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Proteção dos conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios:

uma reflexão sobre o caso da empresa Natura do Brasil e dos erveiros e erveiras do mercado Ver-o-Peso

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16/04/2016 às 13:24

Resumo:


  • A empresa Natura do Brasil lançou uma linha de produtos cosméticos baseados em conhecimentos tradicionais obtidos no mercado do Ver-o-Peso.

  • Os erveiros e erveiras do mercado do Ver-o-Peso questionaram a legalidade da obtenção desses conhecimentos pela empresa.

  • A resolução jurídica do conflito envolveu a análise da legislação nacional e internacional sobre proteção de conhecimentos tradicionais, destacando a necessidade de diálogo e participação efetiva dos detentores desses conhecimentos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa-se a apropriação indevida dos conhecimentos tradicionais dos erveiros e erveiras do mercado do Ver-o-Peso pela empresa Natura do Brasil.

Para coração partido e dolorido,

Cansado de pelejar

Perfume Atrativo do Amor e Chega-te a mim

Resolve males e desavenças

Basta confiar.

Para o amado que está distante

E para aquela que partiu,

Vai Busca Longe traz de volta

E, o Perfume Pega Mulher amarra ao pé.

Para clarear,

Verdadeiro Banho Desatrapalha.

Então, com o banho tomado e a alma lavada,

Firme o pensamento

E com fé,

Peça para o amor chegar de leve e iluminá.

Mas se quiser deixar mesmo caidinho,

Vira Pensamento e Chora nos Meus Pés é certeiro. 

Amansa quem está brabo e adoça o bem amado.

Pra tudo luzir,

Espantar o mal olhado,

E atrair o desejado

Cheiro do Pará, e Abre Caminho.

Para fortalecer a conquista,

Perfume de agarradinho 

Banho da Felicidade

e Vence Demanda.

Seguir o conselho da Erveira,

Que colheu a erva, macerou e engarrafou

Para trazer o amor a quem pedir

Escutando o freguês paciente

Com dor, saudade e ansiedade.

E passa a receita com sabedoria e felicidade.

Aí então, 

depois do banho tomado,

o perfume passado,

cobrir o corpo com roupa bonita e

Se enfeitar com laço de fita

Se for homem colocar a beca invocada

E sair com fé....

Com certeza vai dar pé.

(Natália Amorim)


1.Introdução

No mundo moderno, ciência e tecnologia aparecem como vozes inquestionáveis da verdade e a produção científico-tecnológica tem sempre a finalidade suprema de proporcionar o bem-estar para a Humanidade.

A reprodução do mito da neutralidade científica que justifica sua universalização na sociedade como único discurso de verdade tira de cena discussões de enorme importância para o fazer da ciência e o benefício das várias Humanidades existentes no planeta.

A pretensão de universalizar a ciência silencia muitos discursos e muitas verdades. Quando se pretende fazer da ciência um discurso universal, se privilegia apenas uma forma de conhecer o mundo. O que distingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates anteriores é o facto de a ciência moderna ter assumido a sua inserção no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento anterior ou contemporânea: propôs-se não apenas a compreender o mundo ou explica-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo. (SANTOS, 2006. p. 138)     

Um dos resultados disto é que durante muito tempo os discursos científicos reforçaram a dominação e exploração do capitalismo sobre as formas de organização sócio-cultural, político-econômica, ideológica, etc de sociedades nas quais as características tanto do capitalismo quanto da racionalidade científica não eram hegemônicas, marginalizando seus conhecimentos e práticas sociais.

É de grande importância destacar que esta situação de dominação e marginalização não se dá sem conflitos e resistências, re-elaborações e ressignificações das práticas que tentam se impor.

Portanto, dar voz aos seus atores é compreender a complexidade das relações sociais entre os diferentes grupos na sociedade para além da dicotomia dominante/dominados.

Atualmente, no Século Biotecnológico, como chamou Rifkin (1999) o século XXI, novas complexidades surgem e somos conclamados a refletir sobre questões, tais como: a quem pertencem os conhecimentos ditos “populares”? Estes conhecimentos são passíveis de proteção por meio da atual legislação de propriedade intelectual?

Este artigo é uma tentativa de discutir estas questões, analisando o papel do direito e da antropologia

Para ilustrar concretamente a situação, utilizarei o caso da apropriação indevida dos conhecimentos tradicionais dos erveiros e erveiras do mercado do Ver-o-Peso pela empresa Natura do Brasil.


2. Apresentação do cenário, seus atores e conflitos

Figura 1  Imagem das bancas de ervas. Disponível em myownword.blogspot.com/2007/07/ver-o-peso.html. Acesso Julho/2008

No mês de março de 2005 participei como professora colaboradora do projeto de extensão intitulado: “Incentivo à Proteção dos Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade: uma proposta de educação ambiental”. Este projeto tinha por objetivo sensibilizar as comunidades locais sobre seus direitos acerca de seus conhecimentos associados à biodiversidade mediante a apresentação e discussão de uma cartilha elaborada pela equipe do projeto. Um dos locais escolhidos para o desenvolvimento do projeto foi o mercado do Ver-o-Peso por ser um local de grande difusão destes conhecimentos principalmente através dos erveiros e erveiras.

Ao nos reunirmos com os erveiros e erveiras e discutirmos o conteúdo da cartilha fomos consultados sobre a legalidade do procedimento de uma empresa de cosméticos (Natura do Brasil) que recentemente lançara no mercado brasileiro uma linha de produtos cosméticos, denominada Ekos à base das ervas conhecidas como breu branco, cumaru e priprioca tendo sido os conhecimentos sobre sua extração obtidos no mercado do Ver-o-Peso.

Figura 2 Perfume e sabonete líquido à base de cumaru e breu branco da linha Ekos. Imagem disponível em: http://scn.natura.net/asp/popup/natal2007/2006217/img/prod_breubranco.jpg. Acesso: Julho/2008

A professora-coordenadora do projeto sugeriu que o grupo de erveiros e erveiras pedisse esclarecimentos à Comissão de Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil Secção Pará (OAB/PA).

No dia 18 de abril de 2005 três erveiras do mercado do Ver-o-Peso compareceram a reunião da Comissão de Biodireito da OAB/PA e relataram que a empresa em questão realizou pesquisas no mercado procurando identificar produtos que tivessem potencial de comercialização .1

As três erveiras trouxeram para a reunião um contrato firmado com a empresa que dispunha apenas sobre a cessão do direito de voz e imagem das mesmas e uma fita de vídeo na qual a empresa falava do seu interesse em pesquisar novos produtos no mercado do Ver-o-Peso.

A Comissão de Biodireito da OAB/PA se comprometeu a analisar os contratos trazidos pelas erveiras e a solicitar informações ao Ministério do Meio Ambiente.

Ainda no mês de abril de 2005 a Comissão de Biodireito emitiu relatório concluindo pela necessidade de obtenção de maiores informações junto aos órgãos responsáveis pela emissão de autorização de acesso aos conhecimentos tradicionais associados e ao patrimônio genético para que pudesse ser averiguado se houve ou não violação à legislação brasileira2 , bem como solicitar esclarecimentos à empresa sobre o processo de obtenção do conhecimento, abrindo assim um Expediente Administrativo .3

Em junho de 2005 o Ministério do Meio Ambiente informou que a empresa não tinha autorização de acesso aos conhecimentos tradicionais associados para desenvolver produtos passíveis de comercialização.

 De posse destas informações, a Comissão de Biodireito da OAB/PA oficiou à empresa solicitando esclarecimentos sobre as condições nas quais teria se dado o acesso aos conhecimentos tradicionais dos erveiros e erveiras dos Ver-o-Peso. A empresa respondeu que por se tratar de conhecimento tradicional difuso não haveria regulamentação na legislação brasileira sobre a matéria em questão e, portanto, não seria necessária a autorização prévia e nem a posterior repartição de benefícios.

A Comissão julgou insuficientes as informações fornecidas pela empresa e pediu novamente esclarecimentos ao que a empresa novamente respondeu que não poderia atender legalmente ao pedido da Comissão por se tratar de conhecimento tradicional difuso, não previsto na legislação.

Em abril de 2006 foi apreciado pela Comissão um parecer que deliberava: pela existência de acesso aos conhecimentos tradicionais associados dos erveiros e erveiras do Ver-o-Peso, pela inexistência de autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético para a realização de tal atividade e pela inexistência de anuência prévia e repartição de benefícios previstas na legislação brasileira.

Após várias reuniões, a empresa e os erveiros e erveiras do mercado do Ver-o-Peso chegaram a um acordo para firmar um contrato de repartição de benefícios no dia 17 de outubro de 2006 

2.1. O conflito atual.

O que parecia ser o desfecho do conflito entre os atores transformou-se em um novo conflito que versa sobre a interpretação das disposições contratuais.4

De acordo com X:

É porque nosso contrato foi assim, logo no começo a gente, é usou os conhecimento de terceiros de várias pessoa daqui, danificou a nossa venda aí a gente fez uma proposta com eles que seria a divisão de benefícios, também seria alguma parte pra nossos associados, pra que os associados ficassem é contentes porque usou o conhecimento dos associados, aí teria de dar alguma coisa pros associados, logo no momento a gente queria xxx cada um, aí foi uma história, cento é poucas pessoa pra ganhar xxx cada uma é muito dinheiro né? E o doutor T foi, foi, foi, jogamos yyy, jogando, jogando, ficou zzz pra cada, desses zzz, podia porque é era direito de imagem, vvv pra cada, porque vinham fazer uma grande festa aqui no setor de ervas, aqui na nossa comunidade e aí usava as imagens pra fazer filme, né, casamento da Natura com as erveras e seria vvv, é vvv pra cada, e foi assim que surgiu a divisão dos zzz pra cada, e no momento a gente não sabia como era porque assim, o doutor T foi contratado pra ficar até este momento, acabou o prazo dele ele foi embora e nós ficamos a ver navios sem saber como fazer a divisão do dinheiro (...) (grifo meu)

Para esclarecer melhor o problema atual das interpretações divergentes do contrato, farei uma breve alusão aos marcos legais que regulamentam a questão atualmente.

No plano internacional, a Convenção sobre a Diversidade Biológica, assinada na conferência da Organização das Nações Unidas que ficou conhecida como Eco-92 é o instrumento normativo que regulamenta o acesso e uso dos conhecimentos tradicionais. Em seu artigo 8j, dispõe, in verbis:  Cada parte contratante deve:

8(j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas;

A diretriz da CDB em relação ao acesso e uso dos conhecimentos tradicionais é preservar e incentivar a aplicação dos conhecimentos tradicionais em inovações, incentivando a repartição dos benefícios gerados por estas inovações.

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A legislação brasileira que regulamenta o tema é a Medida Provisória (MP) 2186-16/2001, que dispõe sobre o acesso e uso dos conhecimentos tradicionais:

Art. 9o  À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:

I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações;

II - impedir terceiros não autorizados de:

a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento tradicional associado;

b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado;

III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.

Parágrafo único.  Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.(grifos meus)

Seguindo as diretrizes da CDB, a MP prevê também proteção aos conhecimentos tradicionais, mas a confusão de interpretação que está ocorrendo neste momento entre os erveiros e erveiras do mercado do Ver-o-Peso é quanto ao que a legislação define quanto à titularidade do conhecimento tradicional, ou seja, uma vez assinado o contrato, quem recebe os benefícios?

A legislação prevê que a titularidade é coletiva, ou seja, o conhecimento pertence ao grupo, mas os erveiros e erveiras discordam, acham que pelo menos uma parte dos benefícios deveria ser distribuída individualmente. 5

Ainda que pela Resolução nº 6, de 23 de junho de 2003 do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que é quem detém a autoridade nacional que possui função normativa e deliberativa sobre o tema haja a seguinte previsão:

Art. 2º O processo de obtenção de anuência prévia a que se refere o art. 1º desta Resolução pautar-se-á pelas seguintes diretrizes, sem prejuízo de outras exigências previstas na legislação vigente:

I – esclarecimento à comunidade anuente, em linguagem a ela acessível, sobre o objetivo da pesquisa, a metodologia, a duração e o orçamento do projeto, o uso que se pretende dar ao conhecimento tradicional a ser acessado, a área geográfica abrangida pelo projeto e as comunidades envolvidas;

II – fornecimento das informações no idioma nativo, sempre que solicitado pela comunidade;

III – respeito às formas de organização social e de representação política tradicional das comunidades envolvidas, durante o processo de consulta;

IV – esclarecimento à comunidade sobre os impactos sociais, culturais e ambientais decorrentes do projeto;

V – esclarecimento à comunidade sobre os direitos e as responsabilidades de cada uma das partes na execução do projeto e em seus resultados;

VI – estabelecimento, em conjunto com a comunidade, das modalidades e formas de repartição de benefícios;

VII – garantia de respeito ao direito da comunidade de recusar o acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, durante o processo de obtenção da anuência prévia;

VIII – provisão de apoio científico, lingüístico, técnico e/ou jurídico independente à comunidade, durante todo o processo de consulta, sempre que solicitado pela comunidade. (grifo meu)

A empresa Natura do Brasil, apesar de não ter solicitado anuência prévia, foi obrigada a cumprir posteriormente os dispositivos da resolução mencionada acima, ainda que em um prazo questionável, ou seja expôs os objetivos da pesquisa, negociou a forma de repartição de benefícios e providenciou assessoria jurídica aos erveiros e erveiras, mas os mesmos afirmam não terem compreendido durante as negociações que os benefícios seriam repartidos para a coletividade, ou seja, para a Associação Ver-as-Ervas.

Neste ponto considero importante recorrer a Geertz (2007 p.249) quando afirma que tanto o direito quanto a antropologia :“ funcionam à luz do saber local”. E propõe uma relação entre ambas  disciplinas que vá além da simples união de uma à outra:

Por sua vez, creio que para essa consciência se desenvolva é necessário que se adote uma abordagem mais desagregante que a atual; não uma mera tentativa de unir o direito, simpliciter, à antropologia, sans phrase, mas sim uma busca de temas específicos de análise que, mesmo que apresentando-se em formatos diferentes, e sendo tratados de maneiras distintas, encontram-se no caminho das duas disciplinas. Parece-me também que isso exige um método menos internalista, que não seja algo como “nós lhe atacamos, vocês nos atacam, e que os ganhos fiquem onde caírem”; não um esforço para impregnar costumes sociais com significados jurídicos, nem para corrigir raciocínios jurídicos através de descobertas antropológicas, e sim um ir e vir hermenêutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direção, depois na outra, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais que são importantes para ambos. (GEERTZ, 2007 p. 253)

O caso em questão me parece emblemático para esta proposta do autor, “do ir e vir hermenêutico entre os dois campos”, pois como é possível perceber, a legislação que visa proteger os conhecimentos tradicionais, tanto no plano internacional como no Brasil, desconhece as realidades sócio-econômicas, culturais, políticas, etc  dos povos que diz proteger.

Conforme foi citado acima, as diretrizes das legislações se pautam pela lógica do sistema econômico hegemônico simplificando demasiadamente os conflitos a fim de encaixá-los no arcabouço jurídico dominante e, conforme afirmei em trabalhos anteriores, protegem antes aqueles que investem capital para transformar estes conhecimentos em produtos a serem postos no mercado. (SOARES, 2006)  

A regularização jurídica do acesso da empresa Natura aos conhecimentos tradicionais dos erveiros e erveiras do Ver-o-Peso claramente não “resolveu” o conflito entre as partes, apenas tornou legal um ato ilícito da empresa para permitir a continuação da comercialização dos produtos.

Novamente recorro a Geertz (2007 p. 259) que propõe uma questão importante em relação a este exagero da simplificação jurídica em situações complexas como a que está sendo analisada:

Ao invés de imaginar que o sistema jurídico, nosso ou alheio, está dividido entre a preocupação com o que é correto e a preocupação com o que simplesmente é (para fazer uso da formulação pungente de Liewellyn, quando mais não for, pela influência que exerceu sobre antropólogos); e que a “técnica jurista”, nossa ou alheia, é uma questão de concilia as decisões éticas que respondem ao que é correto, com as determinações empíricas que respondem ao que simplesmente é, pareceria bem melhor – ou até mais “realista” – se me permite o termo- imaginar que esses sistemas descrevem o mundo e o que nele acontece em termos explicitamente judiciosos, e que essa “técnica” nada mais é que um esforço organizado para que a descrição esteja correta. A representação jurídica do fato é normativa por princípio; e o problema que isso gera para todos aqueles, sejam eles advogados ou antropólogos, cujo objetivo seja examinar os fatos com tranqüilidade reflexiva, não é o de correlacionar os dois hemisférios do ser, duas faculdades mentais, duas espécies de justiça, ou até dois tipos de procedimentos. O problema fundamental é descobrir como representar aquela representação. (grifo meu)

    O próprio autor reconhece que resolver este problema é uma questão difícil, mas afirma que ao invés de se tentar o convencional (como descrito no caso analisado) enquadrar uma norma ao caso concreto é considerar a possibilidade de um ir e vir entre a linguagem das normas e o idioma dos casos concretos.

Geertz (2007 p.260) admite que esta ainda é uma forma ocidental de ver o processo, mas afirma que:

Ainda assim, pelo menos tem a vantagem de focalizar sua atenção no lugar certo: a maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado. 

Neste sentido afirma o autor que o problema entre leis e fatos se inverte, pois ao invés de tentar descobrir como aplicar a lei ao caso concreto, o desafio é saber diferenciar um do outro.:

Neste caso, a perspectiva ocidental segundo a qual existem determinadas regras que separam o certo do errado, um fenômeno a que se dá o nome de julgamento, e também métodos para diferenciar o real do irreal, um fenômeno a que se dá o nome de provas, parece ser apenas uma entre as várias maneiras de executar a tarefa. (GEERTZ, 2007p.261)

Geertz (2007 p.329) chama a atenção para a importância desta atitude, pois afirma que cada vez mais presenciaremos uma expansão do universo jurídico que exigirá cada vez mais decisões diversas e complexas. E afirma:

Em conjunto, essas duas proposições, que o direito é saber local e não um princípio abstrato e que ele constrói a vida social em vez de refleti-la, ou melhor dito, de meramente refleti-la, leva-nos a uma visão pouco ortodoxa sobre a metodologia de um estudo comparativo: a tradução cultural.

Neste ponto recorro a Santos (2006) que afirma que, a tradução: “(...) é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências de mundo, tanto as disponíveis como as possíveis” (SANTOS, 2006 p. 123). 

O trabalho de tradução proposto por Santos (2006) é útil ao estudo deste caso, pois procura identificar preocupações semelhantes entre culturas diferentes no sentido de identificar quais as respostas que cada uma dá aos questionamentos por que passam.

Neste caso, os erveiros e erveiras demonstram preocupação acerca da interpretação das negociações e das disposições contratuais bem como da proteção dos seus conhecimentos.

O trabalho de tradução visa esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas de modo a determinar as possibilidades e os limites da agregação entre eles. (SANTOS, 2006 p. 127)

A partir da conceituação inicial acerca do trabalho de tradução o próprio autor lança as seguintes perguntas: “o que traduzir, Entre quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objectivos?” (SANTOS, 2006 p.129).

O autor responde a estes questionamentos através do conceito de zonas de contato:

Zonas de contacto são campos sociais onde diferentes mundos-da-vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam, interagem. As zonas de contacto constitutivas da modernidade ocidental são a zona epistemológica, onde se confrontaram a ciência moderna e os saberes leigos, tradicionais, dos camponeses, e a zona colonial, onde se defrontaram o colonizador e o colonizado. São duas zonas caracterizadas pela extrema disparidade entre as realidades em contato e pela extrema desigualdade das relações de poder entre elas (SANTOS, 2006 p. 130)

O trabalho de tradução pretende compreender a relação de conflito  entre a empresa e os erveiros e erveiras,  através da análise das posições políticas dos atores envolvidos nas convergências das zonas de contato epistemológica e colonial, identificando as diferentes concepções acerca do conhecimento e da importância de sua proteção e suas contribuições para a construção de formas alternativas de reconhecimento e proteção destes conhecimentos, mediante uma reflexão cuidadosa das relações entre os grupos nas zonas epistemológica e colonial.  

Neste ponto acho importante destacar que ao analisar as zonas de contato epistemológica e colonial dos atores não estou perdendo de vista que a tensão entre o tradicional e o moderno é extremamente complexa nem reproduzindo a dicotomia social dominantes/dominados.

 Estou ciente de que o contato entre culturas diferentes não segue a regra imposição/assimilação. A partir das tentativas de imposição cultural ocorrem recriações, re-elaborações e ressignificação da cultura nativa que pode se apropriar ou não de aspectos culturais dominantes.

Importante nesta reflexão é a posição de Sahlins (1988 p 3 e 4):

O problema é como evitar a redução do encontro intercultural a uma física, de um lado, e a uma teleologia, de outro. Precisamos escapar da percepção corriqueira da economia global simples e mecanicamente como forças materiais, bem como de seu corolário, as descrições de histórias locais como invariáveis crônicas de corrupção cultural.

Nesta perspectiva, a análise destes conflitos pretende ir além da concepção do impacto econômico da cultura hegemônica X reação da cultura dos nativos e apreender as formas de mediação presentes nas zonas de contato entre estas culturas. Novamente Sahlins (1980 p.5):

Em primeiro lugar, pelo fato de que a presente ordem global foi decisivamente moldada pelos chamados povos periféricos, pelos diversos modos como articularam culturalmente o que lhes estava acontecendo. Em segundo lugar, porque a diversidade, apesar das terríveis perdas que vem sofrendo, não está morta, mas persiste na esteira da dominação ocidental.

Trazendo esta reflexão para o contexto do caso em questão, é preciso compreender as diferentes representações e práticas sociais que compõem o cenário da apropriação dos conhecimentos tradicionais e da violação dos direitos das comunidades detentoras destes direitos no sentido de identificar os conflitos existentes e destacar a necessidade de discussão e participação efetiva dos detentores dos conhecimentos tradicionais na elaboração e implementação de medidas de proteção para os seus conhecimentos, pois que suas experiências devem ser valorizadas, suas temporalidades respeitadas para que seja possível construir um cenário no qual haja real proteção dos direitos destes povos.

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Sobre a autora
Gysele Amanajás Soares

Doutorado em Ciências Sociais, ênfase em Antropologia (incompleto) Universidad Federal do Pará (UFPA); Mestre em Direito das Relações Sociais Universidade da Amazônia (UNAMA); Especialista em Gestão Escolar UNAMA; Especialista em Teoria Antropológica UFPA; Bacharel e Licenciada Plena em História UFPA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Gysele Amanajás. Proteção dos conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios:: uma reflexão sobre o caso da empresa Natura do Brasil e dos erveiros e erveiras do mercado Ver-o-Peso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4672, 16 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48027. Acesso em: 22 dez. 2024.

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