STF abre a porta da impunidade: a incoerência do julgamento das contas de gestão dos prefeitos pelas Câmaras em detrimento do parecer técnico dos Tribunais de Contas

06/11/2016 às 02:24
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Este artigo crítica a decisão do Supremo Tribunal Federal que fixou a competência exclusiva da Câmara Municipal para julgar as contas de gestão dos Prefeitos, tendo o auxílio do Tribunal de Contas.

PALAVRAS-CHAVE: Lei da Ficha Limpa. Direito Constitucional. Direito Eleitoral. Julgamento das Contas dos Prefeitos. Competência: Poder Legislativo ou Tribunal de Contas.

MOTS-CLÉS: Clean Law Record. Droit constitutionnel. La loi électorale. Arrêt de la Cour des maires. Compétence: législative ou Cour des comptes.

1. Introdução

    Com a entrada da Lei da Ficha Limpa no Ordenamento Jurídico Brasileiro, importante instrumento de combate aos Gestores Deletérios, iniciou-se a discussão jurídica nos Tribunais Regionais Eleitorais e até mesmo, entre os Juízes Singulares sobre o real poder dos pareceres emitidos pelos Tribunais de Contas. Questionava-se, se o fato do relatório ter sido elaborado por técnicos conhecedores das regras aplicáveis às Contas Públicas, não teria força de ocasionar a inelegibilidade mesmo sem o crivo das Câmaras Municipais. 

    Sem sombra de dúvida, essa é a posição mais adequada, contudo, o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário nº 848826, decidiu que é da Câmara Municipal a competência para julgar as contas de governo e as contas de gestão dos Chefes de Executivo, cabendo apenas ao Tribunal de Contas auxiliar o Poder Legislativo, emitindo parecer prévio e opinativo, que somente poderá ser derrubado por decisão de 2/3 dos Vereadores.

    Trata-se em nossa opinião de um erro gravíssimo cometido pelo Supremo Tribunal, pois representa a abertura de uma “brecha” para os Prefeitos que tiveram as contas reprovadas pelos Tribunais de Contas.  Importante destacar que 84% das declarações de inelegibilidade impostas pela Justiça Eleitoral são oriundas das rejeições de contas decretadas pelos Tribunais e não pelas Câmaras, local em que a governabilidade fala mais alto do que os princípios da probidade e moralidade.     

2. Controle das Contas Públicas

    A obrigação do Gestor Público de prestar contas dos recursos administrados é encargo inerente da própria função pública. Afinal, a própria Constituição Federal estabelece como princípios norteadores da Administração Pública: impessoalidade, legalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Desta forma, o Administrador não atua em nome próprio, gerindo dinheiro alheiro, e assim, deve apresentar de forma bem clara os gastos realizados para acompanhamento da sociedade. 

    Assim, estabelece o artigo 70 da Carta da República: 

“Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos, ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”

    Neste sentindo, o Doutrinador Hely Lopes Meirelles acrescenta:

“O dever de prestar contas é inerente a quem exerce poder. Quem exerce poder não o faz em nome próprio, mas de outrem. Tratando-se de autoridade administrativa, esta exercita poderes em nome da coletividade, que efetivamente os detém como seus. No só prestar contas, função do administrador, não está subsumida a satisfação de sua gestão, que só se exonerará de responsabilidade administrativa e político-administrativa com a deliberação, acolhendo-as como regulares”

    A prestação de contas anual visa constatar se houve respeito à Lei de Diretrizes Orçamentárias, bem como, da Lei do Orçamento Anual, e é tão importante que recebe uma proteção especial na Constituição Federal, já que, prevê a intervenção federal no Município na hipótese das contas não serem prestadas, dentro dos requisitos estabelecidos pela lei. 

    Além disso, o controle das Contas Públicas busca constatar que a Administração atua em consonância com os citados princípios constitucionais. Neste sentindo, aduz Maria Sylvia Zanella Di Pietro: 

“O controle constitui poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva, não podendo ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu. [...] É o poder de fiscalização e correção exercido pelos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sobre a Administração Pública”.

    A Carta da República, em seu artigo 71, determina que o controle externo da Administração Pública Federal é de incumbência do Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União, vejamos:

“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; […]

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.”

        Por fim, importante destacar que o controle é uma das funções essenciais do Estado Democrático de Direito.

3. Do Direito Eleitoral e as Inelegibilidades 

    O Direito Eleitoral representa uma das principais conquistas do Estado Democrático de Direito, já que é o meio pelo qual os Direitos Políticos são exercidos e desta forma, acontece a plenitude da soberania popular, ou seja, a inserção da sociedade nas decisões do próprio Estado. 

    Com os Direitos Políticos encontramos a capacidade eleitoral ativa que se refere no ato de votar, e também a capacidade eleitoral passiva, a possibilidade de ser votado. Contudo, para que o cidadão possa participar da escolha democrática, as eleições, é indispensável que respeite todos os requisitos de elegibilidade, e além disso, não se encaixe em nenhuma hipótese de inelegibilidade. 

    Justificando o objetivo das causas de inelegibilidade, o Jurista Alexandre de Morares afirma que se trata de uma proteção das eleições:

“..condição obstativa ao exercício passivo da cidadania. Sua finalidade é proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, conforme expressa previsão constitucional (art. 14, §9)”

    As causas de inelegibilidades estão previstas na Constituição Federal e em leis complementares e representam uma série de hipóteses de condutas geradoras da perda da capacidade do cidadão ser candidato e desta forma, disputar um cargo público eletivo. 

4.  Lei da Ficha Limpa 

    A Lei da Ficha Limpa é um instrumento jurídico de combate aos políticos que malfadaram a Adminstração Pública, e assim, busca elevar a idoneidade dos candidatos e combater a corrupção no Brasil. Fruto da pressão da sociedade, a Ficha Limpa nasceu do Projeto de Lei de Iniciativa Popular nº 519/09, após reunir mais de 1,3 milhão de assinaturas, e estabeleceu critérios bem rigorosos e impeditivos aos candidatos deletérios. Esse bloqueio já era feito por meio da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, a conhecida Lei das Inelegibilidades.

    De acordo com o Informativo do TSE, a lei da Ficha Limpa criou 14 hipóteses de inelegibilidades aplicáveis àqueles que nelas incorrem. São elas:

“A alínea ‘g’ é a que tem originado o maior número de registro de candidaturas negados entre as 14. Assim como as outras, a alínea demonstra o rigor do legislador ao elaborar a lei. Ela estabelece que ficam inelegíveis para as eleições dos próximos oito anos, contados a partir da decisão, aqueles que tiverem suas contas de exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável por ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário”

“Outra das 14 alíneas que vem provocando diversas negativas de registro de candidatos é a ‘j’. Ela torna inelegível por oito anos, a contar da eleição, os condenados, em decisão transitada em julgado ou de órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, compra de votos, por doação, arrecadação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma.”

“Também ficam inelegíveis, pelo mesmo prazo de oito anos, pela alínea ‘d’, quem tenha contra si representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou dada por órgão colegiado, em processo sobre abuso de poder econômico ou político.”

“Já a alínea ‘e’ impede de concorrerem, desde a condenação até oito anos após o cumprimento da pena, os cidadãos condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, pelos seguintes crimes: abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; contra a economia popular, a fé, a administração e o patrimônio públicos; e por crimes eleitorais, para os quais a lei traga pena privativa de liberdade, entre outros”

“A alínea ‘j” é outra que já originou uma série de indeferimentos de registro. Seu texto torna inelegíveis, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o prazo de oito anos após o cumprimento da pena, os condenados que tiveram os direitos políticos suspensos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

“As nove alíneas restantes estabelecem, entre outras, inelegibilidades para: o presidente da República, governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual ou distrital e vereador que renunciar a seu mandato para fugir de cassação; aqueles que beneficiarem a si ou a outros pelo abuso do poder econômico ou político; o governador e prefeito, e seus vices, que perderem os cargos por desrespeitarem dispositivos da constituição estadual ou da Lei Orgânica Municipal ou do Distrito Federal; e o cidadão e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral.”

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“São também inelegíveis, por outras alíneas, os condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por desfazerem ou simularem desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar justamente causa de inelegibilidade, e os excluídos do exercício da profissão, por decisão do órgão profissional, em decorrência de infração ético-profissional”

“A Lei ainda prevê a inelegibilidade para os seguintes cidadãos: os demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário; os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por causa de sanção, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar; e os declarados indignos do oficialato”.

    A entrada na Ficha Limpa no Ordenamento Jurídico Brasileiro se deu com a sanção do projeto em 04 de junho de 2010, pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

5.  Inelegibilidade ocasionada por decisão irrecorrível de Tribunais de Contas

    Em acórdão proferido, o Tribunal Superior Eleitoral fixou entendimento de que é possível o exame da inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso “I”, do artigo 1º da Lei da Ficha Limpa, com base em um decisão irrecorrível dos Tribunais de Contas, quando os Prefeitos agem na condição de ordenadores de despesa. 

    A discussão ora objeto deste artigo inicia-se a partir da análise da previsão normativa dos incisos I e II do artigo 71 da Constituição Federal.

“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público

    No supracitado artigo, a Carta Maior da República distingue claramente as competências do Tribunal de Contas e as do Poder Legislativo, no que se refere às contas prestadas anualmente pelo Chefe do Executivo Federal. Da mesma forma, deve-se entender tais competências no âmbito Estadual e também Municipal, pela aplicação do princípio da simetria expressamente previsto na Constituição em seu artigo 75. 

    Com base no artigo 71, inciso I, da Carta Magna, constata-se que, o conteúdo enviado ao crivo do Tribunal de Contas da União e consequentemente aos Tribunais de Contas Estaduais, é justamente o balanço geral do ente federativo, ou seja, um retrato das finanças. Aqui não se faz verificação aprofundada de responsabilidade individuais, mas apenas uma análise geral da gestão do Chefe do Executivo. Dessa forma, sobre as contas de Governo, ou seja, Contas Globais do Executivo, a competência do TCM é a de mera emissão de parecer.

    Situação diferente acontece no inciso III, do artigo 71 da Constituição Federal. Ele preceitua que cabe ao TCM: “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”.

    Data máxima vênia, o julgamento estabelecido no supracitado artigo não passa pela apreciação do Poder Legislativo, já que, a própria Constituição Federal não indica. Além disso, ao estabelecer “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros”, há a total e clara referência sobre as contas de Gestão, ou seja, referentes ao uso e aplicação do dinheiro público por gestores. Desta forma, cabe apenas ao Tribunal de Contas a competência para julgar.     

6. Conclusão

    Há portanto a devida comprovação da competência constitucional dos Tribunais de Contas para julgar as contas dos Prefeitos quando eles praticarem atos de gestão ou ordenação de despesas. Retirar a competência dos Tribunais de Contas de apreciar as contas de Gestão representa um ataque agressivo a atuação da Justiça Eleitoral no que se refere aos atos declaratórios de inelegibilidade dos gestores corruptos. Essa afirmação é devidamente justificada pelo fato do julgamento das contas pelas Câmaras Municipais incluir questões políticas, além de muitas vezes ocorrer com bastante atraso, ou até mesmo não ser efetuada. 

    Com o comportamento totalmente contrário estão os Tribunais de Contas, os quais julgam anualmente centenas de contas dos Prefeitos, possibilitando a Justiça Eleitoral declarar as inelegibilidades dos candidatos considerados maus administradores do erário público. 

    Desta forma, a decisão do STF representa uma clara e dura derrota da República Brasileira. Há uma clara concessão de um Habeas Corpus Preventivo aos Gestores Deletérios do Erário Público.

REFERÊNCIAS 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988.

CASTRO, José Nilo. Direito Municipal, 3. ed. Belo Horizonte: Del rey, 1992.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2014.

MEDAUAR, Odete, Revista de Informação Legislativa, Senado Federal.

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

MILESKI, Helio Saul. O controle da gestão pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

NERY JÚNIOR, Nelson, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 4. ed. São

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.

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Sobre o autor
Afonso Mendes Santos

Advogado, Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Consultor Legislativo com extensão em Processo Legislativo Municipal, Lei Orgânica Municipal e Orçamento Público Avançado pelo Instituto Brasileiro Legislativo (ILB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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