2. A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO E SEU PAPEL NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA
A Advocacia Pública possui espaço de realce no cenário constitucional, havendo dois artigos que tratam especificamente da matéria, arts. 131 e 132. Pela própria topologia daquelas disposições, não se pode furtar de anotar que a Advocacia Pública é instrumento essencial à funcionalidade da Justiça e até mesmo ao sistema democrático, porquanto:
A advocacia pública não se constitui em função calcada na ratificação cega dos desejos provisórios de quem temporariamente detém o poder político, mas está vinculada ao cumprimento das diretrizes constitucionais, implicando a afirmativa de que a omissão, quando há deliberada negativa de direitos aos cidadãos pelo Estado, é ato grave, pois a advocacia tem como elemento essencial a luta perene pelas estruturas democráticas.[32]
No âmbito da União, a Constituição Federal (art. 131, caput) consignou que a Advocacia-Geral da União (AGU) é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial ou extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Organizacionalmente, a AGU compreende, entre órgãos superiores (art. 2º, I, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993), a Procuradoria-Geral da União, a Consultoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional[33].
A Procuradoria-Geral da União tem como mister representar judicialmente a União (art. 9º da Lei Complementar nº 73, de 1993). Por sua vez, a Consultoria-Geral da União tem a incumbência de, principalmente, colaborar com o Advogado-Geral em seu assessoramento jurídico ao Presidente da República produzindo pareceres, informações e demais trabalhos jurídicos que lhes sejam atribuídos pelo chefe da instituição.[34]
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com a sua dupla subordinação, administrativa ao Ministério da Fazenda, e técnica e jurídica em relação ao Advogado-Geral da União, representa a União nas causas de natureza fiscal (art. 12, V, da Lei Complementar nº 73, de 1993), bem como é a responsável pela consultoria e assessoramento jurídicos do Ministério da Fazenda.
Tematicamente, a AGU, em toda a sua estrutura, promove três grandes atividades[35]:
(i) a representação judicial da União, abarcando os três Poderes, conhecida tecnicamente como contencioso;
(ii) a representação extrajudicial da União, com foco também nos três Poderes, a qual pode ser exemplificada com a situação de assinatura de um contrato ou pela atuação de procuradores da Fazenda Nacional em assembleias ordinárias das empresas estatais (art. 1º, V, do Decreto-Lei nº 147, de 3 de fevereiro de 1967); e
(iii) a consultoria e o assessoramento jurídicos do Poder Executivo Federal.
Mercê da pertinência ao presente trabalho, de bom alvitre tecer linhas sobre essa terceira temática de atuação da AGU.
A Advocacia pública consultiva “é, em regra, a função preventiva de controle da juridicidade da ação estatal”[36], com ampla esfera de atuação. Promove avaliação jurídica, por exemplo, de processos de contratação pública, de proposituras de atos normativos, bem como de dúvidas suscitadas pelos gestores administrativos. Por sua vez, na atividade do assessoramento jurídico, “o Procurador atua como auxiliar jurídico do administrador público para tomada de decisões políticas que tenham algum reflexo jurídico”[37]. Nesse tipo de atuação, de auxílio, não se pode transferir ao advogado público o poder decisório, o qual fica, evidentemente, na alçada do agente público ao qual incumbe o comando.
Concernente a tal temática, a AGU promove o trabalho de consultoria e assessoramento jurídicos por intermédio do próprio Advogado-Geral da União, com extensa atribuição (art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 1993). Como eixo central do sistema, renova-se menção à Consultoria-Geral da União, a qual colabora com o Advogado-Geral da União em seu assessoramento jurídico ao Presidente da República (art. 10 da Lei Complementar nº 73, de 1993), bem como é responsável por orientar e coordenar a atuação das Consultorias Jurídicas dos Ministérios ou órgãos equivalentes e das unidades consultivas locais (art. 3º, VIII, Ato Regimental AGU nº 5, de 2007).
Outrossim, existe, em cada ministério, consultoria jurídica, responsável por prestar a atividade setorialmente (art. 11, caput, da Lei Complementar nº 73, de 1993), relembrando-se mais uma vez que, no âmbito do Ministério da Fazenda, tal mister é do encargo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (art. 13, caput, da Lei Complementar nº 73, de 1993).
A atuação consultiva é importante meio de expurgar ilícitos na seara administrativa, porquanto “se trata, por excelência, da aferição da legalidade e constitucionalidade dos atos administrativos”[38], mas também ostenta o mister de trazer segurança jurídica às políticas públicas engendradas, promovendo, assim, uma prevenção de futuros litígios.
Um advogado público pode trazer, por exemplo, sugestões de modificação de uma determinada propositura normativa, com o fito de expurgar ulterior alegação de inconstitucionalidade. Tal atuar preventivo ocasiona evidente eliminação de futuras discussões perante os Tribunais, tutelando, assim, a segurança jurídica.
Em face, portanto, desse relevante papel, há toda uma construção institucional com o fito de que a AGU participe da formatação dos atos normativos de interesse da Administração Pública Federal, mormente daqueles que se referem a políticas públicas.
Inicialmente, consigne-se que a AGU pode atuar em trabalhos preliminares de estruturação normativa, mediante, por exemplo, respostas a dúvidas suscitadas por autoridades ministeriais ou elaboração de uma primeira versão de projeto de norma (arts. 4º, VII; 11, IV, todos da Lei Complementar nº 73, de 1993). Por outro lado, mercê do fato de que as consultorias jurídicas são administrativamente subordinadas aos Ministros de Estado (art. 11, caput, da Lei Complementar nº 73, de 1993), existe tradicionalmente, nos Decretos que aprovam a estrutura regimental de cada ministério, a atribuição de que membros das aludidas unidades jurídicas possam atuar, em conjunto com as áreas técnicas correspondentes ao mérito temático da norma, na elaboração de proposituras normativas.[39]
Ademais, pela própria expertise necessária à configuração estrutural de uma proposta de ato normativo, a qual penitencia respeito a uma articulação formal própria (vide art. 5º e seguintes do Decreto nº 4.176, de 2002), soa natural a participação de membros da AGU em grupos de trabalho voltados à elaboração de normas.[40]
Não há dúvidas, pois, pela avaliação global desse arcabouço jurídico, e pela consequência natural do seu papel de consultoria e assessoramento jurídicos, que a AGU tem atribuição de participar na elaboração de proposituras normativas. É de se registrar, neste ponto, a pertinente observação de Ricardo FERNANDES[41], no sentido de que a delineação da política pública não se encontra dentre as atribuições do advogado público. Sem embargo, a participação do advogado público nessa fase se reputa imprescindível, com o fito de, entre outras condutas, evitar a existência de disposições inconstitucionais ou privilegiar a redação clara e técnica de comandos normativos, que acentuem a verdadeira intenção da política pública formatada e eliminem ulteriores dúvidas de incidência da norma.
Continuado, logo após a conclusão de um projeto de ato normativo (Decreto ou Lei) dentro de uma esfera ministerial, o art. 37, III, do Decreto nº 4.176, de 2002, prevê que a propositura só deva ser enviada à Casa Civil da Presidência da República, cujo mister é de supervisionar, no âmbito do Poder Executivo Federal, a elaboração de atos normativos (art. 34, III, do Decreto nº 4.176, de 2002), caso haja a concordância da consultoria jurídica pela constitucionalidade, legalidade e regularidade formal do ato normativo proposto (art. 37, III, do Decreto nº 4.176, de 2002). Nesse instante, a consultoria jurídica examina a juridicidade da propositura normativa, gozando, dessarte, de atribuição de impedir o deslinde do processo normativo administrativo[42], caso a propositura esteja dissonante com o Ordenamento Jurídico Pátrio.
Por sua vez, a AGU possui atuação de realce também no deslinde do processo legislativo, uma vez que há previsão normativa (art. 11, II, do Ato Regimental AGU nº 5, de 2007) de que unidade de Consultoria-Geral da União preste esclarecimentos e demais subsídios jurídicos aos membros do Congresso Nacional, no tocante a proposituras normativas discutidas no Parlamento. Ademais, também é natural a oitiva das consultorias jurídicas, com espeque no art. 11, I e IV, da Lei Complementar nº 73, de 1993, sobre propostas de emendas parlamentares a projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional. Nesse momento, a autoridade ministerial busca, da sua assessoria jurídica, a avaliação de constitucionalidade e adequação do projeto de lei, de sorte que, muitas vezes, o órgão de execução consultivo apresenta sugestões redacionais mais adequadas ao desiderato de política pública subjacente à minuta normativa, as quais acabam sendo acolhidas pelo órgão legislativo.
As unidades da AGU também se manifestam no processo de apreciação do projeto de lei pelo Poder Executivo Federal, na fase de sanção presidencial, por força do disposto no art. 52, e seus parágrafos, do Decreto nº 4.176, de 2002. Nesse instante, com a apresentação do autógrafo pelo Congresso Nacional, inexiste espaço para modificação do teor redacional dos comandos normativos, de sorte que a atuação, nessa etapa, da AGU, é a de sugestão de veto por inconstitucionalidade.
Impende anotar, ainda, que a AGU atua no processo de consolidação normativa. Com efeito, há a obrigatoriedade (art. 42, § 2º, do Decreto 4.176, de 2002) de que membro da AGU participe do Grupo Executivo de Consolidação de Atos Normativos, com a atribuição de coordenar e implementar os trabalhos de consolidação dos atos normativos no âmbito do Poder Executivo. Cada ministério, por sua vez, deve ter comissão similar, cujo coordenador deve estar em exercício na respectiva consultoria jurídica (art. 43, § 2º, do Decreto 4.176, de 2002). Registre-se, outrossim, que as controvérsias existentes sobre a constitucionalidade ou revogação tácita de dispositivos legais objeto de consolidação serão submetidas à Advocacia-Geral da União (art. 49 do referido Decreto).
Sumarizando toda essa avaliação de atribuições, delineada nas páginas anteriores, é indubitável a importância da Advocacia Pública Federal no processo de construção normativa brasileira, podendo-se apontar, desse modo, que a AGU é um dos corpos institucionais mais atuantes no processo normativo, inclusive legislativo, no Brasil. Sua relevância, pois, no engendramento de políticas públicas acaba sendo natural, uma vez que a lei é tradicionalmente o instrumento utilizado para formatar uma determinada política pública.
A atuação acaba sendo mais destacada, pelo fato de que geralmente os projetos (ou anteprojetos, conforme o caso) de atos normativos relacionados com políticas públicas no Brasil são fatalmente construídos no âmbito do Poder Executivo Federal. Isso se deve por vários fatores, tais como:
(i) há toda uma proteção constitucional para iniciativa legislativa pelo Poder Executivo, que acaba vedando a atribuição, por impulso parlamentar, de encargos para órgãos da Administração Pública, de sorte que, normativamente, a competência legal de um determinado órgão para atuar em um processo de política pública deve advir de uma iniciativa legislativa do Presidente da República, por exemplo;
(ii) em face da “inerente complexidade das políticas públicas (...), cada vez mais leis aprovadas no Congresso englobam razoável delegação de funções e recursos para a alta gerência do Executivo”[43];
(iii) o reiterado uso de Medidas Provisórias, cujo emprego se embasa na alegação de que “há janelas de oportunidades que muito rapidamente podem se fechar, demandando, pois, pronta tomada de decisão e feitura de leis”[44], traz uma evidente proeminência do Poder Executivo na construção de normas concernentes a políticas públicas em desfavor do Congresso Nacional.
Tal cenário institucional acaba fazendo com que a AGU atue, nesse desiderato, como um “controlador amigável”, aplicando aqui a lógica exposta por Carlos BLANCO DE MORAIS[45], uma vez que, nesse trabalho de auxílio à produção normativa, fatalmente subsidia o legislador a “abortar decisões desnecessárias, prevenir riscos dispensivos, corrigir defeitos menos perceptíveis, amortecer reações negativas junto dos destinatários e diminuir despesas e onerações futuras no plano jurisdicional”.
Nesse diapasão, o papel do advogado público federal, como membro da AGU, é de realce na formatação políticas públicas. Em face desse amplo delineamento institucional, não soa razoável que a atuação do membro da AGU ostente um caráter eminentemente formal. Como delineia Patrícia GAZOLA, é importante a participação de um advogado público na elaboração de políticas públicas, porquanto
este, ciente dos interesses públicos que estão carecendo de tutela, possa orientar o agente público sobre os procedimentos adequados ao cumprimento dos requisitos legais, seja recomendando uma formatação jurídica diversa no documento, seja propondo a elaboração de um projeto de lei e regulamentação necessária para que se assegure o respeito aos princípios constitucionais ou ainda suscitando a necessidade de implantação em conjunto com ações de outras Secretarias ou Ministérios.[46]
Dessa forma, as próximas linhas trarão condutas, longe de ser exaustivas, que o advogado público pode atuar na construção da política pública, fase em que a atuação do membro da AGU, especificamente daquele atuante na área de consultoria e assessoramento jurídicos, é mais exigida.