo semelhante em tal contexto social: “ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas”, mas sob ângulos diferentes.

Assim é que, na teoria do autor, há um principio denominado “principio do discurso” (D) que se refere a normas de ação em geral se ramificando em normas morais e jurídicas.

Segundo o príncipio D, “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. Desse principio geral do discurso decorrem as especificações em principio moral e principio da democracia. E aqui é estudada a diferenciação entre direito e moral que, antecipe-se, ocorre sem qualquer subordinação entre os ambos.

O principio moral resulta da especificação para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses dos atores. Por outro lado, o principio da democracia resulta da especificação para normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com o auxílio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais, e não apenas por esses últimos.

Nas palavras do autor (2012, 142):

Pois o principio moral resulta de uma especificação do principio geral do discurso para normas de ação que só podem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses. O principio da democracia resulta de uma especificação correspondente para tais normas de ação que surgem na forma do direito e que podem ser justificadas com auxilio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais – e não apenas com o auxílio de argumentos morais.

A especificação dos argumentos indicados como integrantes a cada especificação facilitará a compreensão deste momento necessário ao raciocínio da distinção.

São considerados para o autor argumentos pragmáticos (portanto submetidos a justificação do principio da democracia) aqueles que interferem na busca de meios apropriados para a realização de objetivos e fins já determinados, onde estão em jogo uma escolha fundamentada em técnicas, estratégias, prognoses etc.

São considerados argumentos ético-políticos (portanto também submetidos a justificação do principio da democracia) aqueles onde as próprias objetivos e fins são objeto de discussão a fim de decidir sobre o que se quer realmente.

Por fim, acerca dos argumentos morais, estes justificam normas de ação sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses. Cada participante pode assumir a perspectiva de todos os outros. Independente da norma de ação a seja aplicado, os argumentos morais irão defender uma justiça onde todos (generalização que lhe é imanente) possam querer que a norma seja seguida por qualquer pessoa.

A fim de explicar o modo como ocorre essa aplicação dos argumentos morais a ambos os princípios conforme acima ressaltado pelo próprio autor, mas alterando a ordem que se encontra disposto em sua obra por fins didáticos, deixa-se explícita a diferença entre as normas jurídicas e as demais normas de ação.

O princípio moral se aplica a todas as normas de ação justificáveis com o auxilio de argumentos morais enquanto o principio democrático se aplica apenas na medida das normas do direito, independentemente de quais espécies de argumentos tais normas exijam.

Os argumentos morais são uma espécie de intersecção[10] entre o principio moral e o principio da democracia, sendo que eles (argumentos morais) podem justificar normas de ação jurídicas e não jurídicas e o principio democrático (aplicável apenas juridicamente) pode ser justificado por outros argumentos que não apenas morais (também pragmáticos e/ou ético-políticos).

Ainda a título de diferenciação pode-se afirmar uma diferença entre os princípios pela própria gênese das normas jurídicas e das demais normas de ação. As normas do direito nascem de interações complexas, possuem um caráter artificial, são normas de ação produzidas intencionalmente e aplicáveis a si mesmas, o que não ocorre com as demais normas de ação. As normas morais nascem de interações simples, naturais se encontrando quase prontas.

Eis o motivo pelo qual o principio da democracia precisa orientar a produção do próprio médio do direito. E aqui se verifica a distinção de níveis entre os princípios da democracia e o principio moral, é o que se passa a explicitar.

Enquanto principio moral funciona como regra de argumentação para a decisão racional de questões morais, o principio da democracia pressupõem a possibilidade de uma decisão racional em questões práticas, atuando na institucionalização de um sistema de direitos que garanta aos atores o igual direito de participação no processo de formação da política racional da opinião e da vontade.

O principio moral atua no nível da constituição interna do jogo de argumentação (com a sua carga de justiça) enquanto o principio da democracia atua no nível externo para a garantia da eficaz participação simétrica da formação discursiva da opinião e da vontade.

Exposta a relação de diferenciação entre principio moral e principio da democracia e excluída qualquer análise que indique subordinação de qualquer um dos princípios, passemos a análise da complementaridade entre eles, conceito que se apresenta como uma moralização do direito e o inicio de uma redefinição da teoria das fontes frente à visão positivista. É neste ponto que, de modo muito próprio, o autor promove na teoria das fontes o reencontro entre o direito e a moral.

A relação de complementaridade entre direito e moral surge no mesmo contexto acima exposto. Assim é que “a constituição da forma jurídica torna-se necessária, a fim de compensar déficits que resultam da decomposição da eticidade tradicional” (HABERMAS, 2012, p. 148).

A explicação da necessidade da forma jurídica se explica assim pelo desengate da pratica tradicional, cujo ethos societário global, agora jaz em simples convenção. Difunde-se uma moral crítica, racional e problematizadora.

Essa nova moral (da razão) especializa-se em questões de justiça à luz da universalizabildade e que tem por fim um saber “capaz de orientar para o agir” (correto), mas sem ser “capaz de dispor para o agir correto”. A moral, nesse mundo da vida racionalizado não se mantém mais vinculada com os motivos que impulsionavam os juízos morais para a prática, tendo alterado e reduzido sua forma de eficácia para a ação.

Nesse sentido, segundo Jurguen Habermas (2012, p.149), a “sua eficácia para a ação depende mais do acoplamento internalizado de princípios morais no sistema da personalidade do que da fraca força motivacional contida em bons argumentos”.

Com tamanha limitação de sua eficácia (a depender da internalização, de um substrato de estruturas da personalidade) torna-se necessário um outro caminho que complemente a moral do ponto de vista da eficácia para ação, e aqui se apresenta o direito. O direito complementa a moral na medida em que a auxilia na sua eficácia para a ação.

A teoria habermasiana da complementação entre o direito e a moral nos apresenta as dificuldades da pessoa que julga e age moralmente indicando em que medida o direito complementa a disposição de tais atores para a prática, por meio do alívio de exigências: a) cognitivas, b) motivacionais e c) organizatórias.

a) A exigência cognitiva se apresenta por meio das incertezas que sobrecarregam o ator que busca julgar e agir moralmente na medida em que a moral não possui condições de elaborar um catálogo de direito e deveres de fácil cumprimento.

A moral exige que o próprio indivíduo forme o seu juízo, transformando o igual respeito por cada um, a justiça, a lealdade (e demais normas generalizáveis) em um dever em determinado caso concreto, o que por muitas vezes depende de uma análise complexa e que sobrecarrega cognitivamente a formação do juízo moral próprio.

Para essa finalidade se apresenta o direito que, mediante um processo de legislação, pratica de decisões judiciais institucionalizadas e uma dogmática profissional que sistematiza decisões e concretiza regras, alivia a capacidade analítica do indivíduo permitindo e facilitando uma maior disposição para a ação.

b) A exigência motivacional se apresenta com relação à sua força de vontade para agir seguindo intuições morais, mesmo contra seus interesses, vez que é necessário harmonizar deveres e obrigações.

Para a incerteza motivacional que se apresenta, o direito coercitivo com suas ameaças de sanção determina um agir conforme normas libertando o ator de um peso motivacional ao permitir que os destinatários atenham às consequências de suas ações.

c) Por fim, as exigências organizatórias surgem especialmente em relação a deveres positivos que exigem esforços cooperativos para combater problemas de grande amplitude e que exigem a imputabilidade de tais obrigações e uma complexa divisão de trabalho que deve ser organizado, via de regra, por meio de instituições, organizações e outros sujeitos de direito fictícios.

O direito, para compensar o déficit organizatório moral e a ausência de uma imputabilidade, forma cadeias de ação e realização para o combate aos males de uma sociedade complexa (fome, miséria, etc) em uma divisão moral do trabalho compensando uma fraqueza de vontade e dificuldade de organização dos atores que agiriam moralmente.

Por fim, ressaltando uma importância adicional à moral outorgada pelo autor em sua teoria (HABERMAS, 2012, p. 204-210), deve-se salientar que os argumentos morais possuem uma prioridade em relação aos demais argumentos, pois “antes de querer ou aceitar um programa, é preciso saber se a prática correspondente é igualmente boa para todos”.

Aqui há uma clara prioridade da justiça antes de se ter como aceita uma norma jurídica, independentemente da espécie de argumento que a justifica. Assim, o autor nos indica uma adicional relação entre direito e moral onde aquela deve se reportar a esta para se ter como válido e aceito.

3.2 Uma nova teoria da norma: A normatividade dos princípios pela proposta de Ronald Dworkin. A necessidade de uma leitura principiológica não arbitrária.

Ronald Dworkin, sob o objetivo de lançar um ataque ao positivismo, de logo inicia sua abordagem questionando o conceito de direito. Segundo o autor (2010, p.36) “o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras”. Ocorre que, para o autor, os juristas utilizam outros “padrões que não funcionam como regras”, mas que funcionam diferentemente, “como princípios, políticas e outros tipos de padrões”. Assim Ronald Dworkin inicia a sua teoria sobre a normatividade dos princípios.

Muitos outros jusfilósofos[11] colaboraram grandemente com a compreensão desse fenômeno que ainda causa tanta celeuma no mundo jurídico, mas para os limites e a compreensão deste trabalho, poucos como a teoria dworkiana.

Indubitavelmente a contribuição de Ronald Dworkin é digna de aplausos no sentido de apresentar uma compreensão que, ao mesmo tempo em que confere normatividade direta a outros padrões que não regras, permite que sua compreensão de tais padrões sejam limites diretos para a discricionariedade[12]judicial, apresentando uma resposta (que entendemos correta) para o acima indicado problema da teoria (ou ausência de) da interpretação positivista.

Segundo o autor, entre outros tipos de padrões é possível afirmar, em sua análise, padrões que funcionam diferentemente das regras, mas que funcionam como princípios e também como políticas.

Para Ronald Dworkin, o termo princípio pode ser utilizado de forma genérica para indicar todo o conjunto de padrões do direito que não são regras, mas também pode ser utilizado de forma mais específica como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência de justiça, equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. Eis para a teoria dworkiana o modo por meio do qual a moral se reaproxima do direito.

Além de regras e princípios o autor apresenta ainda como padrão o que denomina como política. Segundo sua teoria, políticas são os padrões que estabelecem um objetivo a ser alcançado, via de regra, objetivos de ordem social, econômica ou política.

A fim de clarificar sua teoria, Ronald Dworkin inicia o tratamento da diferenciação entre os padrões apresentados. Inicialmente a diferenciação aparece entre os princípios (em seu sentido genérico) e as regras.

Para o autor, em um critério de diferença lógica, as regras são aplicáveis no modo tudo ou nada, nesse sentido, conforme a ocorrência ou não dos fatos estipulados pela regra, ou ela é valida e deve ser aceita sua consequência normativa, ou a regra não é válida e em nada contribuirá para a decisão.

Já os princípios, são padrões que não determinam de modo absoluto (tudo ou nada) a decisão, apenas conduzindo o argumento em uma certa direção, mas necessitando de uma decisão particular.

Um outro critério de distinção utilizado para diferença entre princípios e regras é o critério quanto à colisão. Segundo o autor, em caso de colisão entre regras, uma delas não pode ser válida, sendo o conflito entre regras solucionado através de outras regras que estabelecem critérios de precedência à regra hierarquicamente superior, temporalmente posterior, tematicamente mais específica etc.

Por outro lado, em caso de colisão entre princípios, é necessário recorrer a uma dimensão de peso, para avaliar no caso em discussão qual a força e a importância de cada princípio, sendo solucionado quando de sua aplicação.

A teoria dworkiana apresenta os princípios jurídicos dentro do conceito de direito em contraposição de uma teoria positivista que os exclui de categoria jurídica, externando sua posição o autor afirma:

Podemos tratar os princípios jurídicos da mesma maneira que tratamos as regras jurídicas e dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas (DWORKIN, 2010, p. 46).

A compreensão de Ronald Dworkin sobre a normatividade dos princípios aparece aqui como elemento que, frente à teoria positivista, realiza o um fechamento hermenêutico de uma interpretação discricionária dentro da textura/moldura normativa. Conforme nos adverte o autor, a alternativa “trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente” (DWORKIN, 2010, p. 48).

Ainda no aspecto descritivo da classificação proposta pelo autor ressalta-se, por fim, a distinção entre princípios (em sentido estrito) e políticas. Para o autor, esta distinção se resolve na linha da diferença entre um direito e um objetivo. Os princípios se apresentam como proposições que descrevem direitos enquanto as políticas são proposições que descrevem objetivos.

É possível observar, sem muito esforço, certa semelhança nos tipos de argumentos (ou padrões) que se encontram presentes nas reflexões de Jürgen Habermas e Ronald Dworkin para a reaproximação entre direito e moral.

A teoria habermasiana trabalha com o conceito de argumentos morais e pragmáticos o que na teoria dworkiana, guardadas distinções periféricas[13], se apresentam nos padrões de princípios strictu sensu.

Por outro lado, Jungem Habermas trabalha ainda com as classificações de argumentos ético-políticos, os quais fundamentam a escolha dos objetivos. Também esses argumentos podem ser encontrados em Ronald Dworkin, em conceito aproximado do que este denomina por políticas.

Fixadas o que compreende como sólidas premissas teóricas de um pós-positivismo jurídico de validade, agora em renovadas relações com a moral, é possível buscar bases filosóficas constitutivas de uma teoria da decisão que seja constitucionalmente adequada ao momento jusfilosófico de superação do positivismo.

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Sobre o autor
Matheus Souza Galdino

Pós-graduado em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Aprovado nos concursos para ingresso nos cargos de Procurador do Estado do Piaui (2015), Procurador do Municipio de Salvador-Ba (2016, aguardando convocação para a fase de títulos) e Procurador do Municipio de Nossa Senhora do Socorro - Se (2014). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALDINO, Matheus Souza Galdino. Jurisdição constitucional, pós-positivismo e hermenêutica.: Bases teóricas de um neoconstitucionalismo que busque democratizar a teoria da decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4641, 16 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46417. Acesso em: 23 abr. 2024.

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