Introdução
O texto tem por objetivo marcar a passagem dos 35 anos do julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 1.000, no qual o Supremo Tribunal Federal brasileiro, em 1981, julgou constitucional o artigo 38 da Lei nº 6.515/77, o qual limitava o pedido de divórcio a uma só vez por pessoa. A situação é apresentada no contexto jurídico da época, com destaque para as críticas do Senador Nélson Carneiro e do Jurista Saulo Ramos ao texto legal, além de serem demonstrados os entendimentos de cada um dos Ministros que na ocasião compunham o Pleno do Tribunal. Por fim, são feitas breves considerações sobre a inexistência de uma postura “Ativista” na ocasião e ainda sobre a Lei datada de 1989 que extirpou o dispositivo do ordenamento brasileiro.
Para tanto apresentemos a situação no contexto jurídico da época, com destaque para as críticas ferrenhas feitas pelo Senador Nélson Carneiro e pelo Jurista Saulo Ramos ao aludido dispositivo.
A seguir, são demonstrados em detalhes os entendimentos de cada um dos Ministros que na ocasião compunham o Pleno do Tribunal.
Por fim, são feitas breves considerações sobre a inexistência de uma postura “Ativista” na ocasião do julgamento, a qual poderia, supostamente, influir na análise do caso, além de ser exposta a forma como o aludido dispositivo foi extirpado do ordenamento brasileiro.
Há pouco mais de 35 anos, precisamente no dia 20 de Maio de 1981, ocorria no Brasil um dos capítulos mais interessantes da chamada “Luta Pelo Divórcio”, expressão cunhada pelo saudoso Senador Nélson Carneiro: o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Representação de Inconstitucionalidade nº 1000-7, na qual se discutiu o famoso artigo 38 da Lei 6.515/77, a chamada “Lei do Divórcio”.
Editada em 26 de Dezembro, após oito décadas de uma discussão que remonta à Constituinte Republicana de 1890, a Lei do Divórcio fulminou a figura do “Desquite”, o qual dissolvia a sociedade conjugal, permanecendo os cônjuges casados. Esta foi substituída pela “Separação”, a qual também dissolvia a sociedade conjugal, abrindo porém a possibilidade de dissolução futura do vínculo conjugal, após um certo tempo.
A dissolução do vínculo conjugal, frise-se, só acontecia nos casos de “Anulação” e “Nulidade” do Casamento ou obviamente pela morte do cônjuge. A Lei, na verdade, acrescentou uma quarta modalidade de dissolução do vínculo conjugal, o chamado “Divórcio por Conversão”, o qual perdurou até a Emenda Constitucional 66 de 2010.
Em suma, com o fim da figura do “Desquite”, as pessoas passaram a dissolver a sociedade conjugal com o processo de “Separação” (consensual ou litigiosa) e após alguns anos, dependendo do caso (vide artigos 25, 40 e 44 do texto legal) poderiam converter a Separação em Divórcio, ficando livres após para contraírem novas núpcias.
Embora a redação final do documento legal tenha sido duramente criticada por comentaristas como J. Saulo Ramos, Sílvio Rodrigues e tantos outros, pelos mais variados motivos, poucos artigos provocaram tanta polêmica, como o artigo 38 da Lei, o qual dispunha: “O pedido de divórcio, em qualquer dos seus casos, somente poderá ser formulado uma vez”.
Em seu livro de comentários – “O Divórcio e a Lei que o Regulamenta” (Editora Saraiva, 1978, págs. 178/180) – Sílvio Rodrigues afirmava ser este o “artigo mais controvertido da lei e decerto representava o último grito e a derradeira vitória da corrente antidivorcista”. Sem poupar adjetivos, o já sexagenário Professor da Faculdade de Direito da USP, taxava a regra de “retrógrada”, “reacionária”, “injusta” e “inconstitucional”, manifestando a mais absoluta certeza de que seria abolida em lei, na sua primeira reforma.
E completava, trazendo a regra para o plano prático: “O exemplo que tem sido muito adequadamente invocado para caracterizar a injustiça da regra é o do casamento de pessoa divorciada, com outra solteira ou viúva. Ora, em virtude do malsinado art. 38, este casamento jamais poderá ser dissolvido pelo divórcio, pois como um dos cônjuges já se divorciou uma vez, não pode fazê-lo novamente”. Essa solução, segundo Sílvio, negava ao consorte um direito que a lei lhe assegurava, ou seja, o de divorciar-se, se assim pretendesse. E assim finalizava: “Essa limitação, atentatória a uma prerrogativa, é injusta e é inconstitucional”, recomendando ao fim de suas considerações, a revogação do dispositivo.
No clássico “Divórcio à Brasileira” (Editora Brasília/Rio, 1978, págs. 102 e seguintes) José Saulo Ramos aduz: “A limitação do art. 38, além da redação indigente, é manifestamente inconstitucional, porque se não pode limitar, em lei ordinária, o exercício de direito consagrado na carta política. Ou a Constituição adota a dissolubilidade do vínculo, ou fica na indissolubilidade. Se a opção é a dissolubilidade, esta se dará toda vez que a condição constitucional se verificar”.
Este argumento, acrescemos, tem lugar, porque a Lei 6.515/77 só foi possível porque antes houvera alteração do texto constitucional, com a edição da Emenda Constitucional nº 9, de 23 de junho de 1977, a qual extirpara do texto da Carta em vigor a indissolubilidade matrimonial, contida no texto de todas as Constituições desde a Proclamação da República.
Nélson Carneiro, cujo falecimento completou recentemente 20 anos, em Palestra pronunciada no Instituto dos Advogados de Brasília, em Setembro de 1983, relembrou o caminho legislativo que levou à existência do dispositivo:
“Foi o Deputado Rubem Dourado que, ao justificar sua proposta de Emenda Constitucional, visando a tornar vitorioso o instituto, levantou a hipótese de não ser permitido ao cônjuge divorciado uma segunda oportunidade, se fracassada a nova união, mesmo que não ocorresse por ação ou omissão de sua parte. O Congresso preferiu aprovar a Emenda no. 9, que deixava à lei a regulamentação do dispositivo inserido na Carta Constitucional. No Senado, coube ao Senador antidivorcista Benedito Ferreira oferecer Emenda ao projeto de lei, de modo a incluir em seu texto que ‘a faculdade de recorrer ao divórcio só poderá ser utilizada por um mesmo requerente, uma única vez’. A redação era correta, o objetivo é que contrariava o instituto. Repelida na Câmara Alta, a dos Deputados restabeleceu a Emenda, com a redação atual, flagrantemente defeituosa (...) e foi assim adotado pelo Senado Federal, por vinte dois votos a dezenove, apesar da tenaz oposição que oferecemos (...)” (In. CARNEIRO, Nélson. “Palavras, Leva-as o Vento” – Volume IX, Gráfica do Senado Federal. Brasília-DF, 1984, pág. 565).
Na mesma Palestra, o Senador faz um apanhado dos juristas que apoiavam seu ponto de vista e vaticinava vindoura retirada de nosso ordenamento deste dispositivo, nestes termos:
“Consola-nos verificar que o ponto de vista que então denodadamente defendemos merece o apoio de ilustres comentadores da lei; como Limongi França, Silvio Rodrigues, J. Saulo Ramos, Murilo Fábregas, Domingos Sávio Brandão Lima, Yussef Sahid Cahali, Divaldo Montenegro, Aramy Dornelles da Luz, Edísio Gomes de Matos, Pedro Sampaio, Otto Lehmann, Waterloo Marchesini Júnior, Antonio Macedo de Campos, Celso Ribeiro Bastos e José Afonso da Silva. Mas foi o eminente Senador Paulo Brossard quem, no momento mesmo que tal regra era incluída na futura lei, para ela previu breve existência. (...) Por tudo isso esse famigerado dispositivo tem pernas curtas. Ao prefaciar recentemente La reforme de la filiation, Carbonnier previne: ‘a longevidade de um texto depende sempre da dose de modernidade que nele se contém’. Não tardará muito que a proibição do art. 38 seja revogada por absurda e colidente com o instituto. Resta saber se o primeiro a derrubá-la será o juiz ou o legislador” (op. cit. págs. 565-566)
Uma oportunidade “para o Juiz” ocorreu há pouco mais de 35 anos. Na ocasião, a Procuradoria Geral da República, ocupada então por Henrique Fonseca de Araújo (1913-1996), acolhendo solicitação da advogada Maria Lúcia D´ávila, apresentou, com base no artigo 119, inciso I, alínea “L” da Constituição de 1969, uma Representação de Inconstitucionalidade em vista do “famigerado” artigo 38 da Lei do Divórcio, a qual na Suprema Corte tomou o (inesquecível) número 1.000 (mil).
A RP 1000-7, para sermos mais exatos, foi a julgamento no dia 20 de Maio de 1981, estando o STF sob a Presidência do Ministro Xavier de Albuquerque, falecido em Abril de 2015. Seu texto de onde foram retiradas as citações seguintes pode ser encontrado no site da Suprema Corte (www.stf.jus.br).
Em seu relatório, o Ministro Décio Miranda (1916-2000) informa que, após apresentada a arguição de inconstitucionalidade do art. 38 da Lei 6.515/77, foram solicitadas informações aos Exmos. Srs. Presidente do Senado Federal e Presidente da República.
Prestou-as em primeiro lugar o Senador Petrônio Portella, o qual à época do julgamento já havia falecido, precocemente, em 1980, aos 54 anos de idade, tendo o feito através de “pormenorizado histórico do andamento das proposições que se converteram” na Emenda Constitucional n. 09 e na Lei 6.515/77, conforme acentua o relatório.
Em suas informações, o General Ernesto Geisel, então Presidente da República (1907-1996), declarava-se ciente de que o citado dispositivo “era suscetível de questionamento”, todavia “coerente com a posição de neutralidade notoriamente assumida diante do mencionado projeto, de inspiração parlamentar, considerou o Presidente da República mais razoável que um veto, igualmente discutível, acolher a opinião do Congresso Nacional, deixando o deslinde da polêmica ao Egrégio Supremo Tribunal Federal”.
O próprio Sr. Procurador Geral – Henrique Fonseca de Araújo – apreciando o mérito da arguição (embora não fosse mais o PGR ao tempo do julgamento da RP 1000), manifestou-se pela constitucionalidade da norma, o que fez nos seguintes termos: “Dois são, em resumo, os vícios, de constitucionalidade apontados no dispositivo em causa: limitação de um direito assegurado pela Constituição, sem autorização para tal, em face dos termos em que está redigido o preceito, e, violação do princípio da isonomia, eis que a uns permitiria o segundo casamento, e a outros o negaria, no caso de matrimônio de um solteiro ou viúvo com pessoa divorciada.”
Para o PGR o pequeno debate suscitado quando da votação do Projeto no Senado não deixava dúvidas de que o propósito da Emenda que alterava o texto legal seria o de proibir em qualquer caso o terceiro casamento.
Entrando no mérito da discussão, o PGR, forte em José Afonso da Silva, afirma seu entendimento no sentido de afastar a alegação de que o dispositivo importaria em limitação não autorizada pela Constituição, por tratar-se o art. 38 da Lei do Divórcio de norma de “eficácia limitada”, na qual o legislador constituinte limita-se a traçar esquemas gerais sobre o assunto, incumbindo ao legislador ordinário a complementação do que foi iniciado, segundo a forma, critérios e requisitos, as condições e circunstâncias previstas na norma mesmo.
E conclui sobre este ponto, afirmando que o artigo 175, §1º não proclamou o princípio da dissolubilidade do matrimônio, mas sim declarou que o casamento poderia ser dissolvido nos casos expressos em lei, deixando, pois, ao legislador ordinário disciplinar a matéria, fazendo somente uma exigência, essa sim uma limitação ao legislador ordinário, desde que o casal estivesse separado judicialmente por mais de três anos.
Dessa forma, e sob esse prisma, não haveria impedimento de ordem constitucional para que o legislador ordinário limitasse a possibilidade a um único divórcio, tratando-se, segundo o PGR, de um “critério de conveniência” do legislador, não uma “hipótese de inconstitucionalidade”.
Quanto à violação ao Princípio da Isonomia, o PGR adotou uma interpretação teleológica da norma, a qual, indiscutivelmente, teve em mira impedir um terceiro casamento, conforme decorre das transcrições dos trabalhos parlamentares.
Diz Henrique Fonseca de Araújo:
“Efetivamente o disposto no art. 38 da Lei nº 6.515/77 deve assim ser entendido, e fácil é chegar-se a tal entendimento, na aplicação da norma, sem violar o princípio da isonomia. Não é novidade entre nós, dar-se a uma sentença, caráter e efeitos diversos, relativamente aos cônjuges. No casamento putativo, se só um dos cônjuges estava de boa-fé, só quanto a ele produzirá todos os efeitos legais, apesar de anulado. Nas homologações de sentenças de divórcio, declarado no estrangeiro, ressalvava-se seus efeitos quanto ao cônjuge brasileiro, que não poderia contrair novas núpcias, enquanto ao estrangeiro se admitia, desde que não no Brasil. (...) Assim, não se estará violando o preceito legal, mesmo no caso de um casamento entre um solteiro ou solteira, com uma divorciada ou divorciado. Em relação aos primeiros, nenhum impedimento haveria para contrair o segundo casamento, pois, obtida a separação judicial e decorrido o prazo de três anos, poderia pedir a conversão de separação em divórcio, para efeito de um segundo casamento, pois seria o primeiro pedido de divórcio e, obedecida estará a lei quando diz que só poderá ser formulado uma vez. Apenas a sentença que decretar a conversão, tornará expresso que, em relação ao já anteriormente divorciado, produzirá tão só os efeitos da separação, impedido novo casamento, que seria o terceiro”.
Na opinião do PGR, o qual entendia que o divorciado não ficaria impedido de requerer uma separação judicial, sem poder, no entanto, requerer sua conversão em divórcio, em ambos os casos, estar-se-ia cumprindo rigorosamente o preceito legal, sem atentar contra o Princípio da Isonomia.
E conclui seu parecer no sentido de que entendia ser incumbência do legislador, em face dos resultados da aplicação da norma, assim entendida, alterá-la ou não, inexistindo razão para que se antecipasse o Poder Judiciário, não só porque seria possível dar à norma entendimento que se concilia com a Constituição, mas também porque segundo doutrina e jurisprudência vigorantes à época, somente se deveria declarar a inconstitucionalidade quando ela se apresentasse fora de toda a dúvida.
O primeiro voto, e pela inconstitucionalidade do art. 38, foi o do Relator Min. Décio Miranda (1916-2000), o qual em longa e detalhada digressão, analisou o dispositivo sob três prismas, os quais classificou: (a) pela literalidade da norma; (b) pelo entendimento supletivo e (c) pelo entendimento processual.
Pelo entendimento literal, disse o Relator, a norma soava exatamente como se exprimem suas palavras, ou seja, o pedido de divórcio somente poderia ser formulado uma vez.
Além do mais destacava a Emenda Constitucional nº 9/77, a qual autorizava que o casamento somente poderia ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que houvesse separação judicial por mais de três anos. Logo, além da condição de prévia existência de separação por mais de três anos, que a lei não podia dispensar, por estar expressa na própria Carta Constitucional, poderia o legislador ordinário exprimir os casos em que autorizaria a separação, estando a agir dentro da fórmula constitucional, designando um caso em que o casamento não poderia ser dissolvido.
O entendimento dito “supletivo”, segundo suas palavras, era o apresentado pelo PGR, pois o que se impedia era a formulação do segundo pedido de divórcio pela mesma pessoa, buscando impedir-se que o cônjuge já anteriormente divorciado, obtendo um segundo divórcio, contraísse um terceiro casamento.
Ou seja, a separação consensual seria de ambos, mas, no momento de requerer-se o divórcio, a iniciativa processual seria apenas do cônjuge não atingido pela proibição, o que seria facultado pelo artigo 35 da Lei do Divórcio.
Enfim, alega o Ministro Relator, “no entendimento supletivo, o texto legal salvar-se-ia da pecha de inconstitucionalidade, por uma releitura, mediante a qual se admite ao anteriormente divorciado uma segunda formulação do pedido (ainda que apenas da separação consensual), com a restrição, porém, de impedir terceiro casamento ao divorciado pela segunda vez”.
Por último o relator discorre sobre o que chama de “entendimento processual”, no qual, “não se vê nem se considera o que ocorre depois do segundo pedido de divórcio, em que um dos cônjuges já era anteriormente divorciado”. Admite-se que o art. 38 apenas estabelece um caso de ilegitimidade de parte para quem, já tendo pedido divórcio uma vez, formule um segundo pedido, ficando ressalvado ao outro cônjuge fazê-lo. Ou melhor, não se trataria de ilegitimidade da parte, mas de hipótese de impossibilidade jurídica do pedido.
E acresce: “Impossibilitado juridicamente o segundo pedido, àquele que anteriormente pedira divórcio, ficaria restrita a possibilidade jurídica da ação de divórcio ao outro cônjuge, e não passaria daí a restrição. Se é o outro cônjuge que formula o pedido, o divórcio pode ser decretado, e nenhuma regra impede o segundo casamento de um e o terceiro casamento de outro”.
Dessa forma, a restrição somente funcionaria quando ambos os cônjuges houvessem anteriormente requerido divórcio do respectivo anterior casamento.
Nenhuma dessas colocações, no entanto, segundo o Relator, “consegue esconder o artificialismo da solução, sob o ponto de vista da constitucionalidade da norma”.
Na primeira hipótese estaria ferido o princípio da isonomia, porque as condições do primeiro divórcio, em princípio permitido a todas as pessoas, seriam diferentes para algumas, por motivo que não lhes dizia respeito.
Na segunda hipótese, considera o Relator que a lei ordinária poderia fazer outras restrições, o que decorre das palavras “nos casos expressos em lei”, mas tais casos não poderiam, contudo, “marcar com o estigma da desigualdade um dos cônjuges”.
Quanto ao entendimento “supletivo”, o Relator considera insustentável a providência de substituir a regra que o legislador escreveu, por outra que daquela profundamente difere, no sentido e nos efeitos. Neste ponto, o Relator entende que o raciocínio do PGR “não parece válido, pois conduziria a admitir segunda formulação de pedido de divórcio de dois cônjuges anteriormente divorciados, desde que proibidos de convolar terceiro casamento, o que, positivamente, foge aos termos nítidos do questionado art. 38.”
Demais, conclui o Relator:
“se se visa conceder ao intérprete o poder de imaginar finalidade consentânea com os propósitos da lei, nesse caso, a permissão de divórcio com restrição de subsequente casamento constituiria flagrante contradição com um dos mais proclamados propósitos do legislador do divórcio, o de impedir a formação e a manutenção de uniões irregulares, à margem do sistema jurídico. Vedado apenas o terceiro casamento, e não o próprio segundo divórcio, o divorciado pela terceira vez, iria unir-se irregularmente a alguém, frustrando um dos desideratos do legislador.”
Afinal, ao tratar da interpretação chamada de processual, o Relator afirma que:
“por faltar possibilidade jurídica ao pedido quando feito pelo cônjuge já anteriormente divorciado, cair-se-ia em insuportável desigualdade entre os cônjuges, um sempre podendo dispor contra o outro da arma do divórcio, aquele inferiorizadamente despojado desta possibilidade. Aí, em lugar da desigualdade detrimentosa ao cônjuge casado pela primeira vez, estaríamos em presença de supremacia deste sobre o parceiro, um podendo impor ao outro, pela falta aos deveres conjugais, a futura dissolução do vínculo; o outro, casado pela segunda vez, mas inocente, não podendo passar da separação judicial”.
Em um exercício de interpretação sistemática, o Relator afirma que o discutido preceito está no Capítulo III da Lei – “Do Processo” - e não no Capítulo II (“Do Divórcio”), e aí poder-se-ia até imaginar, não fossem os debates parlamentares, que a regra não visaria evitar o segundo requerimento de cônjuge anteriormente divorciado, mas sim o segundo requerimento de divórcio na constância da mesma relação conjugal, mesmo que fundado em fatos subsequentes ao primeiro pedido.
Por fim, o Ministro Décio Miranda vaticina que o dispositivo, em fase de “tanta imprecisão e incerteza”, será, na prática, causa de “intermináveis disputas interpretativas” e que “nenhuma dessas interpretações lhe retiraria a pecha de inconstitucionalidade”, julgando enfim inconstitucional o artigo 38 da Lei 6.515/77.
Acompanhou o entendimento do Relator o Ministro Clóvis Ramalhete (1912-1995), acrescentando que entendia o dispositivo incompatível com os artigos 175, §1º (trata do prazo de três anos de separação para obtenção do divórcio) e 153, § 1º (Princípio da Isonomia), ambos da Constituição Federal, pois em seu entendimento pareceu-lhe que os casos em que a Constituição autorizava o legislador ordinário a regulamentar, seriam fatos tidos por acusáveis e vividos na vida conjugal, tais como, adultério, abandono, sevícia, dentre outros capazes de ferir a continuidade do casamento.
Mais, diz o Ministro Ramalhete: “Ora, a Constituição outorgou ao legislador poderes para legislar sobre caso constitutivo do direito ao divórcio. Mas esse art. 38 não o estabeleceu. Ao contrário, legisla impedimento ao divórcio”
E segue em sua exposição, complementar ao voto do Relator, afirmando que a Constituição delegou ao legislador a definição dos casos de divórcio - até porque o artigo 38 fala que “o pedido de divórcio, em qualquer de seus casos, somente poderá ser formulado uma vez”. Estar divorciado, afirma o Ministro, não é um caso, mas sim um Estado Civil no qual ingressa o divorciado.
Arrematando seu pensamento, assevera: “Esses casos são aqueles em que os indivíduos possam vir a divorciar-se, mas não o em que não o possa. A Constituição dirigiu-se ao legislador para que este catalogue fatos imputáveis por um cônjuge a outro, mas não para estabelecer de algum modo essa limitação à dissolubilidade do vínculo conjugal”.
E encerra reputando inconstitucional o dispositivo, além de poder levar a “situações desesperadas”, uma vez que, por exemplo, o cônjuge já divorciado, vítima de tentativa de homicídio pelo outro cônjuge, não se poderia divorciar dele, nos termos do art. 38, “malfazejo”.
O voto do Ministro Clóvis Ramalhete foi o segundo e último a julgar o dispositivo inconstitucional. Na verdade seu voto foi proferido logo após o do Ministro Moreira Alves (1933-) o qual abriu a divergência logo após o voto do Ministro Relator, sendo depois seguido pelos demais componentes da Sessão, conforme expomos a seguir.
Moreira Alves em seu voto considerou, em sentido totalmente contrário ao voto do Relator, que a única exigência imposta pela Constituição é que houvesse prévia separação judicial por mais de três anos, quanto ao mais, estaria livre o legislador ordinário para disciplinar o divórcio a seu talante, podendo então estabelecer causas permissivas e impor requisitos, além do triênio de Separação contido na Constituição.
O texto Constitucional, diz o Ministro ao abrir a divergência, “não declara que o divórcio é irrestrito”, até mesmo porque contém ele mesmo uma restrição, podendo o legislador criar outras.
Além do mais, não haveria na opinião de Moreira Alves qualquer violação ao princípio constitucional da isonomia. “A regra restritiva é geral e igual para todos. Cada um só poderá se divorciar uma só vez”. E mais, afirmou que o solteiro ao se casar com divorciado já saberia que o matrimônio em causa não seria suscetível de divórcio. A impossibilidade, portanto, não viria de disposição discriminatória em tese oriunda da lei, mas sim, da vontade da parte.
Assim, julgou improcedente a representação.
O Ministro Rafael Mayer (1919-2013) – também votou pela constitucionalidade do artigo. Em termos muito semelhantes ao do primeiro voto divergente: “a atual Constituição diz que o casamento será dissolúvel nos casos expressos em lei. Deferiu-se ao legislador estabelecer os limites da dissolubilidade”. Não entendeu, portanto, que fosse inconstitucional a lei que estabelece casos, condições ou limites para essa indissolubilidade.
A seguir, o Ministro Soares Muñoz (1916-1991) seguiu a mesma linha da divergência aberta pelo Min. Moreira Alves. Em seu entendimento, permitia a norma constitucional que a lei ordinária instituísse o divórcio, mas somente nos casos nela previstos. “Dessa permissão não se excedeu o art. 38. Trata-se de impedimento de segundo divórcio, que, à semelhança dos impedimentos ao matrimônio, se enquadra no âmbito da legislação ordinária.”
Anotou ainda que o impedimento do uso “leviano” do divórcio é acolhido em vários países, citando casos da legislação Cubana, de El Salvador, Uruguai e Venezuela.
Logo depois veio o voto do Ministro Cunha Peixoto (1911-1989), que se aposentaria no final daquele ano. Este afirma não ver onde a lei fere os dispositivos constitucionais mencionados, pois o próprio disposto do art. 175 da Carta Magna condiciona o divórcio à existência de lei expressa. Destaca trechos dos votos dos Ministros Soares Muñoz e Moreira Alves e também vota pela rejeição da arguição de inconstitucionalidade.
O Ministro Cordeiro Guerra (1916-1993) ao rejeitar a arguição, também com base no fato de a Constituição prever o divórcio nos casos expressos em lei, não deixa de tecer curiosas críticas à adoção da legislação divorcista, externando uma postura que pode ser considerada conservadora, afirma:
“nos tempos em que a Igreja Católica dominava os corações e os espíritos e não se preocupava com os fenômenos temporais, fazia preponderar o princípio ético da indissolubilidade do vínculo. Na fase melancólica do seu enfraquecimento, ao momento em que ela perdeu o que os franceses chamam ‘l´emprise des âmes’, no momento em que se passou a não acreditar mais na vida eterna, a Constituição admitiu o divórcio (...), mas não se admitiu com largueza, uma largueza que abala os fundamentos da família e acelera a dissolução dos costumes (...). Quando estabelece que poderá o casamento ser dissolvido nos casos expressos em lei, a Lei do Divórcio diz quais são esses casos. E não diz que poderá ser praticado sucessivamente (como dízima periódica)...”
O Ministro Leitão de Abreu (1913-1992) foi o que votou depois, entendendo que não haveria conflito com o princípio da isonomia, pois, a regra que limitava o divórcio a uma só vez vale para o cônjuge divorciado que contrai novas núpcias e para o cônjuge não divorciado, caso venha a divorciar-se. Logo o princípio da limitação do divórcio valeria para ambos.
Ademais, segue a linha de pensamento no sentido de que a Constituição Federal não teria limitado a atuação do legislador ordinário.
O Ministro Antonio Neder (1911-2003), votou em seguida, a curiosos 20 dias da sua aposentadoria da Suprema Corte. E seguiu os votos divergentes pela constitucionalidade do dispositivo, considerando que o intuito do constituinte foi o de proibir o exercício abusivo do novo direito.
Daí a cláusula que diz nos casos expressos em lei, a qual confere ao legislador o poder de restringir o direito ao divórcio.
Em um curtíssimo voto, o Ministro Djaci Falcão (1919-2012), também entende que o artigo 38 da lei divorcista, com base em um critério de conveniência e obedecendo até o sentido finalístico do §1º do art. 175, estabeleceu uma limitação que não afeta, por outro lado, o princípio da isonomia.
Por fim, o Presidente da Corte, Ministro Xavier de Albuquerque, (1926-2015), estando já o placar definido em favor da constitucionalidade do art. 38, profere um curto, porém interessante voto, em que afirma que os votos vencidos do eminente Ministro Relator e do Ministro Clóvis Ramalhete, em suas linhas dialéticas e exegéticas, aproximavam-se mais de seu pensamento, mas não teria conseguido dissipar a dúvida, que ainda guardava, sobre a alegada inconstitucionalidade. “E porque permanece dúvida, a respeito, em meu espírito, não posso, segundo a doutrina corrente, expungi-la do Direito brasileiro sob o fundamento de ser inconstitucional”.
Não podemos encerrar este breve apanhado histórico sem imaginar algumas colocações e questionamentos cujas respostas hão de ser buscadas em avanços futuros sobre este tema e sobre este acórdão.
Evidentemente quando do julgamento da RP 1000, em 1981, nem se cogitava de a Suprema Corte adotar algum tipo de postura “Ativista”, supostamente invadindo competências atribuídas a outros Poderes devido a uma também suposta inoperância do Legislativo, ou mesmo da necessidade de os Ministros do Supremo tornarem a letra da lei efetiva e em conformidade com a Constituição.
Se na ocasião a Suprema Corte tivesse decidido pela inconstitucionalidade do artigo 38 da Lei 6.515/77, teria sido esta uma decisão marcada pelo “Ativismo”? Ou teria sido uma apenas uma interpretação no sentido de não ser afrontado o Princípio da Isonomia, como defendido pelos Ministros que votaram a favor da RP?
Mais, se este julgamento tivesse lugar nos dias de hoje, será que a decisão seria a mesma? Em outras palavras, o julgamento da RP 1000 foi um julgamento típico de um antigo modo de julgar do nosso Supremo Tribunal Federal, o qual encontrar-se-ia hoje totalmente superado?
Fato é que a Corte assim decidiu na época, com maioria expressiva (9 x 2, embora o Ministro Presidente tenha manifestado grande dúvida no voto que encerrou a sessão de julgamento). O artigo 38 era constitucional.
De qualquer modo tinha razão o Senador Nélson Carneiro: o dispositivo seria extirpado, pelo juiz ou pelo legislador.
Doze anos após entrar em vigor, deixou o artigo 38 de existir. Encarregou-se disso a Lei 7.841/89, cujo Projeto de Lei fora assinado pelo próprio Senador Nélson e que, quando promulgada, foi assinada pelo Presidente José Sarney e por seu Ministro da Justiça, exatamente um dos grandes críticos do texto legal desde o seu nascedouro, José Saulo Ramos.
Era a “gota d´água”, famosa figura usada pelo Senador Martinho Garcez, o qual defendeu o divórcio na Constituinte Republicana de 1890, e que foi adotada pelo Senador Nélson Carneiro com uso marcante no discurso que fez no Congresso Nacional após a aprovação da Lei de 1977; gota d´água que, jamais cessando de cair, afunda rochas e perfura montanhas.