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Encarceramento feminino:

a seletiva porta de entrada e a distorção “realidade-garantias” do sistema penal

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Compreender os processos de seletividade do sistema penal, principalmente nas questões de gênero, é essencial para conter os ímpetos incriminadores da sociedade, preservando o caráter subsidiário do Direito Penal.

Sumário: 1. Introdução – 2. Criminalização Feminina – 3. Execução da pena privativa de liberdade – 3.1. Garantias normativas – 3.2. Realidade – 4. Conclusão


1. INTRODUÇÃO

Inserida na questão do recorte de gênero do sistema penal, a criminalização da mulher tem sido objeto de numerosos estudos criminológicos. Com efeito, há nítidas disparidades de gênero, quantitativas e qualitativas, observáveis no sistema penal, a saber: o número expressivamente superior de homens encarcerados em relação ao de mulheres; as espécies de delitos por cuja prática homens e mulheres são mais condenados; as distintas garantias legais e formas de execução da pena em função do gênero. Sob o ponto de vista da criminologia crítica, portanto, o presente artigo busca esclarecer algumas dessas disparidades de gênero observadas no sistema penal.


2. CRIMINALIZAÇÃO FEMININA

Particularmente, um fenômeno tem chamado a atenção dos pesquisadores da área atualmente: o recente aumento da criminalização feminina. Conquanto a representatividade do sexo feminino dentro cárcere ainda seja reduzida – dados do ano de 2009[1] indicam que as mulheres são cerca de 7% população carcerária brasileira – estudos estatísticos mostram que, proporcionalmente, o aumento recente da população carcerária feminina foi muito maior que o da masculina – de 2001 a 2006 o crescimento foi de 135%[2].

Antes de proceder à explicação do porquê do aumento da criminalização feminina, é necessário tecer algumas considerações sobre os estudos acerca da menor criminalização feminina histórica. Muitos pesquisadores criminológicos se debruçaram sobre o tema, inicialmente proposto da seguinte forma: por que as mulheres cometem menos crimes que os homens? Cesare Lombroso[3], criminólogo italiano e um dos expoentes da Escola Positivista do Direito Penal, respondeu à questão afirmando que as mulheres comentem menos crimes simplesmente por causa de determinadas características biológicas, inerentes à sua condição de mulher. Assim, o cientista social atrelou a menor criminalidade feminina a características que ele considerava predominantes (“normais”, em sua terminologia) entre as mulheres, como a passividade e a inferioridade intelectual em relação ao homem. As “mulheres  delinqüentes”, por seu turno, eram vistas na teoria lombrosiana como portadoras de características “desviantes”, e por esse motivo alinhavam-se à prática de crimes ou à prostituição, comportamentos socialmente reprováveis.

Freda Adler e Rita Simon foram duras críticas da explicação lombrosiona e podem ser consideradas as primeiras criminólogas feministas[4]. Rita Simon defende a teoria da oportunidade para explicar a menor taxa de criminalidade feminina. Segundo essa tese, a baixa criminalidade feminina se devia à deficiência de acesso da mulher ao mercado de trabalho e à esfera pública, espaços mais propícios à prática de crimes. Freda Adler defendia a tese da masculinidade. A criminóloga acreditava que quatro características determinavam sobreposição da criminalidade masculina: tamanho, força agressividade e dominância. As duas primeiras, afirma a autora, são características biológicas, ao passo que as duas últimas são socialmente construídas, objeto de aprendizagem cultural. Para Adler, a menor criminalidade feminina menor estaria menos relacionada às características biológicas do que aos estereótipos socialmente construídos e imputados a homens e mulheres. Nesse sentido, a pesquisadora acreditava que a transformação da subjetividade feminina, de passiva para agressiva, seria determinante para o aumento de sua criminalidade. Ademais, pode-se dizer que Freda também reconhece a teoria da oportunidade, atribuída a Rita Simon. Adler acreditava que a competição da mulher com o homem no âmbito do mercado de trabalho teria estimulado a competição também no âmbito do crime. Dessa forma, teria surgido uma mulher delinquente mais competitiva, que visava maiores lucros e portanto praticava mais numerosos e graves crimes, primariamente motivadas economicamente. A criminóloga cria que quando a igualdade entre os gêneros alcançasse sua plenitude a criminalidade das mulheres tenderia a se igualar à dos homens, predominando crimes contra o patrimônio e os chamados “crimes do colarinho branco”, em detrimento dos crimes violentos. Uma crítica que pose ser feita às criminólogas em estudo é a seguinte: se as mulheres conquistaram diversos direitos, de modo que se pode dizer hoje que alcançaram nível razoável de igualdade com os homens, por que as taxas de criminalidade feminina continuam bem menores que as de criminalidade masculina? Aparentemente a criminalidade das mulheres não cresceu à mesma proporção que se deu o processo de equiparação de direitos com os homens, diferentemente do que previam as teorias de Adler e Simon.

Embora as teorias citadas tenham se aproximado em determinados aspectos da explicação sobre o fenômeno da menor criminalidade feminina, elas não mais se adéquam ao paradigma atual. Isso porque, desde a virada epistemológica da Criminologia, não se fala mais e criminalidade, mas sim em criminalização. Essa virada epistêmica deu surgimento à Criminologia Crítica[5], em meados do século XX. A diferença de perspectiva é gritante: enquanto a Criminologia Tradicional investiga as causas da ocorrência de crimes, focando no delinqüente e na própria prática delituosa, tomada como um dado, a Criminologia Crítica volta-se para a questão de por quê determinadas pessoas serem consideradas criminosas. Nesse contexto, o foco é o próprio sistema de controle, partindo do pressuposto de que todos os indivíduos pertencentes à sociedade apresentam comportamentos e características desviantes, mas que apenas alguns desses comportamentos são apreendidos pelo sistema penal e considerados crimes.

Nesse sentido, cabe reformular o questionamento: por que a criminalização das mulheres tem aumentado? Levando-se em conta que a tese de que as causas determinantes para esse aumento tem relação direta com a emancipação da mulher, conquista de direitos e sua inserção no mercado de trabalho (chamada Teoria Liberacionista) se mostrou insuficiente para dar conta do fenômeno, pelas razões já elencadas na crítica feita a Adler e Simon, uma nova gama de explicações tem surgido. Uma delas é a ligação entre o aumento da criminalização feminina e a consolidada política global e hegemônica de guerra à drogas. Essa é uma das teses defendidas pela Professora Ela Wiecko[6], que afirma que a maior parte das presas brasileiras foi condenada ou está sendo processada por tráfico de droga, sustentando que uma mudança nessa política poderia reverter o quadro de crescente criminalização feminina. A criminóloga estabelece uma relação desse fenômeno também com a própria discriminação de gênero. Segundo Castilho, o sistema penal recai com maior gravidade sobre a mulher delinquente, que se afastou com mais intensidade do estereótipo cultural feminino passivo, dócil, submisso e bem comportado, como o de uma "mãe". A Professora Ela extrai três conclusões sobre a investigação das causas do aumento da criminalização feminina. A primeira delas é a de que a inserção das mulheres pobres no mercado das drogas revela dificuldade de inserção no mercado de trabalho lícito e, ainda, a forte desigualdade existente entre mulheres e homens no que diz respeito à sua inserção nesses dois espaços. Em segundo lugar, a elevada criminalização pelo tráfico de drogas leva ao questionamento da política de guerra às drogas, pela severidade com que recai sobre o pequeno traficante e usuário. E, por fim, na individualização e execução das penas as diferenças entre homens e mulheres devem ser observadas sim, de modo a não negar a identidade feminina e ao mesmo tempo não reforçar padrões estereotipados culturalmente estabelecidos na sociedade.


3. EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

Antes de proceder ao exame da execução da pena privativa de liberdade cominada à condenada, cabe ratificar: segundo a Constituição Federal, pessoa presa é pessoa humana. Se o é, devemos nos perguntar: como pode ter seus direitos restringidos, ainda por cima de forma legal? A justificativa vem da necessidade de proteção de determinados bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Nesse contexto, o direito penal representa uma elevada e distinta tutela constitucional de bens jurídicos com alto valor social. Os fundamentos da pena são a retribuição da culpabilidade (noção de “justiça”) e prevenção de novos delitos (especial – em relação ao indivíduo que cometeu o delito; ou geral – em relação a toda a sociedade).

3.1. GARANTIAS NORMATIVAS

Liberdade e privacidade são alguns dos direitos restringíveis, por meio da pena privativa de liberdade - outros direitos inerentes à pessoa humana, em tese, estariam a salvo da restrição, pelo princípio da legalidade. No entanto, a realidade do que ocorre no sistema carcerário é tão destoante que houve a necessidade de promulgação de uma lei para reafirmar os direitos humanos do preso: Lei de Execuções Penais (7.210/84). Em seu art. 41 a LEP concentra direitos do preso em geral, de forma não exaustiva. Traz a reafirmação de direitos básicos, como alimentação, vestuário e petição ou representação. Especifica outros direitos, como a informação, assegurando a emissão anual de atestado de pena a cumprir. O art. 10 impõe ao Estado o dever de assistência ao preso, mencionando especificamente as assistências material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Com relação à assistência à saúde, existe também um Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (Portaria Interministerial n.º 1.777/03), voltado apenas para presos condenados (em fase de execução da pena), que visa implementar a atenção integral, contínua e de boa qualidade à saúde da pessoa presa, mencionando expressamente a saúde da mulher.

No que concerne aos direitos específicos da presa elencados na LEP, podemos citar os seguintes: acompanhamento médico pré-natal e pós-parto (art. 14, § 3º); ensino profissional adequado à sua condição (art. 19, parágrafo único); estabelecimento penal próprio, adequado à sua condição (art. 82, § 1º); pessoal do estabelecimento penal para mulheres deve ser do sexo feminino (art. 77, § 2º); adaptação do estabelecimento à necessidades da mulher gestante ou com filhos, fornecendo infraestrutura de berçário para amamentação por no mínimo seis meses após o nascimento (art. 83, § 2º; art. 89).

3.2. REALIDADE

O Relatório da Organização dos Estados Americanos sobre encarceramento feminino no Brasil[7] é taxativo ao afirmar:

“O Estado brasileiro não tem garantido, em detrimento do que dispõe seu ordenamento jurídico, condições adequadas para o cumprimento de pena de privação de liberdade nas instituições fechadas no país”.

Nesse contexto, dentre as condições degradantes do sistema carcerário feminino encontram-se superlotação, insalubridade e inadequação do espaço físico. O Relatório da OEA informa que a Penitenciária de Sant’Ana, em São Paulo, a maior da América Latina, abriga 2500 presas, quando sua capacidade máxima é de 1200. A quantidade de estabelecimentos penais exclusivamente femininos é ínfima, fazendo com que boa parte da população carcerária feminina se encontre em delegacias, cadeias públicas ou alas separadas dentro de penitenciárias masculinas. A título de exemplo, pode-se descrever a situação da Cadeia Pública de Indiaporã: 90 presas (capacidade para 48), não possui colchões, não dispõe de água corrente constante, não possui medicamentos, presença de sujeira, umidade e calor excessivos; banheiros “impróprios” (escassos vasos sanitários e inúmeros mictórios próprios para uso de homens).

Acrescenta-se ao cenário o fato de serem as mulheres presas vítimas de violência psicológica e física, como ameaças e agressões. Com efeito, episódios de violência coletiva, como rebeliões e espancamentos coletivos, são menos comuns do que nas penitenciárias maculinas. Ameaças, castigos físicos e humilhações individuais são recorrentes na maior parte das unidades prisionais, muitas vezes cometidas por agentes públicos. Há também que se falar na violência sexual, representada pela coação de funcionários e presos do sexo masculino. Embora haja vedação expressa da LEP, ainda há muitas unidades prisionais femininas em que trabalham funcionários do sexo oposto. Na penitenciária de Mesquita, no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não há carcereiras mulheres. Ademais, em cadeias mistas a separação de alas muitas vezes não funciona corretamente, sendo comum verificar contato entre homens e mulheres, criando condições para incidentes de violência sexual.

Com relação ao acesso à assistência à saúde, prevista na LEP, a inconformidade com o ordenamento é notória em praticamente todo o sistema: carência de equipe médica e medicamentos; ausência de controle e prevenção de doenças; dificuldade para atendimento fora da unidade (motivada pela falta de escolta policial); inexistência de produtos de higiene pessoal; propagação de Doenças Sexualmente Transmissíveis; alto índice de doenças mentais (propiciado pela própria condição de isolamento e agravado pela falta de assistência).

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4. CONCLUSÃO

Por tudo que foi aqui discutido, pode-se entender que há muito ainda a evoluir sobre a questão do encarceramento feminino no Brasil. O fenômeno do aumento da criminalização feminina é preocupante, pois se destaca mesmo em uma sociedade que já possui uma alta demanda por uma política criminal expansionista, mais incriminadora. Dessa forma, compreender os processos de seletividade do sistema penal, principalmente nas questões de gênero, é essencial para conter os ímpetos incriminadores da sociedade, preservando o caráter subsidiário do Direito Penal. Por outro lado, verifica-se que a execução penal também está muito aquém do que preconiza nosso ordenamento jurídico. Impera a necessidade de políticas públicas que visem à realização concreta dos direitos previstos na Lei de Execuções Penais, sobretudo dos direitos específicos das mulheres presas, sobre as quais as máculas do sistema penal tendem a recair com maior gravidade e intensidade.


BIBLIOGRAFIA

CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL - CEJIL e OUTROS. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Fevereiro/2007. Disponível em: http://asbrad.com.br/conte%C3%BAdo/relat%C3%B3rio_oea.pdf. Último acesso em: 14/07/2011.

Dados Consolidados do Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça – 2008/2009. Disponível em:http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624 D28407509CPTBRNN.htm. Último acesso em: 14/07/2011.

ESPINOZA, Olga. A Prisão Feminina desde um Olhar da Criminologia Feminista. In: Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias,1(1): pp. 35-59, Jan-Dez./2002. Disponível em: https://www.ucpel.tche.br/ojs/index.php/PENIT/article/viewFile/34/33. Último acesso em: 14/07/2011.

ESPINOZA, Olga. Mulher Encarcerada em Face do Poder Punitivo. São Paulo, IBBRIM, 2004.

FONSECA, L. G. D.; RAMOS, L. S. A feminilidade encarcerada: o sistema prisional feminino no Brasil. São Paulo: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2008 (Revista), pp. 169-174.


Notas

[1] Fonte: Dados Consolidados do Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça – 2008/2009.

[2] Dados de 2006 apresentados no Relatório Final do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre “Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino”, Brasília: Dezembro/2007. Retirados do artigo: FONSECA, L. G. D. ; RAMOS, L. S. . A feminilidade encarcerada: o sistema prisional feminino no Brasil. São Paulo: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2008 (Revista).

[3] LOMBROSO e FERRERO apud ESPINOZA, Olga. Mulher Encarcerada em Face do Poder Punitivo. São Paulo, IBBRIM, 2004.

[4] ESPINOZA, Olga. A Prisão Feminina desde um Olhar da Criminologia Feminista. In: Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias,1(1): pp. 35-59, Jan-Dez./2002.

[5] ESPINOZA, Olga. A Prisão Feminina desde um Olhar da Criminologia Feminista. In: Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias,1(1): pp. 35-59, Jan-Dez./2002.

[6] Palestra proferida no I Encontro Nacional sobre Encarceramento Feminino, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 29 de junho de 2011.

[7] Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional, CEJIL, e OUTROS. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Fevereiro/2007.

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Sobre o autor
Rafael Monteiro de Castro Nascimento

Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e analista do Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Rafael Monteiro Castro. Encarceramento feminino:: a seletiva porta de entrada e a distorção “realidade-garantias” do sistema penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4788, 10 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51192. Acesso em: 18 abr. 2024.

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