Dilma Rousseff foi deposta por uma conspiração urdida por políticos bandidos, jornalistas tendenciosos e elitistas, pastores inescrupulosos e juízes que desejavam aumento salarial. A racionalidade do golpe foi construída mediante uma ilusão construída no imaginário da população: Dilma seria desonesta (ela não é), o governo gastava dela mais do que deveria (as contas estavam equilibradas), a economia estava afundando (os indicativos mostravam uma tendência de recuperação).
A ilusão chegou ao poder como se fosse racional. Mas as ações de Michel Temer são apenas obra de um ilusionista: ele falou em salvação nacional (e tenta salvar bandidos nomeando-os Ministros para que eles tenha foro privilegiado), prometeu combater a corrupção (e desmantelou a CGU), afirmou que reduziria despesas (e aumentou os salários nababescos dos Juízes).
O ilusionismo foi elevado à condição de política externa. José Serra se esforça para desmantelar o MERCOSUL (causando prejuízos aos empresários que operam no mesmo), quer retirar o Brasil do BRICS (abalando as relações entre o Brasil e a China, seu maior parceiro comercial), pretende liberar a exploração do Pré-Sal pelas empresas norte-americanas (como se isto não fosse transferir a renda do mesmo para os EUA, prejudicando a economia brasileira).
A verdade factual, deliberadamente rejeitada pela imprensa durante o governo Dilma Rousseff (cujos méritos eram minimizados e os defeitos amplificados e até inventados), não faz mais parte da realidade brasileira. Somos governados por dois ilusionistas e a imprensa se esforça para transformar a ilusão em verdade. O processo de substituição do real por uma versão é possível (tanto que resultou no golpe), mas raramente consegue perdurar por muito tempo.
Numa das passagens mais belas de uma de suas obras disse Hannah Arendt:
“No reio das idéias, existem apenas a originalidade e a profundidade, que são qualidades pessoais, mas nenhuma novidade absoluta ou objetiva: as idéias vem e vão, duram algum tempo, podem até alcançar certa imortalidade própria, dependendo do seu poder de iluminar e esclarecer, que vive e perdura independentemente do tempo e da história. Além do mais, em contraposição aos eventos, as idéias nunca são inéditas; e as especulações, não confirmadas pela experiência, quanto ao movimento da Terra em torno do Sol não eram mais inéditas que o seriam as teorias contemporâneas do átomo se não tivessem base em experiências ou conseqüências no mundo factual. O que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo que os segredos do universo foram revelados à cognição humana ‘com a certeza da percepção sensorial’; isto é, colocou diante da criatura presa à Terra e dos sentidos presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu alcance e, na melhor das hipóteses, aberto às incertezas da especulação e da imaginação.” (A Condição Humana, Hannah Arendt, Forense-Universitária, 10ª edição, São Paulo, 2008, p. 271/272)
A dupla Temer/Serra, sem querem, podem estar fazendo pelo Brasil o mesmo que Galileu fez pela ciência. Não há mais qualquer incerteza ou especulação: o Brasil é uma tirania governada por corruptos cujo único objetivo é tirar dos pobres para dar aos ricos. Isto é algo confirmado pelas ações governamentais (redução de Programas Sociais e aumento dos salários nababescos dos Juízes). O mundo factual criado pelo governo provisório não será, portanto, capaz de se sustentar através da ilusão. A certeza da percepção sensorial impede que a “opinião pública” se iguale à “opinião publicada”. O abismo entre o que o governo Temer/Serra faz, o que a imprensa diz e o que é experimentado pela população não poderá ser mais escondido ou amenizado.
O desmanche do Estado, aceleradamente promovido por Michel Temer e José Serra, afetará aqueles que mais dependem dos programas sociais. Os beneficiários, que já desfrutavam privilégios, certamente não defenderão o governo (o egoísmo nunca foi um princípio capaz de produzir cidadania, civismo ou lealdade duradoura). Em algum tempo, não muito creio, a realidade se tornará novamente o fundamento do real. Como o governo é pautado pela ilusão (diariamente reforçada pela imprensa), o conflito entre a realidade e sua versão explodirá nas ruas de maneira violenta.
Hitler era racista, mas suas ações acarretaram o inverso do que ele pretendia. O III Reich obrigou a França e a Inglaterra a consumir numa guerra européia os recursos humanos e econômicos que seriam usados por ambos para perpetuar seus impérios coloniais na África e na Ásia. O subproduto da II Guerra Mundial, impensado e indesejado por Hitler, foi justamente o colapso do racismo europeu e a destruição do colonialismo francês e inglês.
Ainda não sabemos qual será o subproduto do governo Temer/José Serra. Não creio, porém, que eles sejam capazes de raciocinar claramente sobre o que estão fazendo. A ilusão os levou ao poder e, iludidos, eles usam o poder como se pudessem criar o real que prevalecerá ao fim da guerra civil que eles começaram.