A proteção do particular contratado diante da inadimplência contumaz da administração pública no âmbito dos contratos administrativos

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19/09/2016 às 15:14

Resumo:


  • O particular contratado pode proteger sua saúde financeira e satisfazer seu crédito diante da inadimplência da Administração Pública contratante, utilizando-se da "exceptio non adimpleti contractus" e da função social dos contratos.

  • A Lei nº 8.666/1993 permite a suspensão das obrigações do contratado após 90 dias de atraso nos pagamentos pela Administração, não sendo necessária ação judicial para tal suspensão, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

  • Para a rescisão do contrato administrativo pelo inadimplemento da Administração ou para a suspensão das obrigações antes dos 90 dias de atraso, o contratado deve buscar a tutela jurisdicional, comprovando a impossibilidade ou onerosidade excessiva do cumprimento do contrato devido à conduta da Administração.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Estudo acerca das possibilidades colocadas à disposição do particular contratado para preservação de sua saúde financeira diante da inadimplência contumaz da Administração Pública contratante.

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO

O núcleo do presente trabalho consiste na análise das possibilidades colocadas à disposição do particular contratado para sua proteção ante a inadimplência da Administração Pública contratante, o que se fará à luz da Teoria Geral dos Contratos e, especificamente, pelo estudo dos princípios da “exceptio non adimpleti contractus” e da função social dos contratos.

Buscar-se-á, entretanto, delimitar a abrangência do trabalho ao estudo dos contratos administrativos propriamente ditos, isto porque é nesta espécie de contrato da Administração que se verifica maior controvérsia acerca da relativização dos direitos do particular contratado em decorrência da posição de preponderância do Poder Público na relação contratual, como se demonstrará ao longo de seu desenvolvimento. Igualmente, caso não houvesse tal delimitação, haveria importante prejuízo à objetividade exigida para a produção de resultado útil da pesquisa à sociedade.

Delimitada a abrangência do tema, o estudo a ser desenvolvido detalhará a necessária distinção entre as principais espécies de contrato da Administração segundo a literatura jurídica para, então, abordar os principais conceitos e discussões formulados acerca da “exceptio non adimpleti contractus” e da função social dos contratos, além da aplicabilidade de tais institutos no âmbito dos contratos administrativos, principalmente como forma de restabelecer a justiça contratual diante da inadimplência contumaz da Administração Pública contratante.

Salienta-se que o problema que o presente trabalho buscará enfrentar diz respeito aos efeitos, nas contratações públicas, da importante crise de adimplemento verificada nos âmbitos privado e público em decorrência do atual cenário de deterioração do quadro econômico em nível nacional. É que a Administração Pública, valendo-se de sua posição de privilégio nos contratos administrativos, tem deixado de adimplir tais contratos em benefício de prioridades diversas e em injustificado prejuízo ao particular contratado. Faz-se necessário, assim, esclarecer se tal conduta é compatível com a proteção do interesse público comumente invocado como justificativa para a inadimplência ou se, ao contrário, está em desacordo com a atuação esperada do Poder Público. Além disso, e para que se alcance o núcleo do presente trabalho, mostra-se imprescindível analisar a extensão dos privilégios conferidos pela Lei à Administração Pública nos contratos administrativos.

Destarte, já no capítulo a seguir, o presente trabalho buscará uma definição precisa para os contratos administrativos, de forma a permitir distingui-los de outras espécies de contratos, além de discorrer sobre as principais prerrogativas conferidas à Administração contratante sobre o particular contratado.

No terceiro capítulo, desdobrar-se-á o princípio da “exceptio non adimpleti contractus” e a sua aplicabilidade no âmbito dos contratos administrativos segundo a legislação em vigor, a jurisprudência e a literatura jurídica sobre o tema. Também, discutir-se-á a extensão de sua oponibilidade, pelo particular contratado, diante da inadimplência contumaz da Administração Pública contratante.

O quarto capítulo deste trabalho discorrerá sobre a função social dos contratos e a sua invocação como garantia da manutenção da justiça contratual nos ajustes de natureza administrativa. Ao longo do aludido capítulo, far-se-á importante abordagem à noção de interesse público, de forma a distingui-la da noção de função social dos contratos, além de esclarecer em que ponto a conduta da Administração nos contratos administrativos deixa de ser justificada sobre legítimo interesse da coletividade e passa a violar a função social dos contratos.

No quinto capítulo, o núcleo do presente trabalho será finalmente abordado com base nos conceitos e fundamentos desenvolvidos nos capítulos antecedentes. No referido capítulo, serão abordadas as alternativas existentes à disposição do particular contratado com vistas a garantir sua proteção financeira e obter a satisfação de seu crédito ante a Administração Pública inadimplente.

Por derradeiro, o sexto capítulo do trabalho, em conclusão, sintetizará os principais pontos abordados ao longo do estudo, especificamente no que diz respeito à instrumentalização do direito do contratado à proteção e satisfação de seu crédito diante do Poder Público inadimplente, apresentando a análise crítica do pesquisador autor em relação ao problema apresentado.

 

CAPÍTULO 2 – OS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS E AS PRERROGATIVAS DA ADMINISTRAÇÃO

A partir do estudo consolidado de seus fenômenos, verifica-se que o Estado apresenta-se, no âmbito intrínseco, como ente personalizado capaz de adquirir direitos e contrair obrigações na ordem jurídica, definindo-se como pessoa jurídica de direito público interno, a teor do que dispõe o artigo 41, incisos I a III, do Código Civil Brasileiro. Assim, e considerando que o Estado deixa progressivamente a sua postura clássica, exclusivamente impositiva, para, hodiernamente e à luz da inspiração jurídica norte-americana, relacionar-se com seus administrados por meio de uma cada vez mais ampla parceria, tem-se nos contratos da Administração verdadeira expressão de consensualidade e de negociação, na medida em que se faz presente em tais instrumentos o acordo de vontades com objetivo determinado, elemento nuclear básico desse tipo de negócio jurídico, segundo a Teoria Geral dos Contratos. Veja-se a lição precisa do professor Caio Mário[1]:

Aqui é que se situa a noção estrita de contrato. É um negócio jurídico bilateral, e de conseguinte exige o consentimento; pressupõe, de outro lado, a conformidade com a ordem legal, sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato negocial, tem por escopo aqueles objetivos específicos. Com a pacificidade da doutrina, dizemos então que o contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com finalidade de adquirir; resguardar; transferir; conservar; modificar ou extinguir direitos. Dizendo-o mais sucintamente (...) podemos definir contrato como o “acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos”.

Na seara do Direito Administrativo, é importante salientar que, para maior parte dos autores administrativistas, a expressão “contratos da Administração” diz respeito a um gênero que designa todo e qualquer pacto bilateral em que seja parte a Administração Pública e do qual decorrem duas espécies de contratos, quais sejam, a dos contratos privados da Administração – também chamados contratos semipúblicos[2] – e a dos contratos administrativos. Embora sujeitem-se às mesmas condições e formalidades para estipulação e aprovação – como previsão orçamentária, prévio procedimento licitatório, publicação de extrato no órgão oficial e outros elementos fundamentais –, se a primeira espécie de contratos é regulada precipuamente pelas normas de direito privado e a Administração, na lição do professor Carvalho Filho[3], “situa-se no mesmo plano jurídico da outra parte, não lhe sendo atribuída, como regra, qualquer vantagem especial que refuja às linhas do sistema contratual comum”, na segunda espécie está-se diante de contratos regidos pelas normas especiais de direito público – conforme disposição do artigo 54 da Lei nº 8.666/1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública –, admitindo-se, nesta hipótese, instrumentos que instabilizem o vínculo jurídico em favor da Administração, que dele participa na qualidade de Poder Público. Nesta última espécie de contrato, definida pelo eminente professor[4] como “ajuste firmado entre a Administração Pública e um particular, regulado basicamente pelo direito público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma forma, traduza interesse público, há verdadeiro desequilíbrio na relação contratual em homenagem ao princípio da supremacia do interesse público, o que, de forma alguma, se confunde com sujeição total do contratado à Administração.  Segundo Augustín Gordillo[5], nos contratos administrativos há “um regime de direito público que busca satisfazer interesse público concreto a que o contrato deve servir, sem sacrificar os princípios superiores de justiça e equidade a que todo o Estado deve propender”. Tem-se, portanto, que, embora os princípios tradicionais da imutabilidade unilateral dos contratos – “lex inter partes” e “pacta sunt servanda” – não sejam absolutamente afastados, nos contratos administrativos sofrem relevante mitigação, justificando-se a posição preponderante da Administração pela busca à proteção de um interesse coletivo específico.

Nos contrato administrativos, a posição de superioridade da Administração em relação ao contratado fica evidenciada pelas prerrogativas que lhe são conferidas pela já mencionada Lei nº 8.666/1993, que, em seu artigo 58, prevê, em favor da Administração, a possibilidade de modificar e rescindir unilateralmente o contrato, fiscalizar sua execução, aplicar penalidades e ocupar provisoriamente os bens do contratado com vistas à proteção da continuidade de serviços públicos. Tais prerrogativas – também chamadas “cláusulas exorbitantes” ou, ainda, “cláusulas de privilégio” –, são posições que, nas palavras da professora Fernanda Marinela[6], “[...] em um contrato regido pelo direito privado, seriam cláusulas abusivas, ilícitas e, portanto, não lidas”.

Entretanto, é preciso ressaltar que os privilégios garantidos à Administração na celebração e na condução dos contratos administrativos não ficam restritos às hipóteses descritas no aludido dispositivo legal. É que outras prerrogativas explícitas ou implícitas poderão ter incidência sobre esta espécie de contrato da Administração e estão presentes em dispositivos esparsos da legislação. Uma dessas prerrogativas é, precisamente, a mitigação do princípio “exceptio non adimpleti contractus” – ou exceção do contrato não cumprido – em benefício do Poder Público contratante, sobre o que se discorrerá a seguir.

 

 CAPÍTULO 3 – A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO E A CONTUMAZ INADIMPLÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

            O princípio “exceptio non adimpleti contractus” – exceção do contrato não cumprido – encontra respaldo legal nos artigos 476 e 477 do Código Civil Brasileiro e constitui importante ferramenta colocada à disposição dos contratantes para resguardar o equilíbrio dos contratos bilaterais. Segundo este princípio, uma parte contratante não pode exigir da outra o cumprimento da obrigação contratual se ela própria estiver inadimplente. Para melhor compreensão do instituto, ensina o professor Carvalho Filho[7] que “’Exceção’ no caso tem o sentido de ‘defesa’, oposta justamente pela parte que é instada pela outra, sendo esta inadimplente em relação a sua obrigação”. Assim, como leciona Serpa Lopes[8], para adequada aplicação do princípio, faz-se imperioso que as prestações guardem correspondência entre si e sejam funcionalmente vinculadas.

            Os autores clássicos defendiam a completa inoponibilidade da exceção do contrato não cumprido em benefício do particular contratado pela Administração, embora esta pudesse opor tal exceção ao particular contratado. Dessa forma, em nome do princípio da continuidade do serviço público – segundo o qual se “[...] exige que a atividade administrativa seja prestada de forma contínua, não comportando intervalos, não apresentando lapsos ou falhas, sendo constante e homogênea”[9] –, devia o contratado seguir com execução do contrato administrativo suportando os riscos e o ônus inerentes à prestação do serviço público contratado, cabendo-lhe apenas pleitear judicialmente indenização por eventuais prejuízos sofridos. O rigor desse posicionamento, todavia, foi atenuado ao longo dos anos pela literatura jurídica e pela jurisprudência a partir da aplicação e da interpretação do artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993, que preconiza:

Art. 78 (...)

XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração, decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação (grifos do redator).

Nesse sentido, válida é a lição da professora Maria Sylvia Zanella di Pietro[10] no sentido de que:

O rigor desse entendimento tem sido abrandado pela doutrina e jurisprudência, quando a "inadimplência do poder público impeça de fato e diretamente a execução do serviço ou da obra" (cf. Barros Júnior, 1 9 8 6 : 74); além disso, torna-se injustificável quando o contrato não tenha por objeto a execução de serviço público, porque não se aplica, então, o princípio da continuidade [...] (grifos do redator).

            Orienta, também, o Superior Tribunal de Justiça[11]:

[...] 10. O Superior Tribunal de Justiça consagra entendimento no sentido de que a regra de não aplicação da exceptio non adimpleti contractus, em sede de contrato administrativo, não é absoluta, tendo em vista que, após o advento da Lei 8.666/93, passou-se a permitir sua incidência, em certas circunstâncias, mormente na hipótese de atraso no pagamento, pela Administração Pública, por mais de noventa dias (art. 78, XV). A propósito: AgRg no REsp 326.871/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 20.2.2008; RMS 15.154/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 2.12.2002. Além disso, não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido de que as empresas necessitariam pleitear judicialmente a suspensão do contrato, por inadimplemento da Administração Pública. Isso, porque, conforme bem delineado pela Ministra Eliana Calmon no julgamento do REsp 910.802/RJ (2ª Turma, DJe: 06.08.2008), ‘condicionar a suspensão da execução do contrato ao provimento judicial, é fazer da lei letra morta’. (STJ - REsp: 879046 DF 2006/0109019-2, Relator: Ministra DENISE ARRUDA, Data de Julgamento: 19/05/2009,  T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: 18/06/2009) (grifos do redator).

Destarte, parece que não subsistem grandes discussões acerca da possibilidade do particular contratado opor à Administração inadimplente a exceção do contrato não cumprido. Todavia, tal defesa não pode, a princípio, ser invocada pelo contratado tão logo a Administração deixe de efetuar o pagamento devido. É que, como já visto, a própria Lei determina que, inadimplente a Administração, o contratado deve manter a execução do contrato administrativo por mais noventa dias para, só então, fazer uso da “exceptio non adimpleti contractus” com vistas a suspender a execução contratual ou, até mesmo, a pleitear judicialmente a sua rescisão. Veja-se a lição de Fernanda Marinela[12]:

[...] durante o prazo de noventa dias, ainda que a Administração não pague, o contratado deve continuar prestando o serviço, podendo suspendê-lo, inclusive de forma automática, se após esse prazo, a Administração continuar inadimplente. Ressalte-se que a suspensão autorizada pela lei permite que o contratado deixe de prestar o serviço, todavia, se ele desejar a rescisão do contrato, deverá recorrer à via judicial. Logo, a cláusula da exceptio non adimpleti contractus não se aplica de imediato, mas sim, a partir de 90 (noventa) dias, isto é, de forma diferenciada (grifos do redator).

No mesmo sentido, Pedro Henrique Braz de Vita[13] explica que:

O dispositivo em comento [o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993] vincula a rescisão do ajuste administrativo aos atrasos de pagamentos devidos pela Administração os quais sejam superiores a 90 (noventa) dias, o que permite a formação da presunção de que, ao se deparar com atrasos inferiores a 90 (noventa) dias, o particular não pode invocar a exceptio non adimpleti contractus, devendo, durante esse período, cumprir todos os seus deveres contratuais, inclusive a manutenção das condições de habilitação.

Apenas em caso de atrasos superiores a 90 dias é que seria admitido o pleito de paralisação das atividades e de rescisão do ajuste, com base na exceção do contrato não cumprido” (grifos do redator).

Ocorre que, não obstante o dispositivo legal tenha conferido ao particular importante ferramenta de proteção, a Administração passou, também, a contornar tal defesa com uma prática deveras questionável, qual seja, a de permanecer inadimplente até o limite dos noventa dias desde o vencimento da obrigação de pagar para, então, efetuar o pagamento em favor do contratado, na maioria dos casos somente com o adimplemento das faturas mais antigas e vencidas. Dessa forma, a Administração contratante, embora continuamente inadimplente, tem evitado o cruzamento do marco legal que facultaria ao particular a suspensão de sua obrigação na forma já explicitada, o que já foi percebido e tratado por alguns poucos pesquisadores. Veja-se o que pontuou Ricardo Silva das Neves[14], em artigo muito oportuno sobre o mesmo tema:

Chega-se ao cúmulo de algumas entidades estabelecerem um procedimento extraoficial para pagamento de seus fornecedores/prestadores de serviço já considerando como natural o prazo de 90 (noventa) dias como o limite máximo possível para atraso. Isso porque, de acordo com o inciso XV do artigo 78 da Lei nº 8.666/93, é causa de rescisão contratual ou suspensão das obrigações pelo contratado o atraso dos pagamentos devidos pela Administração superior a 90 (noventa) dias.

Com efeito, ao se aproximar o limite de tempo disposto em norma para pagamento em atraso ao contratado sem ensejar a rescisão ou suspensão do fornecimento ou serviço, a Administração efetua o pagamento. E tudo isso, diga-se, na maior parte das vezes sem qualquer atualização monetária dos valores pagos em atraso.

O inadimplemento por parte da Administração Pública deveria ser algo excepcional, não usual e, essencialmente, temporário, e não em subterfúgio para exercício de um alegado controle dos gastos públicos. Se o serviço ou fornecimento foi licitado é porque existia, minimamente, a previsão de dotação orçamentária e/ou planejamento financeiro prévio para seu custeio (grifos do redator).

Portanto, em clara violação aos princípios da legalidade, da moralidade administrativa e da segurança jurídica, além de violação aos princípios da boa-fé objetiva e da confiança que incidem sobre toda relação negocial, a Administração Pública contratante, de forma contumaz e por meio de expedientes duvidosos, tem deixado de adimplir as obrigações contraídas junto ao particular contratado. Para Marçal Justen Filho[15]:

É destituído de razoabilidade afirmar que o inadimplemento da Administração não acarretaria qualquer consequência. Isso representa negar a eficácia do princípio da legalidade e liberar a Administração para adotar condutas arbitrárias. É incompatível com o Estado de Direito.

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Por isso, mais uma vez o particular contratado que se vê diante de uma situação de verdadeiro e injusto estrangulamento financeiro causado pela inadimplência contumaz da Administração Pública contratante encontra na literatura jurídica o seu socorro. É que, diante do “comportamento irregular do contratante governamental que, nesta mesma qualidade, viola os direitos do contratado e eventualmente lhe dificulta ou impede a execução do que estava entre eles avençado”[16], defende Carvalho Filho a possibilidade de se invocar, em favor do particular contratado e em situações excepcionais, o princípio da exceção do contrato não cumprido antes mesmo de decorridos os noventa dias a que alude o artigo 78, inciso XV da Lei nº 8.666/1993. Nas palavras do eminente professor[17]:

em situações especiais, se o prejudicado, mesmo antes desse prazo, ficar impedido de dar continuidade ao contrato por força da falta de pagamento, tem ele direito à rescisão do contrato com culpa da Administração. Fora daí, é admitir-se a ruína do contratado por falta contratual imputada à outra parte, o que parece ser inteiramente iníquo e injurídico (grifos do redator).

            Pode-se dizer que tal possibilidade decorre tanto da aplicação supletiva das disposições de direito privado aos contratos administrativos – a teor do que dispõe o artigo 54, “in fine”, da Lei nº 8.666/1993 –, quanto da necessária ponderação entre a posição de preponderância da Administração Pública contratante na relação estabelecida com o particular contratado e a função social do contrato administrativo.

 

CAPÍTULO 4 – A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ADMINISTRATIVO COMO GARANTIA DO PARTICULAR CONTRATADO

            O princípio da função social dos contratos está positivado no artigo 421 do Código Civil Brasileiro e diz respeito à necessária interpretação dos contratos em geral conforme o contexto da sociedade na qual se inserem. Sobre tal princípio, é precisa a exemplificação formulada pelo Professor Flávio Tartuce[18]:

Nesse contexto, o contrato não pode ser mais visto como uma bolha, que isola as partes do meio social. Simbologicamente, a função social funciona como uma agulha, que fura a bolha, trazendo uma interpretação social dos pactos. Não se deve mais interpretar os contratos somente de acordo com aquilo que foi assinado pelas partes, mas sim levando-se em conta a realidade social que os circunda. Na realidade, à luz da personalização e constitucionalização do Direito Civil, pode-se afirmar que a real função do contrato não é a segurança jurídica, mas sim atender os interesses da pessoa humana (grifos no original).

            Assim, tem-se que o princípio em comento objetiva – em contraste com o conteúdo patrimonialista que informava o Código Civil de 1916 – a realização de verdadeira justiça contratual, na medida em que, na lição de Caio Mário[19], “serve para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer [...]”. Daí, e considerando os já mencionados princípios da boa-fé objetiva e da confiança, é que se infere que o instrumento contratual jamais poderá servir para a prática de atos abusivos ou lesivos a um dos contratantes ou a terceiros[20]. Busca-se, portanto, a proteção das partes e da coletividade, além da preservação da equivalência entre as obrigações ajustadas.

            Araken de Assis, de maneira muito oportuna para o escopo do presente trabalho, entende que a função social se cumprirá em determinado vínculo contratual se respeitada a “[...] sua função econômica, que é a de promover a circulação de riquezas, ou a manutenção das trocas econômicas, na qual o elemento ganho jamais poderá ser desprezado, tolhido ou ignorado, tratando-se de uma economia de mercado”[21]. Para o eminente autor, “toda vez que o contrato inibe o movimento natural do comércio jurídico, prejudicando os demais integrantes da coletividade na obtenção dos bens da vida, descumpre sua função social[...]”[22]. Neste ponto, faz-se importante interseção entre o estudo da função social dos contratos e o estudo dos contratos administrativos e suas peculiaridades.

            Como já explicitado, os contratos administrativos são dotados de uma fisionomia diferenciada em relação aos contratos regidos pelo direito privado porque objetivam a consecução de objetivos de interesse público. Todavia, faz-se mister ressaltar que o interesse público perseguido pela Administração na qualidade contratante não se confunde necessariamente com a ideia de função social dos contratos, embora inegável a proximidade de ambas as concepções.

            A literatura jurídica não é consensual quanto à definição de interesse público e, por conseguinte, não oferece claro limite para sua preponderância sobre o interesse individual. Para o professor Celso Antônio Bandeiro de Mello, a noção de interesse público não pode se contrapor à noção de interesse privado, uma vez que o interesse público nada mais seria que ”a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade”[23]. Extrai-se de sua lição, portanto, que o interesse público corresponderá ao interesse de cada indivíduo inserido na coletividade, de maneira que esta invariavelmente refletirá os anseios de seus membros.

            Carvalho Filho, defendendo que “o indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, não podendo os seus direitos, em regra, ser equiparados aos direitos sociais”[24], chega a admitir que não há um conceito exato para a expressão “interesse público”, mas que é possível “encontrar as balizas do que seja interesse público dentro de suas zonas de certeza negativa e de certeza positiva”[25], cuidando-se, pois, de um conceito plenamente determinável em situações administrativas específicas.

            A literatura jurídica ainda apresenta distinções dentro da noção controvertida de interesse público: este pode ser primário ou secundário.

            Na lição da professora Fernanda Marinela[26], “considera-se interesse público primário o resultado da soma dos interesses individuais enquanto partícipes de uma sociedade, também denominados interesses públicos propriamente ditos”. A essa categoria de interesse público corresponde a noção generalista de interesse público debatida pela literatura jurídica. Já o interesse público secundário, segundo entendimento da eminente professora[27], diz respeito aos “anseios do Estado, considerado como pessoa jurídica, um simples sujeito de direitos; são os interesses privados desse sujeito” (grifos do redator).

Luis Roberto Barroso[28], por sua vez, conceitua:

O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas (grifos do redator).

            Certo é que a dificuldade encontrada na definição do que seria interesse público tem, na prática jurídica administrativa, ensejado severas distorções do princípio da supremacia do interesse público com a finalidade de embasar posições autoritárias em desfavor até mesmo da própria coletividade; no âmbito das contratações públicas, tem-se corriqueiras violações aos direitos do particular contratado, como já apontado neste trabalho.

            Citado por Alice Gonzalez Borges, denuncia Marçal Justen Filho[29]:

O interesse público não se confunde com o interesse do Estado, com o interesse do aparato administrativo ou do agente público. É imperioso tomar consciência de que um interesse é reconhecido como público porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque suas características exigem a sua promoção de modo imperioso [...] Afirma-se que o princípio da supremacia e indisponibilidade do interesse público é o alicerce fundamental do Direito Público, o que seria suficiente para legitimar as decisões adotadas pelos administradores [...] Ora, juridicamente, o titular do interesse público é o povo, a sociedade (no seu todo ou em parte). Mas os governantes refugiam-se neste princípio para evitar o controle de seus atos pela sociedade [...] Fundamentar decisões no ‘interesse público’ produz a adesão de todos, elimina a possibilidade de crítica. Mais ainda, a invocação do ‘interesse púbico’ imuniza as decisões estatais ao controle e permite que o governante faça o que ele acha deve ser feito, sem a comprovação de ser aquilo, efetivamente, o mais compatível com a democracia e com a conveniência coletiva (grifos do redator).

O posicionamento do autor denota a utilidade prática presente na distinção entre interesse público primário e interesse público secundário, pelo que se evidencia que nem sempre o interesse público genericamente alegado pela Administração contratante para impor a sua supremacia sobre o particular contratado diz respeito à real proteção de um interesse público propriamente dito: muitas das vezes, está-se diante dos interesses privados da pessoa jurídica de direito público contratante.

            Alice Gonzalez Borges[30], acompanhada por Carvalho Filho[31] e Fernanda Marinela[32],  ciente da ocorrência de “manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas”[33] em nome do princípio da supremacia do interesse público, aponta para uma reconstrução do aludido princípio a partir de uma necessária ponderação entre os interesses individuais fundamentais e o interesse coletivo “na busca da plena e efetiva realização do próprio interesse público, em sua real dimensão”[34].

            Diante disso, sintetiza a citada autora[35] de maneira muito esclarecedora:

O interesse público que serve de base ao direito administrativo é o interesse primário, que corresponde à realização dos superiores interesses de toda a coletividade e dos valores fundamentais consagrados na Constituição (grifos do redator).

E continua:

Esse interesse é público, não porque sirva de base para as atividades próprias do Estado, ou porque este o invoque como razão de agir: mas, sim, na exata medida em que coincida com o querer majoritário de toda a comunidade, servindo de elo, como queria ROUSSEAU, para a congregação das vontades individuais em torno dos objetivos comuns de uma sociedade democrática organizada (grifos do redator).

            Constata-se, portanto, que não se pode, simples e indistintamente, ignorar o interesse privado presente nas relações com o Poder Público. Eis a precisa lição de Gustavo Binenbojm[36]:

Não há como conciliar no ordenamento jurídico um “princípio” que, ignorando as nuances do caso concreto, pré-estabeleça que a melhor solução consubstancia-se na vitória do interesse público. O “princípio” em si afasta o processo de ponderação, fechando as portas para os interesses privados que estejam envolvidos. Dê-se destaque, outrossim, ao fato da fórmula pré-concebida presente no “princípio” ir de encontro ao dever de fundamentação (“dever de explicitação das premissas”) a que se sujeitam os Poderes do Estado.

O contrato administrativo, então, somente cumprirá a sua função social se a Administração contratante, perquirindo o interesse público primário, buscar a compatibilização de sua posição de preponderância com os direitos e garantias individuais do particular contratado, tudo em observância aos princípios gerais regentes das relações contratuais em geral. Assim, ilegítimo é o desequilíbrio contratual imposto ao particular sob a justificativa da supremacia do interesse público quando, no caso concreto, se estiver diante de interesse público secundário, isto é, interesse privado do órgão administrativo contratante. É que, nesta hipótese, não se estará diante de um interesse da coletividade que justifique qualquer privilégio em favor da Administração Pública. Ao contrário, haverá nítido descumprimento da função social do contrato, uma vez que ausente a noção de justiça contratual entre as partes e, do ponto de vista coletivo, estar-se-á diante de conduta reprovável da Administração. Veja-se a lição de Romeu Felipe Bacellar Filho[37]:

O contrato administrativo não se liberta, porém, de algumas características próprias a qualquer avença, insista-se, da categoria contrato. Como consectário de uma obrigação, o contrato resulta de um acordo de vontades. A autonomia, temperada pela função social do contrato, constituiu elemento imprescindível a ser observado em qualquer avença. Do mesmo modo, os princípios Lex inter partem e pacta sunt servanda fazem certo que o contrato é a lei entre as partes e que estas, devidamente ajustadas, devem observar o que foi pactuado. Neste passo mostra-se evidente que o instrumento do contrato há de sujeitar-se aos ditames da lei, companheira inseparável do administrador contratante, sempre em prospectiva coletiva e que as obrigações contratadas também haverão de postar-se submissas ao conjunto normativo. Afinal, ao administrador não se lhe confere nenhuma liberdade, antes, um espaço de atuação dentro da lei (grifos do redator).

            Desta maneira, tem-se que, violada a função social do contrato administrativo por ato abusivo da Administração contratante, notadamente por sua inadimplência contumaz, surge em favor do contratado a possibilidade de pleitear a revisão administrativa ou judicial do contrato, seja para o restabelecimento da equação econômico-financeira do ajuste, seja para invocar a exceção do contrato não cumprido antes do prazo de noventa dias previsto em lei, de modo a suspender a exigibilidade de suas obrigações até que a situação seja regularizada. Sobre a questão, dois pontos merecem destaque: em primeiro lugar, há de se ressaltar que o particular contratado “desde o início é sabedor de que terá de suportar os riscos que certamente advirão do pacto, tanto ordinários quanto extraordinários”[38], razão pela qual não poderá suscitar a exceção do contrato não cumprido por atrasos eventuais no pagamento que não excedam o limite de noventa dias. Em segundo lugar e por desdobramento lógico do primeiro apontamento, incumbirá ao particular contratado a comprovação da impossibilidade ou, ao menos, da dificuldade no cumprimento de suas obrigações quando buscar a revisão contratual para restabelecimento da equação econômico-financeira ou para a suspensão de tais obrigações antes do decurso do prazo de noventa dias de inadimplência por parte da Administração. A seguir, abordar-se-ão maiores detalhes acerca das possibilidades existentes à disposição do particular contratado com vistas a proteger sua saúde financeira e obter a satisfação de seu crédito ante a Administração Pública inadimplente.

 

CAPÍTULO 5 – A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO DIREITO DO CONTRATADO À PROTEÇÃO DE SUA SAÚDE FINANCEIRA E À SATISFAÇÃO DE SEU CRÉDITO DIANTE DA SUPREMACIA DA ADMINISTRAÇÃO

            Diante da inadimplência do Poder Público, não é incomum que o particular contratado opte por suportar os prejuízos decorrentes de tal inadimplência, seja por temer eventuais retaliações por parte do ente administrativo contratante, seja por desconhecer a extensão de seus direitos e as possibilidades existentes para sua proteção e satisfação de seu crédito. Sérgio Lewin[39], entretanto, alerta que

É urgente superar a cultura da irresponsabilidade da administração pública, resquício de tempos autoritários, anteriores à Constituição Federal e à própria Lei de Responsabilidade Fiscal. O supremo interesse público não consiste na supremacia dos interesses da administração sobre os direitos dos particulares, mas no respeito ao Estado Democrático de Direito e às garantias que lhe são inerentes (grifos do redator).

            No mesmo sentido, orienta Daniel Siqueira Borda[40]:

Não se deve olvidar que o Brasil atualmente se coloca como um dos maiores receptores de investimentos estrangeiros, em certa medida ainda obstados por eventos que vulneram a segurança jurídica e pela vigência de antigas práticas abusivas camufladas como exercício de prerrogativas exorbitantes. Assim, a suspensão unilateral do adimplemento contratual pelo Poder Público se mostra desconforme com os paradigmas do contrato administrativo (grifos de redator).

Continua o autor:

Bem por isso, não deve o particular contratado quedar-se inerte frente aos abusos cometidos pela Administração Pública, eis que possui direitos a serem tutelados em caso de decretação unilateral de moratória do adimplemento contratual, o assim vulgarmente entendido como “calote” (grifos do redator).

            Assim, passar-se-á ao estudo das principais ferramentas colocadas à disposição do particular contratado pela legislação, pela jurisprudência e pelas construções da literatura jurídica, tudo com vistas a uma adequada instrumentalização do direito de proteção de sua saúde financeira e á respectiva satisfação de seu crédito frente à Administração Pública contratante e pretensamente suprema.

            O estudo a se desenvolver neste capítulo partirá da discussão existente na literatura jurídica e na jurisprudência acerca da necessidade ou não de se recorrer ao Poder Judiciário para que se oponha à Administração inadimplente a exceção do contrato não cumprido após o decurso do prazo de noventa dias na forma prevista no artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993.

            Alguns autores administrativistas entendem pela necessidade de submissão da controvérsia à apreciação da própria Administração contratante ou do Poder Judiciário como medida de maior cautela a fim de se evitar que a Administração inadimplente impute ao particular contratado a prática de conduta culposa e até, pasmem, aplique penalidades administrativas em seu desfavor pela não execução do objeto contratual. Quanto ao pleito na seara administrativa, mais um pertinente alerta de Ricardo Silva das Neves[41]:

[...] o fornecedor da Administração Pública pouco pode fazer na via administrativa para se ressarcir de tal descumprimento contratual. No caso em específico, poderá apenas requerer o pagamento em atraso e, nas situações em que o mesmo já foi efetivado, solicitar a atualização monetária do pagamento, com base no artigo 40, inciso XIV e artigo 55, inciso III da Lei nº 8.666/93.

Todavia, em ambos os casos, dificilmente obterá êxito na via administrativa. Na maioria das vezes, o ente público contratante alegará problemas financeiros ou a ausência de previsão contratual ou orçamentária para atualização financeira dos valores pagos em atraso (grifos do redator).

            Diante disso, Carvalho Filho[42] somente considera a possibilidade de se recorrer à via judicial:

Ocorrendo tal situação excepcional, o interessado pode recorrer à via judicial e, por meio de ação cautelar, formular pretensão no sentido de lhe ser conferida tutela preventiva imediata, com o deferimento de medida liminar para o fim de ser o contratado autorizado a suspender o objeto do contrato, evitando-se que futuramente possa a Administração inadimplente imputar-lhe conduta culposa recíproca. Segundo nos parece, esse é o único caminho a ser seguido para impedir que a Administração, que está descumprindo obrigação contratual, se locuplete de sua própria torpeza (grifos do redator).

            Outros autores defendem que, decorridos os noventa dias de atraso nos pagamentos por parte da Administração contratante, a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário somente subsistirá na hipótese do particular contratado objetivar a rescisão do ajuste, não havendo tal necessidade para a suspensão da exigibilidade de suas obrigações, ao que se poderá proceder de forma automática. Este é o entendimento, por exemplo, da professora Fernanda Marinela[43], como já demonstrado ao longo deste trabalho e, na jurisprudência, do Superior Tribunal de Justiça. Além do julgado transcrito alhures, veja-se[44]:

ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. FORNECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO A PACIENTES, ACOMPANHANTES E SERVIDORES DE HOSPITAIS PÚBLICOS. ATRASO NO PAGAMENTO POR MAIS DE 90 DIAS. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. ART. 78, XV, DA LEI 8.666/93. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO CONTRATO. DESNECESSIDADE DE PROVIMENTO JUDICIAL. ANÁLISE DE OFENSA A DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL: DESCABIMENTO. INFRINGÊNCIA AO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 126, 131, 165 E 458, II, DO CPC: INEXISTÊNCIA. 1. Descabe ao STJ, em sede de recurso especial, analisar possível ofensa a dispositivo constitucional. 2. Incide a Súmula 284/STF se o recorrente, a pretexto de violação do art. 535 do CPC, limita-se a fazer alegações genéricas, sem indicação precisa da omissão, contradição ou obscuridade do julgado. Inúmeros precedentes desta Corte. 3. Acórdão suficientemente fundamentado não contraria os arts. 126, 131, 165 e 458, II, do CPC. 4. Com o advento da Lei 8.666/93, não tem mais sentido a discussão doutrinária sobre o cabimento ou não da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus contra a Administração, ante o teor do art. 78, XV, do referido diploma legal. Por isso, despicienda a análise da questão sob o prisma do princípio da continuidade do serviço público. 5. Se a Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito. 6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido. (STJ - REsp: 910802 RJ 2006/0273327-0, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 03/06/2008,  T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: 06/08/2008). (grifos do redator).

            Entre os posicionamentos apresentados, parece mais adequado o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça. É que a própria lei estabelece o critério objetivo a ser observado pelo particular contratado para que este invoque em seu favor a exceção do contrato não cumprido e, com isso, suspenda o cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação dos pagamentos. Note-se que, além do decurso do prazo de noventa dias, a lei não estabelece nenhuma condicionante para o exercício de tal exceção. Os Tribunais estaduais têm acompanhado o mesmo entendimento, como se observa dos seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[45]:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO CUMULADA COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS CONTRATO ADMINISTRATIVO CUJO OBJETO É O FORNECIMENTO DE REFEIÇÕES AOS USUÁRIOS DOS REFEITÓRIOS DA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. ALEGADO DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. APLICAÇÃO DE MULTA. LEI DE LICITAÇÕES. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA RECURSAL. ATRASO NO PAGAMENTO POR PERÍODO SUPERIOR A 90 (NOVENTA) DIAS. REDUÇÃO DOS GASTOS COM A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE REFEIÇÃO A QUE FORA CONTRATADA, CULMINANDO, COM ISSO, EM CARDÁPIOS MENOS DISPENDIOSOS DO QUE OS PACTUADOS. EM VISTA DO ATRASO DO PAGAMENTO DA DÍVIDA E, POR CONSEQUÊNCIA, DO ÔNUS FINANCEIRO ARCADO, A CONTRATADA CIENTIFICOU À SOCIEDADE CONTRATANTE QUE O CARDÁPIO DAS REFEIÇÕES SOFRERIA MODIFICAÇÃO NA TENTATIVA DE REEQUILIBRAR A SAÚDE ECONÔMICA FINANCEIRA DO CONTRATO. NÍTIDA DEGRADAÇÃO ECONÔMICA DA SOCIEDADE CONTRATADA, ANTE A ASSUMIDA POSIÇÃO DE INADIMPLENTE DA ADMINISTRAÇÃO. MORA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR PERÍODO SUPERIOR A 90 (NOVENTA) DIAS. A MODIFICAÇÃO DO CARDÁPIO DAS REFEIÇÕES SE DEU EM RAZÃO DA CONDUTA DA CONTRATANTE, QUE NÃO HONROU SEU COMPROMISSO ATINENTE A CONTRAPRESTAÇÃO ESTIPULADA NO CONTRATO CELEBRADO. A REGRA DE NÃO APLICAÇÃO DA EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS, EM SEDE DE CONTRATO ADMINISTRATIVO, NÃO É ABSOLUTA, TENDO EM VISTA QUE, APÓS O ADVENTO DA LEI 8.666/93, PASSOU-SE A PERMITIR SUA INCIDÊNCIA, EM CERTAS CIRCUNSTÂNCIAS, MORMENTE NA HIPÓTESE DE ATRASO NO PAGAMENTO, PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, POR MAIS DE NOVENTA DIAS, NOS MOLDES DO ART. 78, V. DESNECESSIDADE DA INTERPELAÇÃO JUDICIAL, BASTANDO A SIMPLES CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SE AO CONTRATADO É FACULTADO, POR LEI, OPTAR PELA RESCISÃO CONTRATUAL, DIANTE DO ATRASO SUPERIOR A 90 (NOVENTA) DIAS DOS PAGAMENTOS DEVIDOS PELA ADMINISTRAÇÃO, NÃO MENOS LHE É POSSIBILITADO REDUZIR O CUSTEIO DOS SERVIÇOS PRESTADOS, ATENUANDO O RIGOR DO COMANDO LEGAL SUPRACITADO E OPTANDO PELA MANUTENÇÃO DO CONTRATO. CONDUTA QUE, ALÉM DE PRESTIGIAR A BOA-FÉ OBJETIVA, CARACTERIZA-SE COMO VERDADEIRA BENESSE CONCEDIDA À ADMINISTRAÇÃO, JÁ QUE, EMBORA TENHA DIMINUÍDO O VALOR PROTEICO DO CARDÁPIO CONTRATADO, MANTEVE O FORNECIMENTO DE REFEIÇÕES. MULTA. IMPOSSIBILIDADE. NULIDADE QUE SE IMPÕE. NÃO OPORTUNIZADO O DIREITO AO PARTICULAR CONTRATADO EXERCER A AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO, VIOLADO SE ENCONTRA O ART. 5º, LV, DA MAGNA CARTE, ALÉM DE AFRONTAR O ART. 87 DA LEI 8.666/93. PROVIMENTO DO RECURSO”. (TJ-RJ – Apelação Cível: 0007360-94.2009.8.19.0024, Relator: ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 26/02/2013, QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/03/2013) (grifos do redator).

            Outro julgado esclarecedor do mesmo Tribunal de Justiça[46]:

AGRAVO INOMINADO EM APELAÇÃO CÍVEL. AGRAVO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR QUE DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA E MEDIDA CAUTELAR AJUIZADA PELO MUNICÍPIO. PARALISAÇÃO DOS SERVIÇOS PRESTADOS POR PARTICULAR QUE TERIAM CAUSADO DANOS À MUNICIPALIDADE. RECONVENÇÃO. ALEGAÇÃO DE INADIMPLEMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PUBLICA POR MAIS DE 90 DIAS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS NA AÇÃO INDENIZATÓRIA E DE PROCEDÊNCIA NA RECONVENÇÃO. APELO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 78, XV DA LEI 8.666/93 QUE AUTORIZA O CONTRATADO, DE FORMA EXPRESSA, A SUSPENDER A EXECUÇÃO DO CONTRATO QUANDO O ATRASO DO PAGAMENTO PELA ADMINISTRAÇÃO SEJA SUPERIOR A 90 (NOVENTA) DIAS. HIPÓTESE CONFIGURADA NOS AUTOS. LICITUDE DA INTERRUPÇÃO DOS SERVIÇOS. NÃO CABIMENTO DA MULTA CONTRATUAL IMPOSTA PELO MUNICÍPIO. SE A EMPRESA EFETIVAMENTE PRESTOU O SERVIÇO, A ADMINISTRAÇÃO DEVE ARCAR COM O PAGAMENTO DAS QUANTIAS CORRESPONDENTES, SOB PENA DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. PLEITO INDENIZATÓRIO DO MUNICÍPIO QUE NÃO MERECE PROSPERAR, EM ATENÇÃO AO PRINCÍPIO DE QUE A NINGUÉM É LÍCITO BENEFICIAR-SE DA PRÓPRIA TORPEZA. DANO MATERIAL PLEITEADO PELA EMPRESA DEVIDAMENTE COMPROVADO, DEVENDO SER CONSIGNADO QUE OS DANOS MATERIAIS QUE SERÃO INDENIZADOS À EMPRESA SÃO AQUELES PROVENIENTES, DIRETA E EXCLUSIVAMENTE, DO ATRASO NO PAGAMENTO A CARGO DO MUNICÍPIO DURANTE O PERÍODO DA EFETIVA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS, INCLUSIVE POR FORÇA DA LIMINAR CONCEDIDA. VERBA HONORÁRIA QUE DEVE SER FIXADA NA FORMA DO ART. 20, § 4º DO CPC. AUSÊNCIA DE ARGUMENTO NOVO QUE JUSTIFIQUE A REVISÃO DO JULGADO. NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO”. (TJ-RJ – Agravo Inominado em Apelação Cível: 0007066-39.2005.8.19.0038, Relator: CLEBER GHELFENSTEIN, Data de Julgamento: 19/10/2011, DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 21/10/2011) (grifos do redator).

Também já se posicionou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no mesmo sentido[47]:

APELAÇÃO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. PRETENSÃO DE REFORMA DA SENTENÇA QUE JULGOU PROCEDENTE O PEDIDO MEDIATO. PRESSUPOSTOS RECURSAIS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. Inocorrência. A recorrida sustenta que o recurso não reúne fundamentação e, por isso, não atende pressuposto extrínseco recursal (regularidade formal). O cotejo entre a motivação empregada pela sentença e os argumentos manejados pelo recurso revela que o pedido de reexame da matéria pelo tribunal "ad quem" compreende a impugnação acerca dos fundamentos da sentença. A minuta recursal sustenta a falta de interesse de agir e o vício atinente ao "error in judiciando" do provimento judicial que não considera a supremacia do interesse público sobre o particular. CARÊNCIA DA AÇÃO. Não configurada. A Administração sustenta a ausência de qualquer ato administrativo contrário aos interesses da autora e, com isso, capaz de repercutir na esfera jurídica da contratada. Objeção rejeitada. Interesse de agir identificado. O exercício da prerrogativa contida no inciso XV do artigo 78 da Lei n. 8.666/93 pressupõe a suspensão da execução do contrato em contraposição ao princípio da continuidade dos serviços públicos e, por conseguinte, a instauração de procedimento administrativo para coagir a contratada a retomar a execução do contrato. A "causa petendi" informa situação fática que qualifica, em tese, o manejo da prerrogativa que se abre para a Administração exigir o exaurimento da obrigação contratada. Ora, se a autora anuncia o descumprimento da obrigação contraída pela Administração, certamente se apresenta para ela o interesse em buscar o controle jurisdicional para obter provimento que venha chancelar a suspensão do dever de fornecer os medicamentos. CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. FORNECIMENTO DE PRODUTOS MÉDICO-HOSPITALARES. Inadimplemento da Administração Pública. Mora configurada por mais de 90 dias. Exercício do direito previsto no inciso XV do artigo 78 da Lei n. 8.666/93. Possibilidade. Oponibilidade da "exceptio non adimpleti contractus". Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Exceções legais. Guerra e calamidade pública. Inocorrência. O simples fato de o produto ser considerado essencial não obriga a contratada a fornecer os produtos sem a respectiva contraprestação. Sentença mantida. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (TJ-SP - APL: 00769562620118260114 SP 0076956-26.2011.8.26.0114, Relator: José Maria Câmara Junior, Data de Julgamento: 26/03/2014,  9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/03/2014) (grifos do redator).

            Destarte, não parece haver motivos para que, decorridos noventa dias de inadimplência por parte da Administração Pública, o particular contratado mantenha a execução do objeto contratual em prejuízo de sua própria saúde financeira. Por dever de cautela, entende-se que é razoável a notificação da Administração contratante acerca da paralisação das atividades com fundamento no artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993.

            Já no que concerne à possibilidade de rescisão o contrato administrativo pelo inadimplemento da Administração, deve-se adotar postura mais moderada, uma vez que pela lei não é conferido ao particular o direito de rescindir o contrato unilateralmente.

Diversamente entende Ariosto Mila Peixoto[48]:

Entendo que a partir do momento que exista um motivo para rescisão, a contratada poderia, de forma unilateral, comunicar o fato e considerar rescindido o contrato, vez que é um direito que lhe cabe. Tal conduta tem justificativa no fato de que não se pode esperar que a Administração, de livre e espontânea vontade, rescinda o contrato quando ocorrer a hipótese do artigo 78, XV, mesmo porque, a Administração pode não promover a rescisão, manter o atraso e, ainda assim, querer punir a empresa pela suspensão do contrato. A empresa contratada não é obrigada a financiar a Administração Pública, principalmente porque na proposta vencedora da licitação observava-se uma equação econômico-financeira bem como condições de execução contratual que deveriam ser respeitadas pelas partes (grifos do redator).

            Ocorre que, se o artigo 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993 trata de forma expressa a possibilidade de suspensão do cumprimento das obrigações do particular contratado como uma opção colocada a seu dispor para preservar-lhe a saúde financeira, o mesmo não faz em relação à possibilidade de rescisão do contrato administrativo. Assim, o atraso superior a noventa dias dos pagamentos devidos pela Administração apenas constituem o motivo apto a ensejar a rescisão do contrato, que deverá ser procedida na forma no artigo 79, incisos II e III, da mesma Lei.  Se o particular contratado, então, objetivar a rescisão do contrato administrativo e não a conseguir em consenso com a Administração contratante, somente lhe restará a via judicial para ver desfeito o vínculo contratual, com o respectivo pleito por perdas e danos suportados.

            O mesmo caminho deverá ser percorrido pelo particular contratado quando objetivar a suspensão do cumprimento de suas obrigações ou a rescisão do contrato pelo atraso dos pagamentos devidos pela Administração contratante antes dos noventa dias previstos em lei. Isto porque, embora a possibilidade de oposição da exceção do contrato não cumprido antes do decurso do prazo previsto em lei decorra de teses muito bem fundamentadas pela literatura jurídica, carece, de qualquer modo, de previsão legal que a ampare. Assim, resta ao particular contratado, fazendo prova da impossibilidade ou da excessiva onerosidade do cumprimento do objeto contratual em virtude de ato ou omissão do Poder Público contratante, buscar a tutela jurisdicional para: a) ver legitimado o seu direito de suspender a execução do contrato; b) compelir a Administração a depositar judicialmente o montante equivalente às parcelas inadimplidas de forma a assegurar a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato; ou c) ter desfeito o vínculo contratual com a Administração Pública.

            É importante destacar que cabe ao particular contratado documentar o quanto possível a situação de inadimplência da Administração. Logo, considera-se prudente que o particular proceda à notificação do Poder Público inadimplente para ver satisfeito o seu crédito, pois, caso não logre êxito, terá, além do termo de contrato em si, vasta documentação hábil a comprovar judicialmente que buscou resolver amigavelmente a questão. Em qualquer caso, poderá o particular contratado buscar, junto ao Ministério Público e aos órgãos de controle, a responsabilização civil, penal e administrativa dos gestores responsáveis pelo inadimplemento, especialmente se verificado que tal inadimplemento ocorreu com violação da estrita ordem cronológica exigida pelo artigo 5º da Lei nº 8.666/1993, o que se entende medida imprescindível para coibição de atos arbitrários dos gestores públicos em prejuízo injustificado do particular contratado.

 

CAPÍTULO 6 – CONCLUSÃO

Pelo presente trabalho buscou-se analisar as possibilidades colocadas à disposição do particular contratado para proteção de sua saúde financeira e para a satisfação do seu crédito ante a inadimplência da Administração Pública contratante. O estudo desenvolveu-se a partir de uma abordagem do princípio da “exceptio non adimpleti contractus” e da noção de função social dos contratos em contraposição à posição de preponderância do Poder Público no âmbito dos contratos administrativos que lhe é outorgada por força da própria lei.

Inicialmente, esclareceu-se que a expressão “contatos da Administração” diz respeito a um gênero que designa todos os pactos bilaterais em que a Administração Pública figura como parte contratante, do qual decorrem, como espécies, os contratos privados da Administração e os contratos administrativos, esclarecendo-se, igualmente, que os contratos administrativos regem-se sob as normas de direito público, razão pela qual se justifica a existência das cláusulas exorbitantes. Tais cláusulas, como demonstrado, colocam a Administração contratante em posição de superioridade em relação ao particular contratado, inclusive com a mitigação da oponibilidade da exceção do contrato não cumprido em desfavor da Administração.

Diante disso, demonstrou-se com o presente trabalho que, embora os autores administrativistas clássicos defendessem a completa inoponibilidade da “exceptio non adimpleti contractus” nos contratos administrativos, hodiernamente não existem grandes discussões a esse respeito na literatura jurídica ou na jurisprudência pátria, uma vez que a própria Lei nº 8.666/1993 tratou de mitigar a oposição de tal princípio em face da Administração Pública contratante. Desta maneira, nos contratos administrativos, o particular contratado somente poderá opor a exceção do contrato não cumprido objetivando a suspensão do cumprimento de suas obrigações após o decurso do prazo de noventa dias de atraso dos pagamentos devidos pela Administração contratante. Neste sentido, inclusive, manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça.

Destaca-se que importante fenômeno se verificou no desenvolvimento do presente estudo: apesar da proteção garantida por Lei ao particular contratado, a Administração passou, também, a deixar de cumprir a sua obrigação de pagar até o limite dos noventa dias de atraso que facultaria ao contratado a suspensão de suas obrigações para, só então, efetuar os pagamentos devidos. Tal prática evita, portanto, o cruzamento do marco legal para oposição da “exceptio non adimpleti contractus” pelo particular, impondo-lhe grave desequilíbrio econômico-financeiro e configurando grande abalo à justiça contratual. Por esta razão, a literatura jurídica vem admitindo a oponibilidade da exceção do contrato não cumprido em face da Administração Pública inadimplente antes mesmo do decurso do prazo de noventa dias estabelecido em Lei. Tal possibilidade decorre da necessidade de observância, também no âmbito dos contratos administrativos, do princípio da função social dos contratos, segundo o qual se infere que o instrumento contratual não poderá servir para a prática de atos abusivos ou lesivos a um dos contratantes ou a terceiros.

A partir disso, o trabalho desenvolvido fez uma necessária ponderação entre a função social dos contratos e a noção de interesse público, pelo que se verificou que o interesse público primário é o que justifica a posição de preponderância da Administração em relação ao particular contratado. Assim, não poderá a Administração Pública, em nome de interesse público secundário, impor desequilíbrio contratual em desfavor do particular, uma vez que não haveria, neste, interesse da coletividade que justificasse qualquer privilégio à Administração. Isto porque o interesse público primário refere-se ao interesse de toda a sociedade e constitui a verdadeira razão de ser do Estado e o interesse público secundário diz respeito ao interesse do aparato administrativo ou do agente público.

Por fim, verificou-se que, para sua proteção financeira, o particular contratado tem a possibilidade suspender automaticamente a execução do contrato administrativo após o decurso do prazo de noventa dias de inadimplência do Poder Público, não havendo, portanto, a necessidade de buscar a tutela jurisdicional para ver materializado o seu direito. Embora não seja posicionamento unânime na literatura jurídica, esta possibilidade encontra guarida na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e até mesmo do Superior Tribunal de Justiça.

Esta, no entanto, parece ser a única hipótese em que é lícito ao particular contratado suspender automaticamente as suas obrigações. É que para a rescisão do contrato administrativo pelo inadimplemento da Administração, entende-se necessária a tutela jurisdicional, uma vez que a Lei somente autoriza a rescisão unilateral pela Administração Pública contratante ou, no mínimo, por acordo entre as partes. Da mesma forma, e também por não haver previsão legal, deve proceder o particular contratado quando objetivar a suspensão do cumprimento de suas obrigações ou a rescisão do contrato pelo atraso dos pagamentos devidos pela Administração contratante antes dos noventa dias previstos em lei, em qualquer caso fazendo prova da impossibilidade ou da excessiva onerosidade do cumprimento do objeto contratual em virtude de ato ou omissão do Poder Público contratante.

Assim, e diante de todo o exposto, conclui-se que o particular contratado possui à sua disposição meios capazes de conferir-lhe a proteção necessária diante da inadimplência contumaz da Administração Pública contratante, de forma que pode e deve ser superada a ideia de completa submissão do particular contratado a um interesse público que, como demonstrado, muitas vezes apenas serve de argumento para a prática de atos abusivos e violadores da justiça contratual.

 

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Sobre o autor
Igor Almeida

Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Analista de Licitações e Contratos Administrativos. Pós-graduando em Direito Marítimo e Portuário. Advogado no escritório Almeida Archangelo Advocacia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Coordenação Acadêmica do LLM em Direito Empresarial da Fundação Getulio Vargas, como requisito parcial para a obtenção de certificado do nível de especialização.

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