Resumo: Neste artigo, pretende-se estudar as leis de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras. A reserva com base na etnia dos indivíduos tem ocasionado discussões em diversos âmbitos: desde o da massa social ao dos acadêmicos do Direito. Tem sido fortemente discutida a constitucionalidade desta política educativa do governo e aqueles contrários as leis consideram que seriam discriminatórias porque lesam o princípio constitucional de isonomia. Do outro lado, estão aqueles que aprovam e defendem esse sistema afirmando que é dever do Estado proporcionar os meios necessários para combater as desigualdades sociais que algumas classes historicamente estigmatizadas têm sofrido. O suporte teórico jurídico para esta pesquisa é baseado no trabalho dos doutrinadores: José Afonso da Silva, Gomes Canotilho, Luis A. Araújo e Vidal Nunes Júnior. Foi feita uma pesquisa bibliográfica das teorias educativas que questionam a função social da escola e, através do conceito de “capital cultural” é possível compreender a brecha intelectual que existiria na formação sociocultural dos indivíduos. A política compensatória do governo tem como objetivo principal beneficiar àqueles em visível desvantagem socioeconômica e, para que possa ser compreendida a justificativa social das leis de cotas, faremos referência à teoria do “reprodutivismo escolar” defendida pelos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron.
Palavras-chave: Capital cultural - Reprodutivismo – Isonomia
1- INTRODUÇÃO
Uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público de Fortaleza, Ceará no 15 de setembro de 1999, marcou o início de uma nova era para o ensino superior público brasileiro. A 6º Vara Federal determinou que a Universidade do Estado do Ceará “em nome do princípio da isonomia” reserva-se o 50% das vagas de todos os seus cursos para estudantes provenientes do ensino público. Esta Ação Civil Pública serviu de base para as posteriores ações afirmativas do governo federal que promovem uma mudança social através das leis de reserva de vagas.
No Estado de Rio de Janeiro foram criadas as leis ordinárias nº 3524/00, nº 3708/01 e nº 4151/03 que reservam uma percentagem das vagas nas universidades públicas desse estado para os setores sociais mais vulneráveis. Nestas leis se explicita quem poderá aceder a este benefício e quais os requisitos para preencher estas vagas.
Desde então, as universidades públicas federais e estaduais mudaram as regras do jogo e o ingresso a tão ansiado nível superior já não seria tão simples. Passar na prova do vestibular até então era algo complexo e requeria bom preparo geral em todas as áreas do conhecimento, mais com a reserva de um 45% das vagas o funil restringiu as chances deacesso universal ao ensino superior público.
Posteriormente, em agosto de 2012 foi sancionada a Lei nº 12.711 denominada “Lei de Cotas” que dispõe a reserva de 50% das vagas nas Instituições de Ensino Superior vinculadas ao MEC e também nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. O prazo para a aplicação integral da lei é de quatro anos e incluiu um mínimo de 25% anual. Desta forma cada ano nos vestibulares (desde 2013) deverão ser reservadas gradativa e progressivamente um percentual de vagas: 12,5% em 2013; 25% em 2014; 35,5% em 2015, e 50% em 2016. Assim, em 2016, todas as instituições abrangidas na norma terão reservadas o 50% das suas vagas para as cotas.
2- A POLÊMICA NOS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO
O critério de distribuição das vagas tem três fundamentos: a)origem em escola pública, b)Renda e c)Critério étnico-racial.
Todos os alunos que concorram a uma vaga no ensino superior público deverão ter cursado o ensino médio na rede pública e, no caso das vagas para ensino técnico público, os alunos deverão ser oriundos do ensino fundamental das escolas técnicas de nível médio. Assim, este primeiro critério de distribuição é excludente de seleção, pois, sem ser oriundo da rede pública, o candidato não poderá sequer pensar em participar da reserva de vagas.
O segundo critério faz referência à renda. A lei estabeleceu também que a metade do total de vagas será reservada aos alunos com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 SMN e a outra metade das vagas será preenchida por estudantes com renda superior familiar per capita a 1,5% SMN. Desta forma vemos que o legislador se preocupou também em incluir na seleção o critério socio econômico pensando nas abismais diferenças existentes neste âmbito dentre o povo brasileiro.
O terceiro critério, e o que suscita mais polêmica desde a implementação desta modalidade de ingresso, é o “étnico-racial”. A lei 12.711 estabelece que as cotas raciais serão proporcionais à composição étnico-raciais de cada estado verificada pelos dados censários do IBGE e deverá incidir sobre a totalidade das vagas reservadas (50%). A proporção étnico-racial será dividida entre candidatos “autodeclarados” pretos, pardos ou indígenas do estado onde está situado o campus da universidade, centro ou instituto do federal tendo como suporte os dados estatísticos do IBGE.
Toda lei é criada com um objetivo e sempre visa garantir o direito de alguém, portanto, consideramos essencial compreender o porquê destas recentes disposições de ingresso à faculdade para não prejulgar antecipadamente os seus ideólogos e beneficiários.
O Estado tem por objetivo fundamental o bem comum dos indivíduos que o compõem e deve promover a criação de políticas de governo eficientes para atingí-lo. O ordenamento jurídico de cada Estado funciona como o alicerce que sustenta estas políticas, mais é preciso ter muita cautela para criar e aplicar as leis já que as vezes corremos o risco de atentar contra princípios fundamentais como o da “isonomia”. O sistema de cotas tem atraído a atenção da média desde a sua criação, é muito polêmico e divide a opinião pública em dois grandes grupos: os a favor e os em contra. Não é tão discutida a reserva de vagas para as os candidatos oriundos do ensino público nem com base no critério socio-econômico; o que realmente está sendo alvo das atenções é a reserva de vagas com base no critério étnico-racial dos indivíduos.
3- AÇÕES AFIRMATIVAS – POLÍTICAS COMPENSATÓRIAS DO ESTADO
É necessário compreender o conceito de “ação afirmativa” para depois poder analisar e discutir a constitucionalidade destas leis. Uma ação afirmativa é uma política social compensatória, são intervenções do Estado que garantem ou sustentam os direitos sociais dos indivíduos que a ele pertencem. As políticas de ação afirmativa são fundamentais já que funcionam como um mecanismo ético-pedagógico dos diferentes grupos sociais para o respeito às diversidades de qualquer espécie: étnicas, culturais, de classe, de gênero, de orientação sexual ou etária.
Em todo Estado e em todo grupo social estabelecido, sempre têm existido diferenças. Em toda sociedade e em todo grupo social é possível distinguir subgrupos. Os seres humanos procuram seus iguais, aqueles com quem compartilha alguma coisa em comum, seja a etnia, a classe social, a ideologia, a profissão, a religião, hobbies, profissão, etc. Portanto, a interação social com os outros subgrupos não é tão natural nem tão fluida como deveria ser, e é então que surgem as incompreensões, a intolerância e a discriminação. É difícil se situar no lugar do outro, compreendê-lo, aceitá-lo como ele é, e muitas vezes, a discriminação caminha de mãos dadas com a ignorância. As políticas compensatórias particularistas atendem às diferenças e percebem estes grupos de indivíduos unidos pela etnia, deficiências, pela religião, etc., percebendo-os como sujeitos concretos. De certa forma, intentam superar a concepção filosófica do século XVIII que concebia ao ser humano como uma unidade homogênea, como iguais, em especial após a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Portanto, a ação afirmativa tem por objetivo ajudar a superar essas diferenças e promover a igualdade de direitos entre os diferentes grupos que conformam uma sociedade. A política estatal utiliza estas ações afirmativas para concretizar através do seu ordenamento jurídico uma igualdade mais real e mais concreta. A igualdade deverá deixar de ser procurada aplicando as mesmas normas para todos os indivíduos do Estado assumindo que todos eles encontram-se na mesma situação. Esta igualdade deverá ser materializada através de medidas específicas que atendam as situações particulares de minorias e de aqueles grupos em visível desvantagem ou vulnerabilidade.
Segundo Ellis Cashmore, as ações afirmativas são:
[...] medidas temporárias e especiais, tomadas ou determinadas pelo Estado,de forma compulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminaras desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade.Estas medidas têm como principais beneficiários os membros dos grupos queenfrentaram preconceitos. (CASHMORE, 2000, p.31)
As políticas de ação afirmativa podem ser aplicadas de diversas formas, desde ações focadas aos problemas raciais, até as políticas de reserva de vagas para minorias em desigualdade de condições ou historicamente estigmatizadas. De certa forma, estas políticas servirão de base para propiciar mudanças significativas naqueles setores da população que tem uma história de desigualdade. Um claro exemplo disto é o dos brasileiros descendentes de negros e índios escravos. As estatísticas revelam que a exploração humana está diretamente relacionada ao nível educativo do indivíduo.
O segundo governo Lula (2006-2010) incorporou uma série de ações afirmativas através do PDE, programa de desenvolvimento da educação. Uma das ações deste programa é o PROUNI, programa destinado exclusivamente ao ensino universitário que promove o acesso das minorias ao ensino superior público, já seja público ou particular. Nas universidades particulares existem bolsas de estudo parciais e totais para estudantes que não possuem recursos econômicos suficientes para custear um curso superior. As leis estaduais de reserva de vagas também formam parte deste programa do governo, já que o objetivo primordial é reduzir a enorme brecha social que existe no país através da educação. Tudo parece muito simples e claro, mas o debate surge com o questionamento de um dos princípios fundamentais explicitados na CF/88, “o princípio da isonomia ou igualdade”. Portanto, faz-se necessário compreender primeiro o conceito de princípio constitucional e a fundamentação teórica do princípio da isonomia.
O doutrinador Gomes Canotilho considera que os princípios constitucionais são basicamente de dois tipos: políticos e jurídicos. Os primeiros são aquelas decisões políticas fundamentais que conformam normas do sistema constitucional do país que servem para regular as relações específicas da vida social. São os princípios fundamentais explicitados nos artigos 1º ao 4º da CF/88.
José Afonso da Silva define os princípios jurídico-constitucionais como:
[...]princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro,constituem desdobramentos dos fundamentais, como princípio da supremacia da constituição, o princípio da isonomia, o princípio daautonomia individual, o da proteção social dos trabalhadores (...) quefiguram no art. 5º. (DA SILVA, 1992, p.86)
David Araujo e Nunes Júnior consideram que: “a constituição instituiu o princípio da igualdade formal apontando que o legislador e o aplicador da lei devem dispensar tratamento igualitário a todos os indivíduos sem distinção de qualquer natureza” (ARAUJO E NUNES, 2002, p.91). É importante compreender o que significa ser tratado por igual e como se faz para aplicar este princípio de forma tal de garantir direitos a alguns sem lesar os direitos dos demais. Da Silva considera que o direito de igualdade é o alicerce fundamental da democracia. Um regime democrático que não atende à defesa deste princípio estaria de certa forma compactuando com um regime liberal que admite privilégios e distinções para a classe burguesa que é detentora do poder econômico. Segundo Da Silva, nossa CF/88 no art. 5º caput explicita este princípio dizendo que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Este princípio é reforçado com normas que procuram garantir este direito buscando um tratamento igualitário aos desiguais mediante direitos sociais substanciais. Bandeira de Mello coincide em que: “[...]a função da lei consiste exatamente em discriminar situações, pois, só dessa forma procedendo é que pode vir a regulamentá-las” (BANDEIRADE MELLO, 1999)
A noção de igualdade como direito se remonta a um fato histórico que foi o ponto de partida para a luta pelos direitos sociais: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. A sociedade anterior a 1789 sustenta a sua ideologia dominante na convicção de que cada grupo social está predestinado a exercer uma função, uma tarefa determinada dentro da maquinaria social.
A Revolução Francesa mostrou aos indivíduos um novo horizonte que propiciou a luta das classes oprimidas pelos seus direitos. O art.1º da declaração afirma que os homens nascem e são livres e iguais em direitos. Porém há duas posições bem divergentes ao respeito. Uma das posições coincide com a afirmação do art.1º coincidindo em que efetivamente todos os indivíduos são iguais em direitos. Os adeptos desta posição são os “idealistas”, que consideram que não existem diferencas entre as pessoas já para estes há um igualitarismo absoluto entre elas. Do outro lado, estão aqueles “realistas”que afirmam que a desigualdade é moeda corrente no mundo e que os seres humanos desde que nascem são desiguais. Para eles a igualdade seria só um conceito virtual, um nome sem nenhuma significação no mundo real.
Segundo Da Silva, o mandamento explicitado na Constituição se dirige exclusivamente ao legislador. Portanto, se esta trata sobre a igualdade, a lei obrigará a executá-la com fidelidade a este princípio.
O princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual esclarece Petzold não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais”podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. (DA SILVA, 1992, p.197)
A polêmica da lei de cotas radica justamente neste aspecto jurídico-social. O alvo é o acesso à educação já que é dever do Estado proporcionar educação para todos os seus membros (art.205 da CF/88), o ensino deverá ser ministrado com base no princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art.206, I da CF/88).