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Políticas públicas, legística e a AGU:

o papel do advogado público federal na efetividade normativa

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28/06/2016 às 15:03
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3. O ADVOGADO PÚBLICO FEDERAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Será promovido, neste âmbito, um exame de condutas que o advogado público federal, especificamente os que atuam no cenário do consultivo e assessoramento jurídicos, pode realizar na fase da construção de políticas públicas. Aqui se entenderá, para tal empreendimento, a etapa de formulação das políticas públicas, conforme detalhamento do ciclo já exposto anteriormente. Sem embargo, soa importante, em sede preambular, trazer breves considerações sobre os limites de atuação do membro da AGU no que concerne ao mérito da política pública.

3.1. Limites de atuação do membro da AGU

O advogado público tem compromisso permanente com a democracia[47], de sorte que o aludido agente público não pode ser usado para fomento do autoritarismo. Os ditames constitucionais incidem sobre o seu labor cotidiano, de sorte que é inadmissível que o advogado público tenha o mister de ratificar atitudes imorais/ilegais ou aja em descompasso com valores caros ao nosso contexto democrático, tais como o da impessoalidade, por exemplo.

Por sua vez, entre um dos primados basilares da democracia, está o da representatividade democrática, periodicamente corroborada pelas eleições. Assim, em cada “festa da democracia”, feixes representativos de diferentes visões ideológicas são alocados nos ambientes gerenciais mais altos da República, no afã de tonar realidade o anseio verificado pelo resultado das urnas eleitorais.

Uma política pública formatada deve ser coerente, a princípio, com o norte derivado dessa etapa política. O seu mérito é fatalmente vinculado com o contexto da politics, derivado, pois, de amplo espaço de discricionariedade dos altos gestores da República, a fim de retratar os arranjos políticos que tornaram viável institucionalmente a sua implantação.

Nada obstante, como bem diz Ricardo FERNANDES[48], a atividade do advogado público é jurídica, não política. Dessa forma, “a escolha das políticas públicas não se encontra em sua competência constitucionalmente delineada”. Assim, o mérito da política pública, aquilo que Clarice DUARTE[49] denominou de “programa”, não pode ser avaliado pelo advogado público, quando atua no processo de construção da norma jurídica que a implementa.

Contudo, o advogado público, em face da sua constante atuação no processo normativo administrativo, pode modificar o teor da proposta de ato regulador da política pública, com o fito de evitar dúvidas de interpretação e/ou eliminar falta de juridicidade, além de lhe caber sugerir procedimentos adequados para indução da efetividade normativa.

A conduta assertiva do advogado público, nessa etapa, é medida deveras importante. Nesse cenário, a conduta do jurista deve ser engajada no sentido de auxiliar o formatador de política pública em construir a melhor engenharia jurídica em face das dificuldades da vida real, a fim de eliminar a tradicional premissa em exames jurídicos, levantada por Diogo COUTINHO, de que “o binômio pode/não pode prevalece sobre a discussão sobre como se pode alcançar objetivos de política pública”[50].

Reitera-se: o advogado público é submetido aos ditames constitucionais, não podendo promover manifestação dissonante com o Ordenamento Jurídico, nem pode ser instrumento de ratificação de ilícitos cometidos em sede administrativa. Na verdade, o que se espera, com efeito, é uma atuação assertiva, no sentido de “viabilizar, na medida do juridicamente possível, as políticas públicas, apontando alternativas quando cabíveis”[51].

Diante do exposto, serão evidenciadas condutas realizadas pelos advogados públicos federais que são importantes no processo de aperfeiçoamento da normatização relacionada com política pública, enquadrando-as em cada etapa do seu ciclo.

3.2. Papel na construção da política pública

A fase de confecção da política pública é etapa em que a atuação do advogado pública se mostra imprescindível. A delimitação de um regime jurídico para normatizar específica área de atuação econômica e/ou social é trabalho árduo que pressupõe expertise temática e elevada atenção metodológica.

Não por acaso, como registra SILVA FILHO[52], imprescindível se torna uma relação estreita entre o advogado público, a área técnica e os formuladores de política pública, objetivando repassar conhecimento específico para o operador jurídico, “para assim poder exercer as funções de consultoria e assessoria jurídicas com a máxima proficiência”.

Com efeito, para que uma política pública seja concebida, há de se ter um adequado planejamento, promovendo-se estudos técnicos, exames de impacto, avaliação robusta do cenário subjacente à política, abarcando inclusive debate transparente com a sociedade e com os próprios atores privados que atuarão, de alguma forma, na execução da política pública. É importante, para futura efetividade normativa, que haja a prognose dos mais diversos cenários para incidência da futura normatização, com o fito de expurgar, já na fase embrionária, eventuais conjunturas danosas à aplicação da policy.

Nessa senda, o advogado público pode auxiliar o processo, recomendando, por exemplo, a formulação de estudos técnicos, cujas conclusões podem instruir, inclusive, exposição de motivos do futuro ato legislativo. Ademais, impõe-se lembrar que, muitas vezes, a elaboração de tais espécies de estudo é condição imprescindível para validade normativa (vide, por exemplo, arts. 14 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal) e, dessarte, o advogado público, ao invés de recomendar, deve exigir a elaboração desses documentos técnicos.

Estando claro, portanto, o desígnio administrativo indutor de política pública, uma relevante questão a ser avaliada pelo advogado público é a própria necessidade de construção de uma norma, porquanto uma específica pretensão administrativa já pode estar prevista em normatização existente. A construção de norma supérflua e desnecessária não traz qualquer utilidade, além de ocasionar, muitas vezes, debates futuros no âmbito do Poder Judiciário, em face da superposição ou conflito de normas.

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Por sua vez, a OCDE[53] recomendou, em sua questão 9, a elaboração transparente de atos normativos e assim, tanto quanto possível, torna-se importante prévio debate, com elementos da sociedade civil, acerca da elaboração de uma norma específica. Com tal empreendimento, eventuais óbices ao deslinde da política pública já podem ser levantados na sua gênese, evitando esforços desnecessários para construção normativa. Ademais, a oitiva dos atores privados pode orquestrar um arranjo institucional mais adequado à efetivação normativa, trazendo assim um “balizamento geral das condutas dos agentes privados envolvidos, tanto os protagonistas da política quanto os seus destinatários”[54]. Assim, convém ao advogado público sugerir, caso seja pertinente e ainda na fase preliminar de elaboração normativa, a realização de audiências públicas e/ou consultas via rede social de computadores, no afã de atingir o desiderato supra.

É de bom alvitre lembrar que muitas políticas públicas feitas no Brasil tiveram influência de metodologias confeccionadas em outros países. Desse modo, o advogado público deve buscar conhecer a normatização estrangeira congênere, diligenciando inclusive informações sobre exegeses dos tribunais estrangeiros acerca de ponto fulcrais da norma alienígena, a fim de que, em uma conduta parecida com a do judicial dialogue ou cross-fertilization[55], promova-se eventual conjectura da visão pretoriana sobre o âmago da norma em formação, ou sugira-se a inclusão de algum dispositivo na propositura normativa, extraído do direito comparado.

Continuando, políticas públicas, em regra, tendem a possuir temporariedade (vide, por exemplo, o art. 6º, caput, da Lei nº 12.990, de 2014, que estabeleceu que a vigência da lei que reserva de vagas para negros em concursos públicos da Administração Pública Federal é de dez anos; ou art. 3º, § 6º, da Lei nº 8.666, de 1993, que delineou prazo máximo de 5 anos para  margens de preferência para aquisições públicas), até mesmo para forçar uma avaliação robusta da política pública, antes de seu eventual continuação. Dessa forma, a pertinência de delimitação de um período de vigência da política pública é medida importante, de sorte que o advogado público deve estar atento à eventual existência de motivação neste ponto.

Outra questão deveras relevante é o fato de que, muitas vezes, nova regulamentação de política pública promove ampla reformulação de um determinado cenário econômico e/ou social, de sorte que a feitura de uma norma radical, sem regras de transição, pode trazer reiterado desrespeito, pelos indivíduos, do comando normativo, bem como futura discussão jurídica. Nesse cenário, importante recomendação é a de avaliar a necessidade de promoção de regimes de transição, com o fito de tutelar o princípio da segurança jurídica, no seu viés subjetivo, referente “à proteção à confiança das pessoas no pertinente a atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação”.[56]

Recomendação relevante dada pela OCDE é a de que quando uma lei preveja delegação normativa a órgãos do Poder Executivo, tal delegação deve ser a mais clara possível, com limites expressos e detalhados do objeto cuja atribuição está sendo repassado. O advogado público, nesse sentido, tem importância decisiva, a fim de promover uma avaliação criteriosa do cumprimento dessa sugestão nas discussões sobre proposituras normativas.

Concernente ao papel de avaliação redacional do ato normativo, além do tradicional exame de juridicidade, imprescindível para trazer segurança jurídica, e da observância das regras tradicionais de legística formal contidas na Lei Complementar nº  75, de 1998, e o Decreto nº 4.176, de 2002, o advogado público deve atentar para que a redação do texto normativo esteja bastante clara, sem dubiedades. Há de se ter cuidado, por exemplo, com remissões legislativas.  Ademais, é de bom alvitre que se exija, tanto quanto possível, consolidações normativas, a fim de evitar que questões semelhantes sejam avaliadas em distintas normas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como delineado, o objetivo principal da construção de uma sistemática jurídica que formate uma política pública é a sua efetividade, a fim de que haja a alteração, no “mundo dos fatos”, desejada pelos formuladores da policy.

Para o alcance do objetivo, não há dúvidas de que um escorreito trabalho de planejamento, promovendo-se amplo debate interno e externo à esfera pública, é medida imprescindível ao correto deslinde da política pública. Por outro lado, a participação do advogado público, mormente na etapa de formulação, traz um elemento enriquecedor à construção da política, buscando evidenciar, e quiçá afastar desde já, possíveis problemas jurídicos no seu futuro deslinde.

A AGU, foi mostrado, possui um amplo corpo organizacional que atua no processo normativo administrativo e, por conseguinte, não se reputa adequada uma atuação eminentemente formal da AGU na construção de políticas públicas. Sem embargo de que a sua função não examina o mérito da política pública, o advogado público pode contribuir na sua construção e consolidação, intentando auxiliar no processo de efetivação da política pública engendrada.

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Sobre o autor
Fabiano de Figueirêdo Araujo

Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Professor Universitário. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Fabiano Figueirêdo. Políticas públicas, legística e a AGU:: o papel do advogado público federal na efetividade normativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4745, 28 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49170. Acesso em: 24 abr. 2024.

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