“Com efeito, pode-se afirmar que a gradativa construção de um Estado Democrático de Direito não se perfaz com a mera auto-intitulação como tal. Corresponde, pois, a consectário lógico da limitação da esfera de atuação estatal em prol da liberdade do indivíduo. Entretanto, não se pode falar em liberdade quando dissociada de instrumentos idôneos à sua efetiva garantia, sob pena de se tornar falacioso o discurso democrático transmitido aos cidadãos.”[1]
No início da última semana, a ministra Cármen Lúcia deferiu, no bojo da Reclamação 24.144/DF, medida liminar para suspender a execução definitiva da pena imposta à uma advogada do Espírito Santo, cuja condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça daquele estado. Originariamente, a advogada foi condenada pelos crimes de denunciação caluniosa e difamação, com pena de cinco anos de reclusão, em regime inicialmente semiaberto.
Recomenda-se a leitura da decisão monocrática exarada pela relatora, pois que diversos temas são tangenciados, dentre os quais, a crescente tentativa de criminalizar-se o exercício da advocacia criminal (obviamente, esta atitude não é atribuída à E. relatora da ação mandamental). Independentemente do caso aqui tratado, essencial que se desenvolva, mormente no seio da sociedade civil, a necessária conscientização sobre a importância da advocacia e dos direitos do advogado. Assim, bastante elogiável o trabalho desenvolvido pela Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), sob a condução do seu presidente, Leonardo Sica. Apenas com a informação constante a respeito das prerrogativas dos causídicos conseguir-se-á honrar os ditames da nossa Constituição.
Resumidamente, a reclamante se insurge contra suposta suspeição/impedimento do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, uma vez que, na Ação Penal em que figura como ré, a Associação dos Magistrados do Estado do Espírito Santo serve como Assistente de Acusação. Dessa forma, competiria ao Supremo Tribunal Federal julgar originariamente a causa.
O imbróglio diz respeito à possibilidade de aplicação do artigo 102, inciso I, alínea “n”, da Constituição da República, in verbis:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
n) a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados.
Pendentes recursos no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, a condenação pode ainda ser revista. Por outro lado, bem entendeu a ministra Cármen Lúcia a respeito da premente necessidade de suspender a execução definitiva até o julgamento final da reclamação, momento em que avaliar-se-á a suspeição/impedimento ou não do Tribunal de Justiça. A relatora reconheceu o perigo da demora, e assim sinalizou:
“O periculum in mora está demonstrado pela possibilidade de trânsito em julgado da decisão condenatória com o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo n. 948.144, também da minha relatoria, o que conduziria à transferência da Paciente da prisão domiciliar para um estabelecimento penal do sistema penitenciário no juízo da condenação.”
Para além dos meandros que caracterizam a reclamação ora em comento, percebe-se que a segurança, a certeza e a crença cega nas condenações proferidas pelos Tribunais de Justiça não podem persistir. Faz-se patente reconhecer não a “incapacidade” dos Egrégios Tribunais, mas a falibilidade de qualquer órgão, que, por mais competência que revele e demonstre, sempre poderá errar.
O julgamento do Habeas Corpus 126.292 causou comoção e foi motivo, lamentavelmente, de júbilo pela maioria da população, inclusive acadêmicos e técnicos. Exceção feita a um pequeno grupo de garantistas, a execução provisória da pena voltou ao ordenamento jurídico pátrio como promessa do fim da impunidade, das mazelas, da corrupção, dos desmandos etc.
Estes articulistas, imediatamente após a triste decisão, definiram brevemente as razões de preocupação e angústia[2]. Cuidou-se de verdadeira afronta ao comando da presunção de inocência, ao se interpretar erroneamente, com as devidas e necessárias licenças, o Pacto San Jose da Costa Rica. Entendeu-se, à época, que era preciso ouvir a opinião pública, e dar um basta na impunidade. Suas Excelências, os ministros, compreenderam que a confirmação de condenação pelo 2° grau é suficiente para findar a presunção de inocência e olvidar a Constituição. Salientou-se o cabimento tão somente da execução provisória em favor do réu. De mais a mais, o alegado abuso de defesa pode ser combatido de outras formas, jamais, contudo, adotando-se o ilegítimo discurso da defesa social.
O discurso da defesa social se instaurou ilegitimamente, contudo a própria sociedade que hoje festeja restará fragilizada com tal caminho: “Em favor da sociedade?”. Que ganho tem a sociedade com a condenação de um inocente? Digamos mais: que benefício ela aufere com a condenação duvidosa? Em um primeiro momento, quando a prestação de contas é dada, homenageia-se a segurança e louva-se a eficiência punitiva. Mas o fato é que tais condenações representam um imenso vazio. No fim, não se sabe se foi punido o culpado, ou horrendamente injustiçado o inocente, e aquele agora tem assegurada de vez impunidade. Condenações destituídas da mais límpida certeza são como um veneno que sorrateiramente intoxica, pouco a pouco, o corpo social.[3]
O argumento preponderante no aludido Habeas Corpus diz respeito a quase imutabilidade das decisões confirmadas em segunda instância, quando julgadas nas Cortes Extraordinárias. Isto porque o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal seriam competentes tão somente para apreciar o direito, a aplicação da norma, sendo a análise fático-probatória findada no 2° grau de jurisdição.
No mantra conveniente da quase certeza da culpa — afinal, depois de um Juiz de primeiro grau e de um Tribunal (colegiado) afirmarem a condenação, muito provavelmente o réu tem “culpa no cartório” — esqueceu-se que a norma, o direito e as instituições valem, no mínimo, tanto quanto o escorço fático de um caso penal. Olvidou-se, injustificada e convenientemente, em tempos de lava-jato, que o Processo Penal vai além de (del)ações e (il)ações premiadas. O processo penal necessita da tutela constante das cortes máximas do país. O Direito necessita da tutela constante das cortes máximas do país. As Instituições necessitam da tutela constante das cortes máximas do país. Da mesma forma, a citada advogada teve reconhecido pedido liminar necessitou da tutela constante das cortes máximas do país.
A crença na certeza provoca injustiças. O julgamento do habeas corpus 126.292 transmitiu a errônea percepção de autossuficiência do Tribunal de Justiça para se executar provisoriamente a pena (julgamento não vinculante, repise-se). A reclamação acima citada não trata exatamente do mesmo caso. Mas é possível, a partir da essência do julgado, fazer analogia que demonstra a mesma razão de fato. E onde há uma mesma razão de fato deverá haver uma mesma razão de direito.
O motivo que determinou a concessão da medida liminar foi a iminência de trânsito em julgado da condenação, com a transferência da Paciente da prisão domiciliar (em que se encontra) para um estabelecimento penal. Ora, fica patente que é preciso esperar o julgamento definitivo da Reclamação, pois o Tribunal de Justiça pode ter errado, assim como poderá errar em grau de apelação. Por isso, há necessidade democrática/republicana/constitucional de se esperar sempre o fim das instâncias recursais, seja para avaliação dos fatos, seja para apreciação do direito. Quem decide por último pode errar. Mas é preciso que se conceda ao cidadão, independentemente do caráter, a chance de que todos os atores da Democracia errem. Só assim haverá legitimidade para o cumprimento da pena.
Os leitores já devem ter percebido: se foi concedida liminar com o fito de suspender a execução definitiva da pena até o julgamento do mérito da Reclamação, foi reconhecida a falibilidade do próprio STJ e STF! Se os órgãos máximos do Poder Judiciário erram (é natural, é humano), por que a crença cega na infalibilidade do 2° Grau?
Notas
[1] FÖPPEL, Gamil. O princípio da Legalidade como um Ideal Radicalmente Garantista. In: Novos Desafios no Direito Penal no Terceiro Milênio: Estudos em homenagem ao Prof. Fernando Santana. FÖPPEL, Gamil (Coord.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008 pág. 505
[2] Em artigo publicado na ConJur: http://www.conjur.com.br/2016-fev-17/decisao-stf-capitulo-direito-penal-emergencia
[3]JORIO, Israel Domingos. In dubio, pobre do réu. In: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Boletim – 257 – abril/2014