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A inviolabilidade de dados, mensagens e diálogos armazenados em smartphones

21/06/2016 às 10:42
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A ausência de autorização para perícia no celular do preso caracteriza constrangimento ilegal e implica a nulidade das provas obtidas, devendo ser desentranhadas dos autos.

No Recurso Ordinário[1] em Habeas Corpus nº 51.531, oriundo do Estado de Rondônia, a 6ª Turma do STJ decidiu, por unanimidade, pela primeira vez, que “Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial”. A ausência de autorização para perícia no celular do preso caracteriza constrangimento ilegal e implica a nulidade das provas obtidas, devendo ser desentranhadas dos autos.

O recurso foi interposto em face de decisão do TJRO, que denegou ordem de Habeas Corpus, na qual se narrava que o paciente fora preso em flagrante pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes e associação para o tráfico (arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/06), sendo com ele apreendido um aparelho celular. Ocorre que os policiais que efetuaram a prisão fizeram uma “devassa unilateral” no conteúdo do equipamento, supostamente obtendo informações que vinculariam o suspeito à prática dos ilícitos. A Defesa sustentou que este “exame” se deu sem qualquer autorização do Juiz Natural, o que violaria o art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal (“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”).

O Tribunal de Rondônia entendeu ser “válida a transcrição de mensagens de texto gravadas no aparelho celular apreendido com o paciente por ocasião de sua prisão em flagrante pois estes dados não gozam da mesma proteção constitucional de que trata o art. 5º, XII”. Para o relator do HC, “a proteção do acesso de dados constantes do aparelho não se assemelha à interceptação telefônica”. A Autoridade Policial determinou a apreensão de todos os instrumentos que pudessem ter relação com o crime e, posteriormente, determinou a realização de perícia sobre a droga, bem como a “extração das conversações do aparelho celular”. Teria agido, assim, albergada pelo art. 6º, incisos. II, III e VII do CPP. Ademais, tal “perícia” foi realizada por agentes estatais, sobre os quais recai a necessidade de observância explícita dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros, sendo que o então impetrante não teria demonstrado qualquer interesse dos policiais em prejudicar o paciente.

Levado o caso ao STJ pelo recurso próprio, o relator, Min. Néfi Cordeiro, consignou em seu voto que a Constituição prevê a inviolabilidade da intimidade e de dados e comunicações telefônicas. A quebra do sigilo telefônico foi regulamentada pela Lei nº 9.294/96, segundo a qual, o “usuário de serviços de telecomunicações tem direito à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas” (art. 3º, inc. V). O dispositivo estaria em consonância com o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14), que assegura ao usuário a “inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial” (art. 3º, III). Ainda segundo o relator do RHC,

[...] na perícia realizada, houve acesso aos dados do celular e às conversas de whatsapp obtidos sem ordem judicial. No acesso aos dados do aparelho, tem-se devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente. Embora possível o acesso, necessária é a prévia autorização judicial devidamente motivada.

O Ministro explicou que, nas conversas mantidas pelo aplicativo whatsapp existe uma comunicação escrita entre interlocutores, situação similar àquela de mensagens via e-mail, para as quais há precedentes exigindo ordem judicial para acesso. Os aparelhos celulares permitem a comunicação por meio da troca de dados, o que se equipara à telefonia convencional, reclamando autorização judicial para interceptação. Portanto, votou pelo provimento ao recurso, para declarar a nulidade das provas e desentranhamento dos autos.

O revisor, Min. Rogério Schietti Cruz, pediu vista e apresentou voto acompanhando o relator. Citou precedente do STF (HC 91.867/PA), da lavra do Min. Gilmar Mendes, onde a Suprema Corte não reconheceu coação ilegal na hipótese em que, após a prisão em flagrante, policiais, ao apreenderem dois aparelhos celulares, procederam à análise dos registros telefônicos. No voto condutor daquele caso, o STF considerou que a Autoridade Policial apenas cumprira com o dever de proceder à coleta de todo material potencialmente comprobatório da prática de infração penal (art. 6º do CPP). Ao acessar os registros telefônicos do aparelho, constatou que havia ligações entre o executor de um homicídio e o paciente. O mero registro dessas ligações, acessível mediante o simples exame do objeto apreendido, não estaria acobertado por sigilo, pois seria equiparável à apreensão de um pedaço de papel com um número escrito, ou uma agenda telefônica de papel com números anotados. Diferente seria o acesso às conversas mantidas entre os interlocutores. “Ou seja, a autoridade policial, ao apossar-se do aparelho, tão somente procurou obter do objeto apreendido, porquanto razoável obtê-los, os elementos de informação necessários à elucidação da infração penal e da autoria, a teor do disposto no art. 6º do CPP”.

O Min. Schietti ponderou, entretanto, que o precedente do Pretório Excelso era de uma época em que os celulares não tinham acesso à internet de banda larga como hoje. Atualmente, os aparelhos celulares possuem inúmeras funcionalidades de envio e recebimento de mensagens, fotos, vídeos e documentos em tempo real através de aplicativos que neles podem ser instalados, como Whatsapp, Viber, Line, Wechat, Telegram, BBM, SnapChat, etc. A maioria das empresas não armazena em seus servidores essas comunicações. Por isso, o Ministro distingue dois tipos de dados protegidos passíveis de obtenção: “os dados gravados no aparelho acessados pela polícia ao manusear o aparelho” e “os dados eventualmente interceptados pela polícia no momento em que ela acessa aplicativos de comunicação instantânea”. Situa esses dados no âmbito do que a doutrina chama de “provas de terceira geração”, conceituadas como "provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais"[2].

Invocou um julgado da Suprema Corte dos EUA (caso Riley vs. California), onde um cidadão foi preso por dirigir com a carteira de habilitação vencida e, na revista ao seu automóvel, foram localizadas duas pistolas, o que levou os policiais a examinar o celular do suspeito, constatando que ele seria membro de uma gangue envolvida em diversos homicídios. Em 1º e 2º graus de jurisdição, foi aceita essa busca, com base na chamada Chimel Rule, pela qual não haveria violação à quarta emenda da Constituição, uma vez que “funcionários estariam autorizados a aproveitar objetos sob o controle de um detido e realizar buscas sem mandado para fins de preservação de provas”. Alçado o caso à Suprema Corte, o Chief Justice John Roberts concluiu pela necessidade de um mandado para acessar o telefone celular de um cidadão na hipótese de prisão em flagrante, já que seu conteúdo revela dados da intimidade do sujeito. “O fato de a tecnologia agora permitir que um indivíduo transporte essas informações em sua mão não torna a informação menos digna de proteção".

Assim sendo, o revisor acompanhou o relator pelo provimento do recurso, assentando que “o acesso aos dados do celular e às conversas de whatsapp sem ordem judicial constituem devassa e, portanto, violação à intimidade do agente”.

Terceira a votar, a Min. Maria Thereza de Assis Moura também pediu vista dos autos. Pontuou que a Constituição, em seu art. 5º, inc. XII, protege a “comunicação de dados”, e não “os dados em si mesmos”, o que não significa que os dados armazenados no aparelho celular estejam desprovidos de proteção constitucional, na medida que os modernos smartphones contém elevada quantidade de informações da esfera íntima de privacidade de seu titular.

Os dados mantidos num aparelho celular atualmente não se restringem mais, como há pouco tempo atrás, a ligações telefônicas realizadas e recebidas e a uma agenda de contatos. Tais aparelhos multifuncionais contém hoje, além dos referidos dados, fotos, vídeos, conversas escritas em tempo real ou armazenadas, dados bancários, contas de correio eletrônico, agendas e recados pessoais, histórico de sítios eletrônicos visitados, informações sobre serviços de transporte públicos utilizados etc. Enfim, existe uma infinidade de dados privados que, uma vez acessados, possibilitam uma verdadeira devassa na vida pessoal do titular do aparelho.

Todos esses dados estão acobertados pela cláusula geral de resguardo do direito fundamental à privacidade (art. 5º, X, da CF), que, em princípio, não admite restrição, porém, num caso concreto, pode ser afastado por razões de relevante interesse público, como já decidiu o STF (MS nº 23.452/RJ).

Em relação aos dados armazenados em aparelhos celulares de pessoas presas em flagrante existiria um relevante interesse constitucional – o direito à segurança pública (art. 144 da CF) – que impõe a existência de mecanismos eficientes de investigação a justificar o acesso pelas autoridades da persecução penal. Na presença deste conflito entre direito à intimidade e direito à segurança, o caso concreto impõe um processo de ponderação, que leve em conta os interesses em jogo. A restrição de um dos direitos em detrimento do outro deve obedecer ao princípio da proporcionalidade (composto de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).

O tema ainda é bastante controverso na jurisprudência comparada. A Ministra cita o caso R. vs. Fearon, no qual a Suprema Corte do Canadá entendeu, por maioria de 4 votos a 3, pela legitimidade do acesso pela polícia aos dados armazenados em aparelho celular, sem a necessidade de prévia ordem judicial, quando tal acesso for realizado na sequência de uma prisão em flagrante. Naquela oportunidade, a Corte reputou admissível o acesso excepcional aos dados do aparelho celular quando houvesse um “elemento de urgência”, ínsito à própria prisão em flagrante, a fim de garantir os objetivos da persecução penal, auxiliando as autoridades policiais na identificação e mitigação de riscos à segurança pública. A Corte canadense estabeleceu quatro critérios de legitimidade da medida: (a) a licitude da prisão; (b) o acesso imediato aos dados do aparelho celular, para garantir que este se deu no propósito de proteger as autoridades policiais, o suspeito ou o público, preservar elementos de prova e, se a investigação puder ser impedida ou prejudicada significativamente, descobrir novas provas; (c) a restrição do acesso apenas a correspondências eletrônicas, textos, fotos e chamadas recentes; e (d) a documentação detalhada dos dados examinados e de como se deu esse exame, com a indicação dos aplicativos verificados, do propósito, da extensão e do tempo do acesso. O último requisito auxilia na posterior revisão judicial e permite aos policiais agir em estrito cumprimento às demais condições expostas.

Outro precedente analisado pela Min. Maria Thereza é do Tribunal Constitucional da Espanha, caso no qual os policiais acessaram a agenda telefônica de celulares deixados por suspeitos de tráfico que fugiram, conseguindo localizar um deles. A Corte reputou que o caso era de uma “ingerência leve” na intimidade, pois somente a agenda telefônica fora examinada, de modo que, à luz do princípio da proporcionalidade, a medida deveria ser admitida como válida. Na ocasião, não houve exame aprofundado de outras funções do aparelho que caracterizasse invasão mais substancial da privacidade a demandar um parâmetro mais rigoroso de controle.

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No RHC em exame, as autoridades policiais acessaram fotos, imagens e conversas existentes em aplicativo de mensagens instantâneas (whatsapp) extraídas do aparelho celular do recorrente, e não apenas registros das últimas ligações realizadas/recebidas ou de nomes existentes em agenda telefônica. Além disso, não foram demonstrados o caráter excepcional e a urgência destes acessos. Esses dados estão mais profundamente vinculados à intimidade da pessoa, e só podem ser armazenados em aparelhos multifuncionais, não se aplicando, portanto, os precedentes do STF do Tribunal Supremo espanhol.

Não descarto, de forma absoluta, que, a depender do caso concreto, caso a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediato aos dados do aparelho celular. Imagine-se, por exemplo, um caso de extorsão mediante sequestro, em que a polícia encontre aparelhos celulares em um cativeiro recém-abandonado: o acesso incontinenti aos dados ali mantidos pode ser decisivo para a libertação do sequestrado.

Consequentemente, considerou a Ministra que não haveria nenhum prejuízo às investigações que o aparelho fosse apreendido e posteriormente fosse requerida judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados, em atenção ao direito fundamental à intimidade do investigado. Como assim não se procedeu, a prova foi obtida de modo inválido e deveria ser desentranhada dos autos (art. 157 do CPP). Assentando que o tema ainda gerará muita discussão na jurisprudência, a Ministra reputou a solução proposta pelo relator como a mais adequada.

O Ministro Sebastião Reis Júnior também acompanhou o relator. Não participou do julgamento o Ministro Antonio Saldanha Palheiro, que não acompanhara o relatório (art. 162, § 4º do RISTJ).

Trata-se de um precedente de extrema relevância para a preservação da intimidade do cidadão, uma vez que não há dúvida de que os dados armazenados nos modernos smartphones, a exemplo de outros tantos equipamentos eletrônicos, são altamente privativos. A prática inquisitiva de devassar aparelhos que contém este grau de informações deve ser contida pelo Judiciário e autorizada apenas em casos excepcionalíssimos, de forma séria, fundamentada e mediante adequada ponderação dos interesses incidentes.


Notas

[1] Art. 105, II, “a”, da CF.

[2] KNIJNIK, Danilo. Temas de direito penal, criminologia e processo penal. A trilogia Olmstead-Katz-Kyllo: o art. 5º da Constituição Federal do Século XXI. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 179.

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Sobre o autor
Carlo Velho Masi

Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. A inviolabilidade de dados, mensagens e diálogos armazenados em smartphones. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4738, 21 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49682. Acesso em: 17 nov. 2024.

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