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O princípio da proporcionalidade das penas e o delito militar de tráfico, posse ou uso de entorpecentes em lugar sujeito a administração militar

27/09/2016 às 10:42

Resumo:


  • Cesare de Beccaria propôs critérios para a tipificação de delitos, defendendo a proporcionalidade entre delito e pena.

  • Alberto Silva Franco conceitua o Princípio da Proporcionalidade como a ponderação entre a gravidade do fato e a gravidade da pena, evitando desequilíbrios acentuados.

  • Guilherme de Souza Nucci destaca que as penas devem ser proporcionais à gravidade da infração penal cometida, evitando excessos ou liberalidades na cominação das sanções.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa-se possível violação do princípio da proporcionalidade das penas no art. 290 do Código Penal Militar, pois o legislador castrense valorou a conduta de tráfico, posse ou uso de entorpecentes com a mesma sanção penal.

Historicamente, Cesare de Beccaria, em sua obra intitulada “Dos Delitos e das Penas,” apresenta critérios que deveriam ser utilizados pelo legislador na tipificação de delitos. Segundo o renomado autor, o legislador deve perseguir a proporcionalidade entre delito e pena.

“se fosse possível aplicar um cálculo matemático à obscura e infinita combinação de ações humanas, haveria uma escala correspondente de penas, da maior para a menor; mas, não sendo possível basta o legislador sábio indicar os pontos principais, sem perturbar a ordem, não decretando a delitos de primeiro grau penas de último.” (grifo nosso).

Nesta senda, Alberto Silva Franco conceitua o Princípio da Proporcionalidade nos seguintes termos:

“O principio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade de fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em conseqüência, inaceitável desproporção” (grifo nosso).

Para Guilherme de Souza Nucci, o Princípio da Proporcionalidade preleciona que as penas “devem ser harmônicas com a gravidade da infração penal cometida, não tendo cabimento o exagero, nem tampouco a extrema liberalidade da cominação das sanções nos tipos penais incriminadores” (NUCCI, p. 20).

Em suma, a proposta da proporcionalidade é balancear ambas as gravidades. Pauta-se por uma correlação racional entre o bem jurídico violado pela conduta do agente e a pena a ser aplicada pelo Estado, em decorrência da violação das expectativas sociais e consequente rompimento do pacto social. 

Assim, com base nas considerações apresentadas pelos renomados autores, apresenta-se o artigo 290 do Código Penal Militar[i] (Decreto-Lei 1.001 de 1969), que prevê o crime militar de tráfico, posse ou uso de entorpecentes no mesmo tipo penal incriminador, como apresentado a seguir.

“Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, até cinco anos.” (grifo nosso).

Percebe-se que o legislador valorou condutas de gravidades distintas com as mesmas sanções penais.

Assim, o legislador poderia prescrever a conduta de traficar drogas com a mesma carga axiológica do porte de entorpecentes para consumo pessoal?

Como mencionado, a proporcionalidade das penas deve se pautar por uma ponderação sobre gravidade de fato e gravidade da pena. Assim, deve haver uma correlação lógica entre o bem jurídico violado e a pena a ser aplicada pelo magistrado no caso concreto, quando se utiliza do critério trifásico constante na Teoria da Pena. 

Como se percebe, o legislador optou por punir, com a mesma sanção penal, tanto o agente que porta determinada substância entorpecente para consumo pessoal, como aquele que utiliza aquela em lugar sujeito à administração militar para a prática do tráfico de drogas (delito axiologicamente mais grave).

Assim, o agente poderia imaginar ser mais vantajosa a traficância no ambiente castrense do que o uso de entorpecentes.

Conforme este raciocínio, Beccaria brilhantemente ensina:

“se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á mais facilmente o delito que lhe seja mais vantajoso.” (grifo nosso).

Analogicamente, podemos perceber que, na Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), o tráfico de drogas é punido com pena base de cinco a quinze anos de reclusão. O porte de drogas para consumo pessoal atualmente é concedido como delito, contudo, não há sanção penal conforme entendimento do STF (caráter despenalizador do art. 28 da Lei de Drogas).

Todavia, em votação, o Supremo Tribunal Federal, indubitavelmente, encaminha-se para uma provável descriminalização da conduta daquele que porta drogas para consumo pessoal.

Como visto, na Lei de Drogas há diferenciação entre as condutas do delito de tráfico e do crime de porte de drogas para consumo pessoal. Conclui-se que o princípio da proporcionalidade foi devidamente obedecido pelo legislador conforme critérios de política criminal. 

No art. 290 do CPM, curiosamente, o legislador optou em punir de forma idêntica condutas essencialmente distintas. Segundo Nucci, “por outro lado, equiparam-se, no mesmo tipo, o tráfico para comércio e a porte para uso pessoal, outra medida ilógica de política criminal. Na Lei de Drogas, o traficante é severamente punido, mas o usuário recebe penas brandas, sem jamais ser preso.” (NUCCI, p. 390).

Alguns doutrinadores de Direito Penal Militar e o Supremo Tribunal Militar (STM) entendem que a inocorrência de diferenciação de ambas as condutas está ligada ao especial regramento do militar na caserna. Contudo, não é razoável tal entendimento, pois, uma vez acolhido, denota-se claro desrespeito ao princípio da proporcionalidade das penas e, assim, afasta-se os critérios de um Direito Penal com viés garantista.

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Salienta-se que a conduta de usar entorpecentes em lugar sujeito à administração militar é merecedora de reprimenda penal, devido ao risco que o uso de tais substâncias representa às instituições militares, o que, por conseguinte, transmuda-se em perigo para toda a sociedade civil.

Assim, percebe-se que o art. 290 do CPM viola o princípio da proporcionalidade. Como conceituado acima, o tráfico, a posse ou o uso de entorpecentes possui a mesma pena base, ou seja, reclusão de até cinco anos. Neste contexto, percebe-se que não há qualquer critério lógico de Política Criminal usado pelo legislador militar, pois não se pode valorar condutas com gravidades distintas com a mesma pena.

Deve-se punir tanto o traficante quanto o usuário no ambiente militar, contudo, com penas distintas. A igualdade de penas pode chegar, curiosamente, a prestigiar o tráfico de drogas nos quartéis. O militar que praticar o delito de tráfico de drogas em lugar sujeito à administração militar terá uma pena certamente bem mais branda do que a legislação penal comum, pois o preceito secundário da Lei de Drogas prevê como pena para o traficante a reclusão de cinco a quinze anos e o pagamento de quinhentos a mil e quinhentos dias-multa.

No CPM, se, no momento da prática de tráfico de drogas, o agente for réu primário, possuir bons antecedentes e apresentar causas de atenuação da pena (menor de 21 anos, por exemplo), o tráfico no ambiente castrense seria considerado “privilegiadíssimo”, pois a pena é de até cinco anos de reclusão. Tal solução nos parece completamente incoerente com os valores das instituições militares, ou seja, a hierarquia e a disciplina.

O art. 40, II, da Lei de Drogas, menciona que, se o agente traficar drogas, prevalecendo-se de função pública, tem-se majorante de um sexto até a metade. A recíproca não é verdadeira, pois o art. 290 do CPM não tem previsão para tal majoração.

No art. 70, II, "l", do CPM, tem-se uma agravante, que é aplicada quando crime é praticado por militar em serviço. Todavia, a própria figura tipica do art. 290 do CPM menciona que este crime deve ser praticado em lugar sujeito à administração militar. Assim, deve-se analisar no caso concreto (verificando-se se o delito militar se enquadra nas condições taxativas do art. 9º do CPM), pois há situações em que o militar pode se encontrar em lugar sujeito à administração militar e não se encontrar. necessariamente, de serviço. Caso o militar esteja de serviço e em lugar sujeito à administração militar, poderia haver bis in idem, solução rechada pelo Direito Penal, seja este comum ou castense.

Portanto, é desproporcional a sanção prevista no art. 290 do CPM, pois visa punir de forma idêntica condutas que deveriam ser valoradas de forma diferenciada. Em muitos casos, o usuário de drogas, seja ele civil ou militar, trata-se de doente que necessita de tratamento médico. Em contrapartida, o traficante deve ter uma reprimenda penal mais severa, pois, como é sabido, o tráfico alimenta a prática de outras infrações penais.  

Alberto Silva Franco preleciona que “o princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global.”.

Em conclusão, o artigo 290 do CPM não prestigia o princípio da proporcionalidade ao prever, no mesmo tipo penal incriminador, o crime militar de tráfico, posse ou uso de entorpecentes, e, por conseguinte, a mesma sanção penal constante no preceito secundário. 

A escolha legislativa não obedece a questões de políticas criminais. Ainda, chega a “beneficiar” o traficante em detrimento do usuário de drogas, em lugar sujeito à administração militar. 

Defende-se que as condutas de tráfico, posse ou uso de entorpecentes, deveriam estar em tipos penais distintos e, logicamente, as penas deveriam ser proporcionais, de acordo com a gravidade de fato, em consonância com a gravidade da pena.


REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2002.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 8 Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar Comentado. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2013.


Nota

[i] Esclarece que o aludido dispositivo trata-se de lei penal em branco heterogênea, criada pelo jurista alemão Karl Binding, pois esta tem o seu preceito primário incompleto, e, assim, necessita de complementação por outro diploma legal de caráter infralegal, e, neste caso, a norma que realiza a completude do artigo supramencionado é a Portaria da ANVISA, órgão vinculado ao Ministério da Saúde.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Ribeiro Gomes

Possui pós-graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais). Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Paulo Henrique Ribeiro. O princípio da proporcionalidade das penas e o delito militar de tráfico, posse ou uso de entorpecentes em lugar sujeito a administração militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4836, 27 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50507. Acesso em: 22 dez. 2024.

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