3 AS IMPLICAÇÕES DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO SISTEMA DOS PRECENTES JUDICIAIS
3.1 O impasse do Livre Convencimento
Um dos impasses apontados no novo Código de Processo Civil por diversos doutrinadores e estudiosos do Direito é a questão do livre convencimento motivado dentro do sistema dos precedentes judiciais.
Macêdo (2015) afirma que os precedentes obrigatórios, ao contrário do que se poderia pensar, são na verdade um limite ao poder judicial. Tal pensamento decorre em virtude dos juízes possuírem o poder de criar o direito. Apesar da tradição jurídica ter imputado a criação do direito ao legislador, a verdade é que não é possível antever todos os fatos da vida com precisão. Portanto, há margem de criatividade aos órgãos julgadores, que precisam interpretar os textos legais. Cita ainda como exemplo de atividades criativas realizadas pelos juízes o controle de constitucionalidade e a concretização de princípios.
Desse senso, observa-se que a criatividade é inerente à atividade jurisdicional, em maior ou menor medida. E tal criatividade jurisdicional possui como impacto negativo, por exemplo, em viradas jurisprudenciais abruptas; litigância exagerada e pautada na chance de reverter o sempre instável entendimento dos tribunais ou de simplesmente ter sorte na distribuição; ou quando jurisdicionados em situações materiais idênticas vejam-se tratados de forma díspar (MACÊDO, 2015).
Macêdo (2015) critica a criatividade jurisdicional, que acarreta em uma perniciosa esquizofrenia jurisprudencial. Defende ainda que enquanto houver a repetição de que a jurisdição é meramente declaratória, sem nenhum toque de criatividade, e que ficou reservada exclusivamente ao legislador, continuar-se-á na permanente omissão da raiz da questão, provocando os sintomas elencados no parágrafo anterior, típicos de um sistema jurídico que não se preocupa em regular a criatividade jurisprudencial.
O novo CPC trouxe instrumentos que tratam dos precedentes judiciais, dispostos em seus artigos 926, 927 e 489, § 1º, incisos V e VI. Com a utilização do sistema dos precedentes, diminui-se o âmbito de livre criação jurisprudencial, na medida em que os tribunais deverão dialogar com o que foi construído por eles anteriormente e, mais ainda, estabelece a responsabilidade pela atuação prévia do Judiciário, que precisa respeitar suas próprias decisões e tutelar os jurisdicionados que atuaram em conformidade a elas (MACÊDO, 2015).
Conclui Macêdo (2015) que essa forma de atuação garante mais segurança jurídica e igualdade aos jurisdicionados, afiança coerência e integridade ao direito, e, conjuntamente com algumas medidas processuais, pode incrementar a eficiência jurisdicional.
Streck (2015) seguindo a mesma posição de Macêdo (2015) aponta que a democracia é incompatível com consciências pessoais. Leciona que a versão original do novo CPC continha a permanência do livre convencimento motivado, mas que de nada adiantaria exigir do juiz que enfrente todos os argumentos deduzidos na ação se, por exemplo, o magistrado tiver a liberdade de invocar a “jurisprudência do Supremo” que afirma que o juiz não está obrigado a enfrentar todas as questões arguidas pelas partes.
Streck (2015) propôs ao relator do projeto do novo CPC, deputado Paulo Teixeira, a retirada do livre convencimento, que foi aceita. O doutrinador considera uma conquista hermenêutica sem precedentes, e justifica:
(...) embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favos da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. (...) O livre convencimento se justifica em face da necessidade de superação da prova tarifada.
Justificando seu raciocínio, Streck (2015) defende que o processo deve servir como mecanismo de controle da produção das decisões judiciais por duas razões: a primeira é porque o cidadão possui direitos que devem ser garantidos pelo tribunal, por meio de um processo; a segunda é que o processo sendo uma questão de democracia, o cidadão deve poder participar da construção das decisões que o atingirão diretamente. Portanto, a necessidade do exílio epistêmico do livre convencimento é consequência de uma democracia que se faz aplicando o direito, e não a convicção pessoal de um conjunto de juízes ou tribunais.
Entretanto, não há consenso sobre o fim do livre convencimento motivado no novo CPC. Gajardoni (2015) aponta que no novo CPC não há dispositivo de exata correspondência ao artigo 131 do CPC de 1973, o qual estabelece que “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”, o que tem levado alguns intérpretes da lei a defender o fim do princípio do livre convencimento. A afirmação de que não há mais no Brasil o sistema do livre convencimento parte de um manifesto erro de premissa.
O autor defende que a previsão legal de standards mínimos de motivação no novo CPC (art. 489, § 1º) não afeta a liberdade que o juiz possui para valorar a prova, pois a autonomia na valoração da prova e a necessidade de adequada motivação são elementos distintos e presentes tanto no CPC de 1973 quanto no novo CPC. A regra prevista no artigo 489, § 1º do novo CPC trata do segundo elemento (motivação) e não do primeiro elemento (liberdade na valoração da prova) (GAJARDONI, 2015).
Complementa-se ainda o fato de que a regra expressa estabelecendo o dever de respeito aos precedentes previsto no artigo 927 do novo CPC também não impacta no livre convencimento. A livre valoração da prova pelo juiz só é possível e recomendável através do exercício do contraditório cooperativo, em que as partes, através do cumprimento do adequado ônus argumentativo, influenciam na formação da convicção do órgão julgador, uma novidade requentada no novo CPC e já prevista no CPC de 1973 (GAJARDONI, 2015).
Além da autonomia na valoração motivada da prova, mesmo em matéria de Direito há espaço para a liberdade de convicção; e o que ocorreu foi apenas o advento de uma disciplina mais clara dos métodos do trabalho do juiz, não a extinção da autonomia do julgamento (GAJARDONI, 2015).
Em oposição ao pensamento de Gajardoni (2015) e defendendo o fim do livre convencimento motivado estão Delfino e Lopes (2015), que destacam o proposital banimento do instituto no novel sistema processual, em virtude da importância do controle do convencimento judicial.
Como necessidade da expulsão do livre convencimento, transcreve-se trecho do voto do ministro Humberto Barros:
“Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.” (sem grifos no original) (DELFINO; LOPES, 2015).
O voto apresentado é uma prova pujante da força das palavras, centrada em decisão prolatada pela Corte que tem a incumbência de zelar pela unidade do direito federal infraconstitucional, cujo eco, só por isso, inspira e inspirou a todos que militam na praxe forense, além de alcançar os próprios jurisdicionados, que inescapavelmente se encontram à mercê da consciência dos bons e maus julgadores. Um quadro triste e acinzentado de uma justiça ainda emaranhada em resquícios positivistas, enlameada no paradigma da filosofia da consciência no qual o livre convencimento motivado encontra porto seguro, e onde julgadores valoram a prova a seu bel-prazer (ainda que motivadamente) e “decidem assim porque pensam assim” (DELFINO; LOPES, 2015).
O princípio do livre convencimento motivado não se sustenta em um sistema normativo como o novo CPC, que aposta suas fichas no contraditório como garantia de influência e não surpresa, e, por isso, alimenta esforços para se ajustar ao paradigma da intersubjetividade, em que o processo é encarado como local normativamente condutor de uma comunidade de trabalho na qual todos os sujeitos processuais atuam em viés interdependente e auxiliar, com responsabilidade na construção e efetivação dos provimentos judiciais (DELFINO; LOPES, 2015).
Não se pode falar que o juiz se torna um robô, mas que assuma definitivamente sua responsabilidade política. Suas pré-compreensões, seu pensar individual ou sua consciência não interessam aos jurisdicionados. Os autores encerram sua defesa apontando que fez certo o legislador ao proscrever do sistema processual esse rastro autoritário ainda sustentado pelo CPC de 1973 e que mantém escancarada, em pleno século XXI, uma janela para emanações concretas da ideologia socialista no palco processual, confiando aos julgadores liberdade para decidirem conforme pensam e segundo a prova que melhor se amolde ao seu pensamento, desde que depois justifiquem, como se o dever de fundamentação (por mais oneroso que se apresente), impermeabilizasse sozinho o livre atribuir de sentidos (DELFINO; LOPES, 2015).
Seguindo a corrente majoritária, Souza Neto (2015, p. 71) ensina que o novo CPC não contemplou o livre convencimento do juiz que constava na legislação anterior. A democracia não é compatível com a tomada de decisões judiciais a partir de consciências pessoais. Nas duas únicas vezes que o novo CPC menciona o termo “convencimento”, o legislador se preocupou em reforçar a necessidade de fundamentação das decisões.
Para constatar sua afirmação, Souza Neto (2015, p. 71) diz que artigo 371 estabelece que o juiz, ao apreciar a prova constante nos autos, deverá indicar na decisão as “razões da formação de seu convencimento”. E no artigo 298 prescreve que mesmo quando o juiz se manifestar sobre tutela provisória, deverá motivar seu convencimento de modo “claro e preciso”. Portanto, o código está lastreado na fundamentação, racionalidade e publicidade às decisões judiciais, evitando a surpresa com decisões arbitrárias, fundadas em consciências individuais que não correspondem ao espírito do Estado Democrático de Direito.
Diante da exposição, vislumbra-se que a doutrina majoritária tende em defender que ocorreu o fim do livre convencimento motivado no novo CPC, esclarecendo que a mudança somente tem a trazer benefícios para a prestação jurisdicional e a possibilidade de maior efetividade na implantação do sistema do stare decisis brasileiro.
3.2 Vantagens e desvantagens com a aplicação da vinculação dos precedentes
Segundo Ramos (2013), a maior parte da doutrina aponta que o uso dos precedentes vinculantes acarreta numa série de vantagens, entre as quais: a segurança jurídica, previsibilidade, estabilidade, igualdade (perante a jurisdição e a lei), coerência da ordem jurídica, garantia de imparcialidade do juiz, definição de expectativas, desestímulo à litigância, favorecimento de acordos, racionalização do duplo grau de jurisdição, duração razoável do processo, economia processual e maior eficiência do judiciário.
Contudo, há autores que também elencam uma série de desvantagens para o uso dos precedentes vinculantes, tais como: obstáculo ao desenvolvimento do direito e ao surgimento de decisões adequadas às novas realidades sociais, óbice à realização da isonomia substancial, violação do princípio da separação dos poderes, violação da independência dos juízes e violação da garantia do acesso à justiça (RAMOS, 2013).
Analisa-se a seguir com mais acuidade algumas das vantagens e desvantagens do uso do sistema dos precedentes vinculantes.
3.2.1 Principais vantagens
3.2.1.1 Tratamento isonômico dos jurisdicionados
O sistema jurídico brasileiro, com base no princípio do livre convencimento motivado do julgador, acaba por consentir no tratamento desigual para casos semelhantes. A lei poderá ser aplicada de forma desigual, a depender da interpretação de cada julgador, desde que sua decisão seja fundamentada (SANTO, 2014).
A aplicação do direito seguindo estes parâmetros termina por ferir o princípio da igualdade, pois os jurisdicionados recebem tratamento desigual, ainda que as relações jurídicas apresentadas em juízo sejam semelhantes, acarretando em grande insatisfação social. Casos iguais decididos de forma diversa por um magistrado, beira à arbitrariedade e à falta de imparcialidade, pois um jurisdicionado poderá obter uma decisão desfavorável, quando, em caso idêntico, o outro recebe decisão favorável (SANTO, 2014), tudo isso amparado pelo manto do livre convencimento motivado.
A adoção do stare decisis, em outras palavras, a vinculação dos precedentes judiciais poderá vir a ser uma solução para essa discrepância, pois ao constatar a existência de um precedente anterior para aquele caso, deverá o magistrado obrigatoriamente segui-lo, garantindo-se a interpretação uniforme do direito.
O princípio da igualdade não diz respeito tão somente ao tratamento igualitário entre as partes no processo, no que tange à manifestação, contraditório e provas, mas também é vital sua aplicação na forma mais ampla, no momento da decisão, acolhendo as decisões anteriores e semelhantes já analisadas pelo Judiciário (SANTO, 2014).
Todos são iguais perante a lei em tese, mas também devem ser tratados igualmente em relação à interpretação que lhe é conferida pelo Judiciário, afinal, cabe a este poder a fixação da norma jurídica do caso concreto, ao julgar as questões que lhe são postas (SANTO, 2014).
3.2.1.2 Respeito à segurança jurídica
Pode-se afirmar que o princípio da segurança jurídica é uma das maiores conquistas e virtudes do Estado Democrático de Direito, não podendo ser desprezado no sistema do stare decisis. A adoção dos precedentes vinculantes ocasiona a certeza do jurisdicionado em relação àquela situação apresentada em juízo, já que evita a incerteza das decisões judicias contraditórias no mesmo juízo ou em juízos diversos, resultando em decisões uniformes (SANTO, 2014).
O julgador não pode ser livre para decidir de forma contrária a um tribunal superior, na medida em que a sua decisão não é definitiva, pois sempre poderá ser reformada ao ser submetida ao crivo da corte superior. Nota-se uma contradição no duplo grau no sistema jurídico brasileiro, pois ao mesmo tempo em que o juiz é “livre” para decidir, a última palavra será dada pelo tribunal (SANTO, 2014).
O Judiciário deve ser visto como um todo, um só poder, que deve dar uma interpretação uniforme para determinada questão. Se o sistema é estruturado em níveis, é contraditório que uma causa seja decidida por um juiz ou tribunal sem qualquer observância das decisões do STJ e STF (SANTO, 2014).
A interpretação de modo uniforme das leis faz com que exista uma ordem jurídica coerente, funcional e uniforme, dando maior previsibilidade aos cidadãos quanto à interpretação dada pelo Judiciário. Ao contrário, uma ordem jurídica instável, onde cada juiz decide como bem entende, sem uma visão ampla da interpretação de seu tribunal e dos tribunais superiores, causa insatisfação dos jurisdicionais e injustiças sociais (SANTO, 2014).
É fato que os juízes possuem autonomia para decidir, mas devem sobretudo respeito às decisões emanadas das cortes superiores. Essa observância não caracteriza violação à independência funcional, visto que o juiz não é um sistema por si só, mas faz parte de um sistema (do Poder Judiciário).
Visando maior amplitude à segurança jurídica e à isonomia, o novo CPC trouxe em seu artigo 976 o incidente de resolução de demandas repetitivas, que pode ser instaurado quando houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito, não se exigindo custas processuais. Não se admite o instituto apenas quando um dos tribunais superiores já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva (RIBEIRO, 2015, p. 76). Examina-se o artigo a seguir.
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
§ 1º A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente.
§ 2º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.
§ 3º A inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado.
§ 4º É incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.
§ 5º Não serão exigidas custas processuais no incidente de resolução de demandas repetitivas.
Após a instauração e julgamento do incidente, confere-se a mais ampla publicidade (art. 979, caput), exigindo-se a indicação dos fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos relacionados (art. 979, § 2º), como se observa no transcrição a seguir do artigo.
Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça.
§ 1º Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça para inclusão no cadastro.
§ 2º Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.
§ 3º Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral em recurso extraordinário.
A intenção, segundo Ribeiro (2015, p. 76), é conferir divulgação e facilitar a identificação das teses resolvidas com o incidentes referido, mas o dispositivo também pode ser entendido como parte do anseio geral do novo código de aplicar maior destaque às teses jurídicas em disputa, valorizando a jurisprudência.
Detecta-se a proteção à segurança jurídica com a exigência de estabilidade, integridade e coerência na formação da jurisprudência brasileira, presente no artigo 926. Este dispositivo pugna que todos os casos semelhantes sejam interpretados com a mesma consideração por parte dos juízes, e que estes construirão seus argumentos a partir de uma visão integrada de todo o direito, afastando-se, desse modo, eventuais arbítrios nas tomadas de decisão, e conferindo estabilidade e segurança jurídica ao direito brasileiro (RIBEIRO, 2015, p. 77).
Seguindo o raciocínio, Ribeiro (2015, p. 78) explana que na égide do Código de Processo Civil de 1973, os tribunais devem observar necessariamente apenas as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal. Com o novo código, as decisões constitucionais proferidas no plenário do STF deverão ser seguidas por juízes e tribunais. Nos demais assuntos, deverão ser seguidos os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça. Assim, o novo código pretende mitigar o antigo cenário de insegurança jurídica, na medida em que empreende substancial caráter vinculante às decisões dos tribunais superiores, que orientam as decisões sobre casos semelhantes, estabelecendo um efetivo sistema de respeito aos precedentes. Arremata que eventuais distorções tendem a ser corrigidas naturalmente, para a garantia de integridade na fixação dos precedentes judiciais.
Ainda em defesa da fundamentação de todas as decisões judicias, o artigo 11 do novo CPC apenas reforça a previsão constitucional do artigo 93, inciso X, que ainda estabelece o dever de publicidade das decisões.
Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público.
São dois elementos de suma importância para a garantia da segurança jurídica, conferindo maior previsibilidade e uniformidade na formação e uso da jurisprudência. Além disso, o novo CPC ainda determina em seu artigo 10 que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual se deva decidir de ofício”. O objetivo, mais uma vez, é conferir segurança jurídica às partes, na medida em que assegura o contraditório e o amplo direito de defesa (RIBEIRO, 2015, p. 79).
A conexão entre a fundamentação das decisões (tema que será tratado especificamente no tópico seguinte), a segurança jurídica e a fixação de precedentes na atividade judicial é vital para a construção do stare decisis brasileiro. A força do precedente será tão mais robusta quanto mais for capaz de responder sobre as teses jurídicas em disputa. Quanto melhor fundamentada a decisão, mais ela será capaz de servir como bom precedente, na medida em que exigirá elevado grau de esforço argumentativo para sua superação (RIBEIRO, 2015, p. 79).
3.2.1.3 Fundamentação das decisões judiciais
No que tange à fundamentação das decisões judicias, Souza Neto (2015, p. 64) defende que uma importante inovação trazida pelo novo CPC é a tentativa de conferir maior racionalidade argumentativa às decisões judiciais.
Discorre o autor que no direito brasileiro, mais importa o resultado do que o percurso argumentativo de construção das decisões judiciais. Como exemplo, ilustra com o diagnóstico de José Rodrigo Rodrigues em sua obra “Como decidem as cortes”, na qual trata que o Supremo Tribunal Federal decide, mas não delibera, na medida em que os onze ministros levam seus votos prontos ao plenário de julgamento, oferecendo, muitas vezes, razões distintas que chegam a um mesmo resultado (SOUZA NETO, 2015, p. 64).
Assim não se torna possível identificar uma voz institucional da corte brasileira, mas um conjunto de decisões individuais, que não necessariamente se relacionam. Nesse contexto, se o resultado importa mais que a argumentação, a vinculação aos precedentes perde força, na medida em que as decisões poderiam facilmente variar conforme a composição do tribunal (SOUZA NETO, 2015, p. 65).
Portanto, o novo CPC traz mais racionalidade à atividade judicial brasileira, na medida em que exige decisões completas e fundamentadas, e estabelece a necessidade de maior vinculação aos precedentes. No mesmo sentido, o relator do projeto do novo código na Câmara dos Deputados, o deputado Paulo Teixeira defende que o incidente de resolução de demandas repetitivas é um instituto vocacionado a conferir mais racionalidade à jurisprudência brasileira, evitando o elevado número de decisões diferentes sobre um mesmo assunto e tornando o sistema mais coerente e acessível (SOUZA NETO, 2015, p. 65).
O incidente de resolução de demandas repetitivas, apresentado no artigo 976 do novo CPC, possui grande conexão com a fundamentação das decisões, pois o novo código prioriza a discussão do mérito das questões submetidas aos tribunais, reforçando a importância da argumentação jurídica e produzindo assim decisões de melhor qualidade (SOUZA NETO, 2015, p. 66).
A necessidade de fundamentação das decisões judicias reafirma uma exigência constitucional (art. 93, inciso IX), sendo dever do Estado e direito fundamental do jurisdicionado, como garantia do devido processo legal e melhor expressão do Estado Democrático de Direito (SOUZA NETO, 2015, p. 66).
Além disso, a garantia de fundamentação é indispensável para a aferição da correção das decisões judiciais, ensina Souza Neto (2015, p. 67). Esta garantia exerce dupla função: a motivação das decisões judiciais fornece elementos para que as partes analisem as razões do juiz, podendo recorrer a uma instância superior; e a fundamentação das decisões judiciais interessa à própria sociedade, na medida em que a opinião pública e os próprios cidadãos são interessados nas manifestações judiciais.
Em alguma medida, todos aqueles que vivem a Constituição são seus legítimos intérpretes, de modo que todos são capazes de empreender alguma forma de controle sobre as decisões judiciais a partir de suas fundamentações (HÄBERLE, 2002 apud SOUZA NETO, 2015, p. 67).
A necessidade de vinculação aos precedentes judiciais acarreta em um grande esforço da fundamentação. Não se pode negar que a finalidade de fundamentação das decisões judiciais se aprimore substancialmente, pois a motivação das decisões é de caráter substancial, não apenas formal. O juiz deve se manifestar sobre todas as teses sustentadas pela parte, o que decorre do próprio princípio do contraditório, que assegura às partes o direito de ter seus argumentos levados em consideração (SOUZA NETO, 2015, p. 67).
3.2.1.4 Celeridade processual
Prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal, a duração razoável do processo é um direito fundamental constantemente desrespeitado pelo Poder Judiciário. O respeito aos precedentes poderá trazer maior agilidade do Judiciário, na medida em que permitem que processos posteriores que tratam de situações idênticas sejam solucionados de forma mais rápida, pois o magistrado aproveitará todo o estudo já realizado pelos Tribunais superiores (SANTO, 2014).
Constatando a paridade de situações, o julgador aplicará o precedente, o que permite com que o magistrado tenha mais tempo para se dedicar aos outros casos que exigem solução individualizada (SANTO, 2014).
Quando o Judiciário tem entendimentos diversos acerca de uma mesma questão jurídica, os jurisdicionados tentarão todos os recursos possíveis, na esperança de ver aplicado ao seu caso o entendimento que lhe é mais favorável (SANTO, 2014).
A mesma situação é verificada no ajuizamento de novas ações. Se não há tese que prevaleça, todos que estão na mesma situação irão propor ações judiciais, na esperança de que seu pedido seja julgado procedente (SANTO, 2014).
Ambas situações, as quais podem ser denominadas de “aventuras jurídicas”, colaboram para o aumento do número de processos, geram maiores despesas para o Judiciário e o tornam mais lento (SANTO, 2014).
Tendo a parte certeza de que a sua pretensão não será acolhida pelo Judiciário, não arcará com os custos do processo e nem perderá tempo em busca de uma tutela plenamente infrutífera (SANTO, 2014).
Quando os tribunais inferiores estão obrigados a decidir de acordo com os tribunais superiores, os recursos apenas serão admitidos em casos excepcionais e a parte não correrá o risco de ter que levar o seu caso aos tribunais superiores para que a tese destes prevaleça (SANTO, 2014).
Evita-se o desperdício de tempo e dinheiro em recurso de uma decisão que será fatalmente reformada. A tutela do direito da parte poderá ser conferida de plano, abreviando o caminho e com custos menores para a parte e para o próprio Judiciário (SANTO, 2014).
O sistema jurídico brasileiro atual acaba por estimular a propositura de ações e a interposição de recursos, pois não existe unidade de interpretação da norma, muitas vezes num só tribunal observam-se posicionamentos diversos. Tal situação favorece a criatividade judicial, o debate jurídico e colabora para a evolução do direito, mas por outro lado provoca uma maior lentidão do Judiciário (SANTO, 2014). Dessa forma, não se pode negar que o sistema do stare decisis possibilitará maior celeridade processual ao Judiciário brasileiro.
3.2.2 Desvantagens mais relevantes
3.2.2.1 Obstáculo à inovação do Direito
Relevante questionamento para a aplicação dos precedentes vinculantes é até que ponto a obrigatoriedade do sistema poderia dificultar a mudança do entendimento judicial, ainda que de forma fundamentada.
A obrigatoriedade da vinculação dos precedentes poderá tolher a criatividade judicial, na medida em que o juiz não poderá inovar nas suas decisões. O magistrado poderá ser impedido de demonstrar a evolução do seu posicionamento no decorrer do tempo e de decidir determinada questão jurídica da forma que achar a mais adequada àquele contexto social e temporal (SANTO, 2014).
A implantação do precedente poderia ocasionar numa imobilização da jurisprudência, o que impediria a evolução do direito no decorrer do tempo, tornando-o inadequado às novas realidades sociais (SANTO, 2014).
Apesar deste obstáculo, constata-se que há previsão no próprio sistema do stare decisis, com técnicas que permitam a sua mudança, como por exemplo, através da técnica do overruling (SANTO, 2014).
Assim como as leis, os precedentes podem ser revogados gradativamente, com a evolução da sociedade, permitindo-se o desenvolvimento do direito, adequando-o à realidade. A obrigatoriedade dos precedentes não significa torná-los imutáveis, pois poderão ser modificados, excepcionalmente, em razão, por exemplo, da transformação dos valores, do desenvolvimento da ciência e do surgimento de novas tecnologias (SANTO, 2014).
Nos países adotantes do common law, a obrigatoriedade dos precedentes não impede a sua revogação em razão da evolução da sociedade, pois, com o passar do tempo poderá haver a superação do precedente, surgindo a necessidade de cancelá-lo, através da técnica do overruling (SANTO, 2014).
3.2.2.2 Violação da autonomia judicial
Os críticos da adoção dos precedentes vinculantes defendem que obrigar o juiz a decidir de acordo com um precedente violaria a sua independência. Entanto, ser independente no sistema jurídico brasileiro significa poder interpretar a lei da maneira que achar correta, desde que de forma fundamentada (SANTO, 2014).
No sistema do civil law, o juiz poderá dar significado à lei, ainda que exista posicionamento reiterado em outro sentido, fixado pelo tribunal. Isso não violaria o direito da parte, pois esta tem à sua disposição os recursos e outros meios de impugnação das decisões judiciais. A questão da vinculação dos precedentes, por outro lado, põe em confronto a garantia do exercício autônomo da magistratura e a necessidade dos jurisdicionados de obter do Judiciário uma resposta uníssona quanto a uma determinada questão jurídica controvertida, diante de casos semelhantes (SANTO, 2014).
Invocar a independência funcional para fundamentar decisões díspares para casos semelhantes seria o mesmo que concordar com respostas diferentes emanadas do mesmo Poder Judiciário ou com a existência de várias normas aplicáveis a uma mesma situação (SANTO, 2014).
Em verdade, o objetivo da vinculação dos precedentes não é subordinar um juiz inferior a um superior, mas fazer com que o Judiciário como um todo respeite os seus precedentes, suas próprias decisões, uniformizando-as num determinado sentido (SANTO, 2014).
Questiona-se ainda o fato de que o juiz inferior não poder revogar o precedente, o que violaria sua autonomia. Mas isso faz parte de um sistema balizado pelo duplo grau de jurisdição, pois assim como o juiz de primeiro grau pode ter sua decisão reformada por um tribunal superior, pode-se determinar que desde já os precedentes daquela corte sejam respeitados (SANTO, 2014).
A jurisdição é una, e os juízes e tribunais compõem uma só estrutura, portanto, o Judiciário poderá fixar seu entendimento a respeito da interpretação de uma lei, prestando a tutela jurisdicional com maior coerência, oferecendo à sociedade uma só resposta para a questão apresentada em juízo (SANTO, 2014).
A Constituição Federal garante aos juízes a autonomia funcional, mas também a mesma carta constitucional assegura o princípio da igualdade de todos perante a lei (em visão mais atualizada, a igualdade perante o ordenamento jurídico, o que inclui as decisões judiciais), o que deve ser visto não só em abstrato, mas também em relação à sua interpretação nos casos concretos (SANTO, 2014).
A garantia da independência funcional, portanto, também deve ser vista sob o prisma dos jurisdicionados, conferindo-lhes direito a um julgamento imparcial e justo. A imparcialidade e justiça existirão quando em casos semelhantes, o juiz aplique igualdade de tratamento (SANTO, 2014). Não há, portanto, qualquer invasão ou desrespeito à autonomia judicial com a aplicação do sistema do stare decisis.
3.3 Impactos à criatividade judicial provocados pelo sistema do stare decisis
Andrade (apud MESSIAS, 2013) explana que para Chiovenda, o juiz, exercendo a jurisdição, se limitava a declarar a vontade da lei. É o que se conhece como teoria dualista ou declaratória do ordenamento jurídico.
No contraponto desse pensamento, Carnelutti, partindo da ideia de que a jurisdição pressupõe a existência da lide, apresenta o pensamento de que o juiz, quando exerce a jurisdição, cria a norma individual para o caso concreto, solucionando o conflito. Esse posicionamento, advindo de origem kelsiana, é conhecido como teoria unitária do ordenamento jurídico (MESSIAS, 2013).
Em síntese às duas teorias, Marinoni (apud MESSIAS, 2013) resume que as concepções de que o juiz atua a vontade da lei e de que o juiz edita a norma do caso concreto beberam da mesma fonte, pois a segunda, ao afirmar que a sentença produz a norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinar, concretiza a norma já existente, a qual, dessa forma, também é declarada. Leite (apud MESSIAS, 2013) arremata que as duas teorias não se diferenciam, uma vez que a jurisdição deveria levar em conta a norma geral (lei), para solucionar o caso concreto.
Após as grandes mudanças advindas da segunda metade do século XX, em especial na própria teoria geral do direito, atualmente não se encontra dificuldade em afirmar que a decisão judicial tem força normativa, inclusive extra individual, na forma de precedente. Outra importante mudança é a observância de que quem interpreta também cria, pois toda interpretação é uma atividade criativa, em diferentes níveis, dando forma à criatividade judicial (MESSIAS, 2013).
Não se pode afastar a ideia de que a jurisdição é uma função criativa, pois quando se decide, cria-se a norma jurídica do caso concreto, bem como se cria a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto (DIDIER JR., 2013 apud MESSIAS 2013). A decisão judicial contém a norma individual (ou norma jurídica individualizada), que diferentemente das demais normas, tem aptidão de se tornar imutável pela coisa julgada material.
Pontes de Miranda (apud MESSIAS, 2013) explica que o princípio de que o juiz está sujeito à lei é algo como um guia, um roteiro, que nem sempre serve ao viajante. Desse entendimento é que surge a necessidade da função criativa do juiz, pois se a criação jurisdicional fosse nula, os hard cases (casos em que ainda não há precedente sobre o tema, devendo o magistrado refletir, pela primeira vez sobre o assunto, já diante do caso concreto que se apresenta) não poderiam ser resolvidos (MESSIAS, 2013).
Messias (2013) ensina que o judiciário tem o dever de solucionar todo e qualquer caso que seja a ele apresentado, inclusive os “difíceis”, os quais serão objeto do poder da criatividade. Entende-se dessa forma que a criatividade jurisdicional serve, acima de tudo, para evitar o non liquet (expressão latina que se aplicava nos casos em que o juiz não encontrava nítida resposta para decidir, e por isso, deixava de julgar).
O juiz, quando cria a norma individual, deve fundamentá-la. Esse dever, como se sabe, está expresso até mesmo na Constituição Federal (art. 93, IX). A legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas do convencimento do juiz, mas da racionalidade da sua decisão com base no caso concreto, nas provas produzidas e na convicção que formou sobre a situação de fato e de direito, explana Marinoni (apud MESSIAS, 2013).
Ao formar o seu próprio convencimento, logo em seguida o magistrado deve exercer a função criativa de maneira fundamentada, visando a persuasão das partes e da sociedade no sentido da bem feitura da decisão. Importante ressaltar que o entendimento firmado em uma decisão pode com o tempo ser superado, pois Justiça não é religião, não se baseia em dogmas. As decisões judiciais, por mais bem feitas que seja, podem ser tranquilamente superadas, como nos casos de overruling e overriding dos precedentes judiciais (MESSIAS, 2013).
A criatividade judicial, na visão de Messias (2013) possui duas dimensões: quando o juiz decide, cria a norma jurídica individualizada do caso (contida no dispositivo da decisão) como também cria a norma jurídica geral do caso (contida na fundamentação da decisão). É imprescindível que o juiz produza um discurso que atinja as duas plateias: as partes e a comunidade. Quando atingida a comunidade, pode-se considerar a decisão como um precedente judicial (ratio decidendi), tornando-se uma norma jurídica geral construída a partir do raciocínio dedutivo que pode servir como diretriz para demandas semelhantes (DIDIER JR., 2013 apud MESSIAS, 2013).
É por este motivo o grande prestígio dado atualmente à força normativa das decisões judiciais, fortalecendo o sistema do stare decisis brasileiro e imprimindo maior segurança jurídica e isonomia aos jurisdicionados.
A ideia da criatividade judicial é abraçada pelo legislador, segundo Messias (2013), pois ao observar que não tem como prever todas as situações possíveis da realidade, autoriza ao Judiciário, que de maneira cooperativa e atento aos princípios da boa-fé e da proporcionalidade, criará a norma que, de fato, regulará as relações jurídicas da sociedade. Não se pode negar a tendência do Judiciário em adotar, como método interpretativo preferido, o método tópico-problemático em detrimento do método hermenêutico-concretizador. Diante dessa afirmação percebe-se que cada vez mais o Judiciário parte do problema para a norma, e não da norma para o problema.
No mesmo sentido, Andrade (apud MESSIAS, 2013) ensina que a função jurisdicional é uma atividade genuinamente criadora, pois, a concepção da sentença ou da decisão como sinônimo de silogismo caiu em descrédito, em virtude da defesa da ideia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre, em maior ou menor medida, um aspecto novo, o qual, não estava contido na norma geral.
Todavia, Messias (2013) alerta para o fato de que a criatividade jurisdicional, apesar de imprescindível, não é ilimitada. Possui dois grandes limites: o direito positivo propriamente dito (leis, decretos, tratados, Constituição, etc.) e o próprio caso concreto. O juiz, no exercício da atividade criativa, não poderá jamais decidir além do pedido (decisões extra ou ultra petita). Portanto, ainda que fundamental o uso da criatividade jurisdicional, esta não pode fugir dos limites delimitados pelo ordenamento jurídico.
3.4 O que teríamos, o que perdemos e o que vamos ter
Durante a elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, já na exposição de motivos, percebia-se a preocupação dos idealizadores da nova lei com a tutela da segurança jurídica e com a uniformidade da jurisprudência (MACÊDO, 2015).
Na justificativa do novo código, houve severa crítica à jurisprudência disforme, seja em relação aos jurisdicionados tratados de forma diferente em situações substancialmente idênticas, seja em relação àqueles que planejaram sua situação conforme o entendimento dos tribunais e viram o seu direito mudar de posicionamento. A insegurança nas decisões judiciais, assim foi tratada no anteprojeto: “gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade” (MACÊDO, 2015).
Na primeira passagem do projeto de lei no Senado Federal, a disciplina dos precedentes judiciais continuou tímida. Não havia menção sequer ao termo “precedente judicial”. Todavia, desde a primeira versão, já constava os deveres de uniformidade e estabilidade atribuídos aos tribunais, apresentando-se como material necessário para a construção do stare decisis brasileiro, ou seja, o dever geral de os tribunais dialogarem com os seus precedentes e, sobretudo, o dever de seguirem os precedentes do STF e dos tribunais superiores, destaca Macêdo (2015).
Na Câmara dos Deputados, após o envio do projeto do Senado Federal, o texto recebeu muitas modificações, inclusive no que tange ao regime dos precedentes judiciais. Afirma Macêdo (2015) que houve um incremento substancial da qualidade do texto, ao qual foram acrescentados uma série de disposições específicas para a compreensão e aplicação adequada dos precedentes judicias obrigatórios.
Nessa fase, a versão da Câmara dos Deputados inseriu um capítulo próprio “Do precedente judicial”, logo após as regras sobre decisão judicial, no título dedicado ao “Procedimento Comum”. Informa Macêdo (2015) que essa mudança traz força simbólica importante, destacando o tema e ressaltando a novidade.
Ainda na Câmara dos Deputados, além dos deveres de uniformidade e estabilidade inseridos no projeto, incluiu-se também os importantes deveres de integridade e coerência, atribuídos aos tribunais como meio de instituir o stare decisis brasileiro. Em conjunto com o dever de edição de enunciados de súmula, já presente na versão vinda do Senado Federal, acresceu-se que os enunciados fossem editados conforme as circunstâncias fáticas dos precedentes que autorizavam sua criação, evitando-se que a súmula seja elaborada de forma excessivamente abstrata, em semelhança a um dispositivo legal (MÂCEDO, 2015).
O projeto do CPC aprovado na Câmara dos Deputados trazia um rol de precedentes obrigatórios, visando a concretização dos deveres de uniformização, estabilidade e coerência. Nesse rol, situam-se os precedentes advindos dos incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, bem como os precedentes formados pelo plenário do STF, em controle difuso de constitucionalidade, e pela Corte Especial do STJ, em matéria infraconstitucional (MACÊDO, 2015).
Em conjunto com tais normas, outras foram inclusas ainda na Câmara dos Deputados, tais como o dever de fundamentação adequada e específica na superação de precedentes, a possibilidade de modulação da eficácia temporal dos novos precedentes, o dever de fundamentação adequada na formação e aplicação dos precedentes judiciais, a publicidade qualificada dos precedentes, a ideia de ratio decidendi e de obiter dictum (parte obrigatória e não obrigatória do precedente), a expressa permissão para realização de distinções, procedimentos qualificados para a superação de precedentes (os quais previam forte participação), e a disciplina das razões suficientes para uma modificação de norma advinda de precedente judicial, assim elenca Macêdo (2015).
Entretanto, ensina Macêdo (2015), um revés ocorre para o sistema do stare decisis, pois quando a matéria retorna ao Senado Federal para votação definitiva do projeto, foi aprovada uma lei bem pior do que se esperava em matéria de precedentes judiciais. O tema restringiu-se de forma acanhada nos artigos 926 e 927 do novo CPC, juntamente com as disposições do art. 489, § 1º, incisos V e VI.
Todo o capítulo criado exclusivamente para tratar dos precedentes judiciais foi excluído, voltando a regulação do tema para as disposições gerais do título dedicado ao “Processo nos Tribunais”. As únicas duas menções ao termo “precedentes judiciais” estão no dispositivo que estabelece o requisito de a súmula respeitar as circunstâncias fáticas do precedente que lhe autorizou, e no que menciona o dever de publicidade qualificada (MACÊDO, 2015).
As grandes perdas para o sistema do stare decisis brasileiro foram: a determinação de que os tribunais sigam os precedentes do STF em matéria constitucional, o dever de observância das decisões da Corte Especial do STJ em matéria infraconstitucional, a referência dos precedentes no que toca aos incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, as regras sobre ratio decidendi e obiter dictum, e a disposição que tratava de forma geral das razões suficientes para a superação dos precedentes (MACÊDO, 2015).
Seguindo a tendência das modificações, o termo “precedente” foi substituído por “jurisprudência”, que não podem ser considerados como sinônimos. Enquanto a teoria dos precedentes trabalha a partir da importância de uma única decisão para a produção de Direito, a força normativa da jurisprudência, em sentido contrário, pressupõe a inexistência de relevância da decisão em sua unidade, sendo a autoridade somente apresentada a partir de um grupo de precedentes, ou seja, uma repetição de julgados no mesmo sentido, esclarece Macêdo (2015).
No entanto, foram mantidos no novo CPC os deveres de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência, bem como a modulação de efeitos. Macêdo (2015) ressalta a possibilidade da construção do sistema do stare decisis brasileiro, mesmo com todas as alterações sofridas no projeto, através do esforço doutrinário e jurisprudencial, mediante uma interpretação evolutiva do conceito de “jurisprudência”, compreendendo como “precedente”.
Macêdo (2015) considera o artigo 926 do novo CPC como porta de entrada para o sistema dos precedentes obrigatórios, sendo logo seguido pelo artigo 927. Transcrevem-se tais artigos para melhor análise.
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
A formação da jurisprudência no Judiciário brasileiro deve ser norteada pelo princípio da coerência, assim determina o artigo 926 do novo CPC. A coerência é elemento central para a garantia da própria integridade do direito (DWORKIN, 2013 apud SOUZA NETO, 2015, p. 71).
Embora a lista efetivamente presente no artigo 927 não preveja os precedentes do STF sobre matéria constitucional e nem os do STJ em matéria infraconstitucional, devem estes serem considerados obrigatórios por força do direito fundamental à segurança jurídica. O rol presente no artigo 927 é meramente exemplificativo, devendo os tribunais concretizá-lo em conformidade à Constituição Federal, que resguarda o princípio da segurança jurídica, da igualdade e da eficiência, todos plenamente aplicáveis à atividade jurisdicional (MACÊDO, 2015). Constata Macêdo (2015) que não se concebe que um juiz de primeiro grau possa julgar em desconformidade a um precedente do STF em recurso extraordinário sem fazer uma distinção (distinguishing).
No inciso I do artigo 927, juízes e tribunais deverão observar “as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade”. Trata-se de dispositivo que confere força obrigatória aos precedentes do STF produzidos em processo de controle concentrado de constitucionalidade. Não se trata de exigência de respeito à coisa julgada produzida nesses processos, até porque não faria sentido uma previsão como essa, afinal: todos têm que respeitar a coisa julgada, sobretudo quando erga omnes; o rol do artigo é de precedentes obrigatórios, não de hipóteses de formação da coisa julgada (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 464).
Por isso, o enunciado 168 do Fórum Permanente de Processualistas Civis esclarece que são os fundamentos determinantes (ratio decidendi) do julgamento da ação de controle concentrado de constitucionalidade que produzem o efeito vinculante de precedente para todos os órgãos jurisdicionais (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 464).
Os incisos II e IV do artigo 927 do novo CPC estabelecem que os juízes e tribunais deverão observar os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional (inclusive os de súmula vinculante) e do STJ em matéria infraconstitucional. Observar tais enunciados é observar a ratio decidendi dos precedentes que os originam (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 465).
No inciso III do artigo 927 do novo CPC, os juízes e tribunais deverão observar “os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos”. A previsão de incidente processual para a elaboração de precedentes obrigatórios (arts. 489, § 1º, 984, § 2º e 1.038, § 3º do novo CPC), com natureza de processo objetivo é uma espécie de formação concentrada desses precedentes (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 465).
Na formação desses incidentes, todos os argumentos contrários e favoráveis à tese jurídica discutida haverão de ser enfrentados. O contraditório é ampliado, com audiências públicas e a possibilidade de participação de amicus curiae (arts. 138; 927, § 2º; 983; 1.038, incisos I e II, todos do novo CPC) (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 465).
O inciso V do artigo 927 do novo CPC prescreve que juízes e tribunais devem seguir “a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”. Observam-se duas ordens de vinculação: a interna dos membros e órgãos fracionários de um tribunal aos precedentes oriundos do plenário ou órgão especial daquela mesma Corte; a externa, aos demais órgãos de instância inferior (juízos e tribunais) aos precedentes do plenário ou órgão especial do tribunal a que estiverem submetidos (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 466).
Portanto, os precedentes do plenário do STF, sobre matéria constitucional, vinculam todos os tribunais e juízes brasileiros; os do plenário e órgão especial do STJ, em matéria de direito federal infraconstitucional, vinculam o próprio STJ, bem como os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais de Justiça e juízes (federais e estaduais) a ele vinculados; o do plenário e órgão especial do TRF vinculam o próprio tribunal, bem como juízes federais a ele vinculados; e os do plenário e órgão especial do TJ vinculam o próprio tribunal, bem como juízes estaduais a ele vinculados (DIDIER JR.; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 467).
O artigo 489, em especial seu § 1º do novo CPC também demonstra sua importância para a construção do sistema do stare decisis. Cita-se a seguir.
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
O texto do artigo 489 permite maior densidade e aplicabilidade no dever constitucional de fundamentação da decisão, garantia inerente ao Estado Democrático de Direito. Baseado na participação, a fundamentação prevista no dispositivo corresponde com um contraditório centrado no efetivo dever de o Judiciário responder os argumentos das partes (MÂCEDO, 2015).
O novo CPC traz o resgate do dever de fundamentação, determinando que não é fundamentada qualquer decisão que se encaixe nos incisos V e VI do artigo em estudo, podendo se afirmar que o artigo supracitado é um dos dispositivos mais importantes do Código, uma verdadeira resposta combativa à prática de fundamentar insuficientemente ou arbitrariamente, tão corriqueira nos tribunais superiores (MÂCEDO, 2015).
No mesmo sentido Câmara (2015) ensina que o novo CPC “desenhou” o que a rigor sequer precisava ser dito, pois a fundamentação da decisão resulta diretamente da Constituição, sendo nula toda e qualquer decisão que falte fundamentação, seja de que natureza for. Destaca-se a nulidade da decisão que deixa de enfrentar todos os argumentos deduzidos pela parte capazes de, em tese, infirmar as conclusões alcançadas pelo órgão julgador, ponto que merece todo o destaque por sua transcendental importância no Estado Democrático de Direito.
Na visão de Souza Neto (2015, p. 68), o §1º do artigo em estudo contempla a motivação da decisão do magistrado, o qual deve levar em conta a jurisprudência, mas também deve expor as razões que o levaram a aderir ou não a ela. O que mais importa é a fundamentação, expressando a própria formação de seu convencimento.
O inciso IV carrega grande conteúdo, ao obrigar os tribunais superiores à observância de sua própria jurisprudência, gerando incremento de racionalidade nas deliberações. A jurisprudência não deve variar conforme a composição das cortes, mas tampouco ser engessada, podendo avançar na medida em que o diálogo com os precedentes e o enfrentamento de suas teses jurídicas imponham mudanças de entendimento (SOUZA NETO, 2015, p. 69).
O parágrafo 2º do mesmo artigo tem como função exigir do juiz a mais ampla justificação do percurso hermenêutico que o levou a decidir em determinado sentido e não de outro, dando concretude ao que exige a Constituição (art. 93, inciso IX). Deve ser este parágrafo entendido em sintonia com o mandamento constitucional que estabelece o dever de fundamentar as decisões judiciais. Deve ainda ser recebido como uma garantia a mais ao cidadão, não apenas para compreender a ratio decidendi que lhe interessa diretamente, mas sim para dispor de instrumento capaz de impugnar eventual decisão que não observe adequadamente o preceito constitucional que lhe assegura conhecer os fundamentos da decisão judicial (SOUZA NETO, 2015, p. 70).
Adverte Didier Jr., Oliveira e Braga (2015, p. 447) que não bastasse a exigência constitucional de a decisão judicial ser devidamente motivada, é preciso que o órgão jurisdicional, máxime os tribunais superiores, tenham bastante cuidado na elaboração da fundamentação dos seus julgados, com rigorosa observância do artigo 489, §§ 1º e 2º do novo CPC, pois, a prevalecer determinada ratio decidendi, será possível extrair, a partir dali, uma regra geral a ser observada em outras situações.
Com a boa aplicação dos dispositivos (art. 926, 927 e 489), o Judiciário brasileiro poderá construir a obrigatoriedade dos precedentes judiciais, trabalhando com os conceitos de ratio decidendi e de obiter dictum, aplicando as técnicas de distinções (distinguishing), da superação dos precedentes (overruling), entre outras constantes no stare decisis (MACÊDO, 2015).
Em consonância, Câmara (2015) explana que a construção de um sistema de produção de decisões judiciais, especialmente para as causas repetitivas, baseado nos precedentes aos quais se atribuí eficácia vinculante, possibilita a eliminação de uma cacofonia jurisprudencial no Judiciário brasileiro. A todo instante, jurisdicionados e a sociedade deparam-se com casos rigorosamente iguais recebendo decisões completamente diferentes, como se isto fosse normal ou correto. Complementa Câmara (2015) que casos iguais devem receber idênticas soluções (to treat like cases alike), e o novo Código se encarrega de estabelecer mecanismos destinados a assegurar que isto ocorra.
Apesar da derrocada dos precedentes judiciais no decorrer do processo legislativo – da construção de um sistema aperfeiçoado e cuidadoso implementado na Câmara dos Deputados – o novo CPC saiu para um não-sistema de precedentes, no qual os jurisdicionados estão sujeitos a conviverem em situação intolerável, com a incerteza da jurisprudência lotérica (MACÊDO, 2015). Mas ainda restam esperanças no que foi preservado, sendo possível a construção do stare decisis brasileiro, o qual pode garantir adequadamente segurança jurídica, igualdade e eficiência jurisdicional.
3.5 Enunciados da ENFAM sobre a aplicação do stare decisis no novo CPC
A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) divulgou 62 enunciados que servirão para orientar a magistratura nacional na aplicação do novo Código de Processo Civil. Os textos foram aprovados por cerca de 500 magistrados presentes durante o seminário “O Poder Judiciário e o novo CPC”, entre os dias 26 e 28 de agosto de 2015 (REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 2015).
Transcreve-se a seguir os enunciados relevantes ao sistema do stare decisis brasileiro.
[...]
7) O acórdão, cujos fundamentos não tenham sido explicitamente adotados como razões de decidir, não constitui precedente vinculante.
8) Os enunciados das súmulas devem reproduzir os fundamentos determinantes do precendente.
9) É ônus da parte, para os fins do disposto no art. 489, § 1º, V e VI, do CPC/2015, identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, sempre que invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula.
10) A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa.
11) Os precedentes a que se referem os incisos V e VI do § 1º do art. 489 do CPC/2015 são apenas os mencionados no art. 927 e no inciso IV do art. 332.
12) Não ofende a norma extraível do inciso IV do § 1º do art. 489 do CPC/2015 a decisão que deixar de apreciar questões cujo exame tenha ficado prejudicado em razão da análise anterior de questão subordinante.
13) O art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015 não obriga o juiz a enfrentar os fundamentos jurídicos invocados pela parte, quando já tenham sido enfrentados na formação dos precedentes obrigatórios.
[...]
19) A decisão que aplica a tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos não precisa enfrentar os fundamentos já analisados na decisão paradigma, sendo suficiente, para fins de atendimento das exigências constantes no art. 489, § 1º, do CPC/2015, a correlação fática entre o caso concreto e aquele apreciado no incidente de solução concentrada.
20) O pedido fundado em tese aprovada em IRDR (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas) deverá ser julgado procedente, respeitados o contraditório e a ampla defesa, salvo se for o caso de distinção ou se houver superação do entendimento pelo tribunal competente.
21) O IRDR pode ser suscitado com base em demandas repetitivas em curso nos juizados especiais.
[...]
44) Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema.
[...]
47) O art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizado especiais.
[...]
Observa-se que o enunciado 7 trata em definir a presença da ratio decidendi de forma explícita no acórdão do julgado, para que se constitua de fato como precedente vinculante. O enunciado 8 propõe observância à qualidade na criação dos enunciados das súmulas, presente no artigo 926, § 2º do novo CPC, os quais devem reproduzir os fundamentos determinantes do precedente, ou seja, devem constar a ratio decidendi do caso.
No enunciado 9 constata-se a necessidade da parte em provocar e demonstrar o distinguishing ou o overruling, conforme prevê o artigo ao qual faz referência, apontando jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula que embase sua tese, a fim de ver seu caso julgado de forma diversa.
O enunciado 10 trata da questão da fundamentação disposta no artigo 489, § 1º, inciso IV do CPC/2015. O enunciado prevê que a fundamentação sucinta é permitida, desde que se aborde todas as questões cuja resolução do caso, em tese, influencie a decisão da causa. Em seguida, o enunciado 11 delimita quais são os tipos de precedentes que podem ser invocados para a aplicação do distinguishing ou do overruling nos casos do artigo 489, § 1º, incisos V e VI do codex em estudo.
Nos enunciados 12 e 13 há a relativização da aplicação do artigo 489, § 1º, inciso IV, pois desobrigam o juiz a enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo, quando já tiverem sido analisados na formação dos precedentes obrigatórios. Ou seja, não precisará o magistrado repetir o que já está no precedente utilizado para a decisão do caso. E também não há ofensa à norma quando a decisão não analisar questões cujo exame foram prejudicadas na análise anterior da questão subordinante.
Nos julgamentos de casos repetitivos, os enunciados 19 e 20 explanam que a decisão que aplica a tese jurídica não necessita enfrentar os fundamentos já analisados no caso paradigma, bastando a similaridade dos fatos e do direito entre o caso concreto e o precedente no incidente. Somente não será julgado procedente o incidente de resolução de demandas repetitivas se demonstrados o distinguishing ou o overruling, respeitando o contraditório e a ampla defesa.
Não menos importantes, os enunciados 21, 44 e 47 tratam da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas e do artigo 489 do novo CPC no sistema dos juizados especiais. O incidente é admitido com julgamento realizado por órgão colegiado de uniformização e o artigo 489 do novo CPC não pode ser aplicado ao sistema dos juizados especiais.