1. Greve e o sindicalismo brasileiro: breve introdução
A greve surgiu como fato social para posteriormente tornar-se um fato jurídico. Com a Revolução Industrial e suas profundas transformações nos padrões de produção e organização do trabalho, modificam-se as relações entre patrões e empregados: as excruciantes condições dos operários no século XIX deram lugar a embates históricos e permanentes por melhores condições dos trabalhadores. A greve, nesse cenário, tornou-se uma ferramenta fundamental na luta por tais direitos, contribuindo também para a regulamentação jurídica do Direito do Trabalho. Como mecanismo de pressão, já foi até mesmo criminalizado em regimes jurídicos passados; porém, hoje foi içado a direito fundamental protegido constitucionalmente.
Até hoje este embate histórico de forças é uma realidade fática em todo o mundo, e mostra-se presente no nosso dia a dia. Este trabalho propõe-se a analisar a maneira como o fenômeno da greve é um reflexo de toda a estrutura do sindicalismo brasileiro; fá-lo-emos mesclando análises teóricas com observações empíricas, considerando o cenário do movimento paredista do Sindicato dos Bancários do Ceará, por ocasião das negociações coletivas frustradas em setembro de 2014.
Ainda, para balizar nossa análise acerca da erosão da relação trabalhador-sindicato na atualidade, fizemos uma breve pesquisa com os bancários da Agência Pessoa Anta, da Caixa Econômica Federal, em Fortaleza/CE: 25 bancários responderam a um breve questionário visando avaliar suas expectativas com a efetividade da greve antes de sua deflagração, sua satisfação com a atuação do sindicato e os resultados do movimento paredista, além da percepção subjetiva individual do grau de representatividade real do Sindicato dos Bancários em relação à categoria. O questionário está anexo a este trabalho, e os resultados obtidos na pesquisa estão dispostos ao longo do artigo.
2. O movimento grevista dos bancários cearenses em 2014
O movimento paredista nacional foi deflagrado em 30/09/2014, após reiterados fracassos na mesa de negociação coletiva entre CONTRAF-CUT e FENABAN. Assembléias por todo o país foram feitas no dia anterior, 29/09, para deliberar pela rejeição da proposta e início da greve. Já no primeiro dia de greve, 272 agências fecharam em todo o estado do Ceará, tendo aumento escalonado nos dias posteriores. Relevante mencionar que a greve foi deflagrada no início da última semana do 1º turno eleitoral para disputas presidenciais, fato este crucial para a deflagração, andamento e, principalmente, encerramento da greve, como posteriormente exporemos.
Em 03/10/2014, foi apresentada nova proposta pela FENABAN – às vésperas do 1° turno eleitoral. O Comando Nacional teve posicionamento favorável e recomendou à base aceitar os termos propostos. Em 06/10, primeiro dia do 2° turno da corrida eleitoral presidencial – com os candidatos do PT e do PSDB em disputa – as assembléias de todo o país deliberaram em ampla maioria pela aceitação da proposta, acatando o posicionamento do Comando e da base sindical de São Paulo, que definiu pelo fim da greve em assembléia naquela noite. O Sindicato dos Bancários do Ceará fracionou as votações, promovendo assembleias deliberativas separadas para cada banco. A assembléia da Caixa Econômica Federal, após deliberação, votou pela aceitação da proposta da FENABAN e pelo fim da greve por 72 votos a favor contra 53 votos contra.
Um dos bancos públicos, BNB, em votação apartada, decidiu pela manutenção da greve por tempo indeterminado, mantendo movimento paredista isolado até 10/10/2014.
A adesão a esta greve, pelos bancários da Caixa Econômica Federal em Fortaleza, foi extremamente baixa, de acordo com os dirigentes sindicais. Segundo eles, em diversas agências havia uma média de 38% de pontos não batidos – ou seja, mais de 60% dos trabalhadores estavam indo trabalhar normalmente (ou ao menos registraram frequência). Todo o corpo gerencial (e funcionários associados com funções gratificadas) boicotou a greve, mas não foram os únicos – assim, a efetividade da greve foi seriamente prejudicada pela baixíssima adesão dos bancários.
Podemos partir de duas premissas fundamentais para explicar este comportamento da categoria: ou não havia insatisfação alguma dos trabalhadores com a proposta inicial apresentada pelos bancos – e assim, não se via necessidade de lançar mão da greve como meio de pressão para negociações; ou a greve não se mostrava aos trabalhadores como o meio mais viável para chegar às conquistas almejadas.
Uma sondagem rápida à época demonstraria que não era o caso da primeira opção: os empregados em sua quase totalidade mostravam-se veementemente contrários aos termos da proposta inicia, e em nosso questionário, apenas 2 entrevistados do total de 25 consideraram a proposta inicial dos bancos como satisfatória. Ainda assim, a adesão foi pífia e o movimento não teve o fôlego esperado.
A segunda hipótese mostra-se mais palpável. Em nosso questionário, o quesito “No início da greve, você tinha expectativas de que a categoria conquistaria as demandas pleiteadas através do movimento grevista?”, apenas 7 dos 25 entrevistados afirmaram ter alguma expectativa favorável quanto à efetividade do movimento paredista: 72% não esperavam sucesso no pleito das demandas dos trabalhadores usando a greve como mecanismo de pressão.
3. Greve e movimento sindical: teoria e fatos
Como já afirmamos previamente, o fenômeno da greve e suas implicações é um reflexo direto da própria estrutura do sindicalismo brasileiro moderno. Uma vez que a greve é arquitetada, organizada e capitaneada pelos sindicatos, quaisquer incongruências estruturais irão refletir-se em sua atuação, de tal modo que é possível vislumbrar aspectos significativos do arranjo sindical (tanto pontual quanto sistêmico) na maneira como uma greve é delineada, posta em prática, vivenciada pelos trabalhadores e por eles ratificada – ou não.
Assim, a vivência sindical e a forma como é conduzida sua relação com a categoria são a causa, da qual o sucesso ou fracasso de uma greve é mero sintoma. É preciso considerar o quadro como um todo para entender por que a greve dos bancários cearenses foi tida como um fracasso pelos próprios dirigentes sindicais. Apesar de alguns dos membros da liderança sindical advogarem pela continuidade da greve na assembléia de deliberação de 06 de outubro, eles próprios admitiam que o movimento local não tinha fôlego para fazer grandes exigências. Não foi a satisfação geral dos bancários da Caixa Econômica que levou à aceitação da proposta: a extenuação do movimento paredista aliada a inclinações de cunho político foram decisivas para a aceitação dos termos da FENABAN àquela altura.
Já antes mesmo do início da greve, diversos colegas bancários já afirmavam com descrença que a greve não teria sucesso, como em anos anteriores. “Nunca conseguimos nem perto do que queremos” era o discurso comum. Esta descrença na greve mostra, de forma indireta mas indubitável, a descrença geral no próprio movimento sindical e em sua capacidade de mobilização de trabalhadores e negociação com as cúpulas do poder financeiro.
Há vários fatores que entram na complexa equação que explica a descrença dos trabalhadores na efetividade da greve. Num cenário de desarticulação de categorias de base, em que a solidariedade de classe dá lugar ao “individualismo” das demandas de cada categoria isolada, não há qualquer sentimento comum de coesão que unifique os trabalhadores e crie laços de identidade entre si. Os trabalhadores não se sentem mais parte de um todo, não comungam de um espírito de classe que oriente suas demandas e delimite uma noção de grupo.
Hoje, vivemos na completa ausência de consciência horizontal de classe, de forma que os pequenos grupos de categorias estão soltos e abandonados à própria sorte. “Cada um cuida do seu”, pois não existe um “nós” que cuide de todos. Este egoísmo pulverizado, este abandono de cada categoria à própria sorte cria a sensação de náufragos à deriva, esperando por uma tábua de salvação (talvez um aumento no adicional de periculosidade, com sorte um percentual maior na PLR), uma ilha, um aviso luminoso no céu.
Desta forma, o discurso “Os trabalhadores demandam melhores condições” foi mudado para “Os bancários demandam”, “Os aeroviários demandam” – e não se chegou a esse cenário por acaso. Nossa estrutura sindical foi pensada para pulverizar os trabalhadores em diferentes categorias, cada uma pulverizada em diferentes bases locais, de tal sorte que a descentralização é a ordem do dia.
Chegou-se a tal ponto nesta empreitada de isolacionismo que a própria categoria de bancários foi fragmentada internamente: o sindicato decidiu que a assembléia de deliberação pelo fim da greve fosse dividida por banco, de tal forma que as deliberações tomaram lugar simultaneamente em vários locais diferentes, sem que os bancários de uma empresa pudessem acompanhar os debates e deliberações dos companheiros de categoria de banco distinto do seu.
E assim, pulverizados num sistema capitalista profundamente competitivo e opressor, largados à própria sorte, qualquer tentativa de reação a um sistema muito mais forte, coeso e organizado que o movimento dos trabalhadores é vista como tendente ao fracasso – ou ao menos considerada com grande cautela e desconfiança.
Esta ausência de horizontalidade, de qualquer articulação entre as categorias de trabalhadores aliou-se a outro fator essencial na efetividade da greve: a automação e informatização de serviços, cada vez menos dependentes do elemento humano. Com o advento de serviços bancários informatizados, o trabalhador é gradualmente substituído pela máquina: empréstimos, contratações, transações, consultas, tudo poder ser resolvido por computador, caixas automáticos, call center, aplicativos de celular. Sem um alinhamento das datas base de negociação entre a categoria dos trabalhadores de tecnologia de informática e os bancários, os efeitos da greve bancária são cada vez mais insípidos e os mecanismos de pressão perdem força.
Outro fator importante a considerar, talvez o mais importante, seja a atual crise de legitimidade do sindicalismo brasileiro. Há, regra geral, um clima de descrença em relação ao sindicato – e alguns fatores estruturais explicam muito disso.
A falta de representatividade das lideranças sindicais – seja das lideranças de base, seja da cúpula confederativa – é um dos pontos cruciais nesse quadro: em nossa pesquisa, dos 25 entrevistados, apenas 8 sabiam quem eram os dirigentes sindicais da atual gestão – e quase todos responderam que o sabiam “porque são os mesmos dirigentes no poder há 20 anos”. Além de demonstrar completa desvinculação da categoria com seus representantes, fica claro um cenário de representação estacionada, emperrada no tempo, em que os mesmos nomes ocupam a gestão por mandatos sem fim. Não há identificação dos representados com seus líderes sindicais – o bom e velho sindicalismo de porta de fábrica, em que os dirigentes estavam presentes nas indústrias, lojas, fábricas, enfim, no local de trabalho do empregado, próximos aos seus representados, conhecendo-os pelo nome, cientes de suas demandas. Hoje em dia, os trabalhadores sequer sabem quem os está representando – e esta distância e alheamento do sindicato transparecem em momentos chave em que ele precisa exercitar sua capacidade de mobilização da categoria – e falha ao tentar fazê-lo. Afinal, você teria como guia alguém que nunca viu e do qual desconfia, com o qual não tem a menor identificação ou afinidade?
Tão fraco é o vínculo entre dirigentes sindicais e trabalhadores que no quesito “Você se sente efetivamente representado pelo seu sindicato?”, apenas 4 bancários dos 25 perguntados respondeu positivamente. Isso é um dado alarmante dentro de um sistema supostamente democrático e representativo, voltado à luta pelas demandas da classe trabalhadoras, já naturalmente hipossuficiente: 84% dos entrevistados foram categóricos em afirmar que não se sentem efetivamente representados pelo seu sindicato. Isso evidencia uma grave crise de legitimidade do movimento sindical, que tem seus efeitos demonstrados no fracasso da tentativa de mobilização dos empregados.
Mas este distanciamento também ocorre pela verticalização de toda a estrutura sindical, de forma que os empregados têm a sensação de estarem excluídos do debate de questões relevantes. Uma questão crucial das demandas dos bancários ingressantes na Caixa Econômica após 1998 é a isonomia de alguns direitos em relação a empregados antigos, como licença prêmio e anuênio. É consenso entre os entrevistados que há grande frustração com as mesas de negociação, pois não se sabe como ocorrem tais negociações – não se sabe o que é discutido, em que termos, de que maneira; sente-se que este tema da isonomia nunca é trazido ao debate, ou trazido de forma insuficiente, pois nunca há qualquer manifestação dos patrões acerca disso. Essa sensação geral de alheamento do debate e descaso das cúpulas superiores permeia toda a base, gerando um sentimento de desconfiança e retraimento dos trabalhadores quanto ao sindicalismo como um todo.
Esta verticalização também se fez sentir claramente nesta greve. O Comando Nacional, ao “recomendar” à base que se posicionasse favorável ao acordo, definiu os rumos do movimento paredista. Havia um sentimento de conformação no ar, e vários colegas na assembléia disseram “Mas se o Comando já decidiu pelo fim da greve, não há mais o que fazer” – como se a cúpula do CONTRAF decidisse por todos os trabalhadores do país. Esse sentimento de hierarquia e distanciamento dos centros de poder enfraquece ainda mais os vínculos já débeis entre bancários e sindicato, como se as decisões emanassem de terceiros distantes e alheios às reais demandas da categoria, como se os trabalhadores não tivessem voz ou vez para decidir o rumo das negociações.
Ainda, esse aspecto da verticalização da estrutura sindical também é percebido em relação a determinadas bases – e sua influência e domínio sobre todas as outras, ainda que não haja uma hierarquia formal. Diante do anúncio de que as assembléias de São Paulo e do Rio de Janeiro tinham decidido pelo fim da greve, todos os ânimos esfriaram e o debate morreu. Inúmeros presentes exortaram ao fim dos debates e imediata votação, “pois já que São Paulo votou a favor, então não adianta mais continuar a greve”.
Por fim, há uma imagem extremamente negativa de uma gestão engessada no poder e pouco combativa. A baixa expectativa quanto ao sucesso da greve (72% dos entrevistados eram céticos quanto a um desfecho satisfatório) também ilustrou-se em inúmeros comentários dos entrevistados afirmando “Eles nunca conseguem nada, por que conseguiriam este ano?”. A imagem de um sindicato pouco combativo é também criada e alimentada a partir do próprio modelo estruturante do sindicalismo: a unicidade sindical que obriga os trabalhadores a “ficar com o único que tem” leva a grande insatisfação do bancário, por não poder escolher associar-se a um sindicato efetivamente combativo e atuante.
Esta restrição de representatividade fere de morte a idéia de um modelo democrático e livre, assim como o fato de haver notória aliança entre o governo e o movimento sindical brasileiro na atualidade. O fato de existir uma relação simbiótica entre as altas cúpulas decisórias do movimento sindical (CONTRAF e CUT) e o governo aniquila a legitimidade de suas decisões perante seus representados – pois como saber que interesses estão sendo representados lá em cima, naquele reino tão distante e inacessível ao pequeno trabalhador, que nada sabe das grandes negociações das quais não participa?
Tão explícito é esse conluio de interesses que o fim da greve foi uma manobra política: no 1º turno para eleições presidenciais, que ocorreu em 05 de outubro, seguiram na disputa Dilma Rousseff, candidata do PT concorrendo à reeleição, e Aécio Neves, do PSDB, partido com diretrizes neoliberais. No dia imediatamente seguinte, 06 de outubro, primeiro dia do 2º turno eleitoral, as cúpulas do movimento sindical recomendam encerramento imediato da greve. Não é preciso ser extremamente perspicaz para ver um padrão aí: uma greve àquela altura seria imensamente prejudicial à candidata do governo, de tal forma que era crucial para a corrida eleitoral que o movimento paredista fosse silenciado – e assim foi feito. E ainda que lidássemos com alguém sem nenhuma perspicácia, não era necessária: os dirigentes falaram abertamente na assembléia que precisávamos encerrar a greve para evitar a vitória do adversário à candidata do PT. Aludiram ao período em que o PSDB esteve no poder como um reinado de trevas, e tornaram o encerramento da greve um ato político.
Elencamos aqui alguns dos aspectos estruturantes que levam à erosão da relação trabalhador-sindicato, que também sedimentam o atual sentimento de desencanto e ceticismo em relação à atuação sindical. Partindo de estruturas viciadas, não é possível surgirem movimentos paredistas organizados, fortes e bem sucedidos; as falhas e lacunas do sistema sindical brasileiro moderno respingam em sua atuação, revelando rachaduras em sua estrutura que não podem mais ser ignoradas.
É preciso repensar um modelo supostamente representativo em que os trabalhadores não se sentem representados; um modelo livre que não permite pluralidade sindical; um modelo em que perpetuam-se os mesmos nomes numa gestão desacreditada. O sindicato, que deveria ser uma das instituições mais próximas e arraigadas ao seio dos trabalhadores, mostra-se mais longe que nunca de seus protegidos.
E como disse o dirigente sindical Marcos Aurélio Saraiva Holanda, por ocasião da assembléia de fim de greve:
“A proposta é boa? Não, nem de longe. Mas nós tivemos a proposta que este movimento grevista mereceu.”
Anexo – Questionário
1. Você é sindicalizado?
2. Você sabe quem são os dirigentes sindicais da atual gestão?
3. A proposta inicial dos bancos, antes da greve, lhe satisfazia?
4. No início da greve, você tinha expectativas de que a categoria conquistaria as demandas pleiteadas através do movimento grevista?
5. Você está satisfeito com as conquistas da greve de 2014?
6. Você se sente efetivamente representado pelo seu sindicato?