1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) cuida do Sistema Tributário Nacional dos artigos 145 a 162, consubstanciando em seu art. 1º os princípios fundamentais que visam defender a dignidade da pessoa humana, a manutenção da soberania brasileira e a cidadania.
Oliveira (1991, p. 17) assevera que o tributo constitui “uma das mais poderosas ferramentas colocadas à disposição das autoridades governamentais para impulsionarem, orientarem e conduzirem o desenvolvimento de determinado país”. Rawls (2000, p. 306) acrescenta que não somente para custear as atividades estatais, o tributo deverá atender a fins de corrigir desigualdades de concentração de renda com vistas a propiciar “valor equitativo da liberdade política e igualdade equitativa de oportunidades”.
Os princípios que orientam o Estado Democrático de Direito brasileiro devem estar alinhados aos valores trazidos pela Carta Magna. Por esta razão, Baleeiro (1998) ensina que a finalidade do tributo não é tão rígida, podendo adaptar-se aos anseios políticos:
“O tributo é vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ela se projeta sobre o solo de sua dominação. (...) No curso do tempo, o imposto, atributo do Estado, que dele não pode prescindir sequer nos regimes comunistas de nosso tempo, aperfeiçoa-se do ponto de vista moral, adapta-se às cambiantes formas políticas, reflete-se sobre a economia ou sobre os reflexos desta, filtra-se em princípios ou regras jurídicas e utiliza diferentes técnicas para execução prática.” (BALEEIRO, 1998, p. 1).
Alinhando-se os axiomas constitucionais aos preconizados por John Rawls (2000) e Amartya Sen (2014), tem-se que a justiça deve ser perseguida acima do critério da eficiência. O princípio da eficiência é chamado por Rawls (2000) de princípio do “Ótimo de Pareto”, segundo o qual uma configuração é eficiente sempre que é impossível mudá-la de modo a fazer com que uma pessoa melhore a sua situação sem que, ao mesmo tempo, outra pessoa piore a sua.
Geralmente aplicada na economia, tal teoria admite que ser eficiente não significa ser necessariamente justo. Todavia, segundo Rawls (2000) e Sen (2014), a justiça deve tratar os menos favorecidos da sociedade de maneira diferenciada e estruturar o Estado para que o conjunto das normas e instituições permitam o desenvolvimento pessoal e a efetivação das liberdades.
Por esta razão, as estruturas definidas pela legislação tributária brasileira devem considerar critérios de justiça tributária não apenas sob a perspectiva da equidade e da seletividade, mas inclusive das desigualdades territoriais, ainda mais em se considerando um país de tamanha extensão territorial como é o Brasil.
O Código Tributário Nacional (CTN), Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966, institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios.
Como requisitos necessários para uma estrutura tributária adequada, Musgrave e Musgrave (1980, p. 178) apontam que:
“• A distribuição do gravame tributário deve ser eqüitativa;
• As imposições de “excesso de gravame” devem ser minimizadas;
• A estrutura tributária deve favorecer a utilização da política tributária com relação aos objetivos de estabilização e crescimento;
• O sistema tributário deve permitir uma administração eficiente e isenta de arbitrariedades; e
• Os custos administrativos e de atendimento às exigências tributárias devem ser tão baixos quanto for compatível com os outros objetivos.”
O sistema tributário nacional possui o poder de afetar a disponibilidade de renda que as pessoas poderão gozar após a tributação. Por essa razão, afeta as escolhas possíveis dos cidadãos brasileiros. Acerca da importância de se pensar nos cidadão, pode-se citar que:
“Os Estados Unidos também são muito mais ricos hoje do que o México ou o Peru graças ao modo como as suas instituições, tanto econômicas quanto políticas, geram incentivos para empresas, indivíduos e políticos. Cada sociedade funciona com um conjunto de regras econômicas e políticas criadas e aplicadas pelo Estado e pelos cidadãos em conjunto. As instituições econômicas dão forma aos incentivos econômicos: incentivos para buscar mais educação, para poupar e investir, para inovar e adotar novas tecnologias, e assim por diante. É o processo político que determina a que instituições econômicas as pessoas viverão submetidas, e são as instituições políticas que ditam como funciona esse processo.” (ACEMOGLU, ROBINSON, p. 32)
Destarte, as instituições influenciam o comportamento e criam uma rede de incentivos que irão delimitar o sucesso ou o fracasso dos países.
Recorrendo a Mankiw (2009), cabe apontar que o efeito da tributação atua diretamente na economia, impactando de forma inversamente proporcional o tamanho do mercado, que tende a reduzir e ficar abaixo do ideal com elevação da tributação, consequentemente deixando o mercado menos eficiente e impedindo ganhos sistêmicos para toda região:
“O imposto é um peso morto porque induz compradores e vendedores a uma mudança de comportamento. O imposto eleva o preço pago pelos compradores de modo que eles consomem menos. Ao mesmo tempo, reduz o preço recebido pelos vendedores, assim eles passam a produzir menos. Por causa dessas mudanças de comportamento, o tamanho do mercado diminui e fica abaixo do ideal. As elasticidades da oferta e da demanda medem o quanto vendedores e compradores respondem às variações no preço e, portanto, determinam quanto um imposto distorce o resultado de mercado. Assim, quanto maiores as elasticidades de oferta e demanda, maior o peso morto de um imposto.” (MANKIW, 2009, p. 166) (grifos nossos).
Considerando o ocorrido no Município de Mariana, em Minas Gerais, em 05 de novembro de 2015, quando do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco e consequentemente impactos catastróficos não somente do ponto de vista do ambiente físico, mas socioeconômicos, culturais e humanos (IBAMA, 2015), o presente trabalho pretende demonstrar a possibilidade e a viabilidade da instituição de regime especial de tributação com vistas a fomentar a recuperação econômica de regiões impactadas por grandes desastres como o ocorrido.
Para tanto, o artigo aborda aspectos relacionados a regimes especiais de tributação através da revisão de literatura, bem como se valendo da legislação infraconstitucional, e em especial da legislação do Estado de Minas Gerais, busca construir arcabouço jurídico que corrobore a possibilidade de instituição de regime diferenciado em âmbito estadual.
O estudo ainda traz a experiência da política fluminense de recuperação econômica de áreas ambientalmente degradadas mediante a implantação de condomínios industriais e os principais aspectos relacionados à implementação de zonas de processamento de exportações.
2. DO REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO EM MINAS GERAIS
A CR/88 preconiza a autonomia de seus entes federados ao estabelecer em seu artigo 1º que “a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”.
De acordo com Reis (2010), a autonomia dos entes federados cumpre o papel de resguardar a unidade da ordem jurídica total do Estado Federal, garantindo um sistema jurídico único e um sistema político integrado e integral. Ao passo que Baracho (1982) denomina Federalismo Fiscal a forma como os entes federados se organizam em relação às decisões e ao controle de seus recursos financeiros.
Dessa feita, Reis (2010) assevera que para cada ente federado a Constituição Federal de 1988 atribuiu a possibilidade privativa de tributar determinado fato ou ato gerador de riqueza, sem ingerência de outro ente.
Acerca da autonomia dos Estados-federados brasileiros, Coêlho (2009, p. 63) acrescenta que:
"A característica fundamental do federalismo é a autonomia do Estado-Membro, que pode ser mais ou menos ampla, dependendo do país de que se esteja a cuidar (...). Sendo a federação um pacto de igualdade entre as pessoas políticas, e sendo a autonomia financeira o penhor da autonomia dos entes federados, tem-se que qualquer agressão, ainda que velada, a estes dogmas, constitui inconstitucionalidade".
Grosso modo, a priori, não existe óbice jurídico à concessão de benefícios regionais, tendo em vista a legitimidade do fomento público em região assolada por grandes desastres. Nesse fim, a Constituição do Estado de Minas Gerais, em seu art.152 dispõe que:
Art. 152 - É vedado ao Estado, sem prejuízo das garantias asseguradas ao contribuinte e do disposto no art. 150 da Constituição da República e na legislação complementar específica:
I - instituir tributo que não seja uniforme em todo o território estadual, ou que implique distinção ou preferência em relação a Município em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivo fiscal destinado a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do Estado; (grifos nossos).
Em atenção a esse desiderato, o Estado de Minas Gerais, no ano de 2011, alterou a Lei nº 6.763/75, que consolida a legislação tributária no Estado de Minas Gerais, para introduzir beneficio fiscal a municípios mineiros compreendidos pela área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), a saber:
Art. 32-A - Fica o Poder Executivo autorizado a conceder crédito presumido do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS -, na forma, no prazo e nas condições previstos em regulamento:
(...)
IX – por meio de regime especial, ao estabelecimento signatário de protocolo firmado com o Estado, de modo que a carga tributária, nas operações de saída por ele promovidas, resulte em, no mínimo, 3% (três por cento);
(...)
Parágrafo único. Na hipótese do inciso IX do caput, a concessão do crédito presumido, por meio de regime especial, poderá resultar em carga tributária inferior a 3% (três por cento) caso o estabelecimento signatário de protocolo firmado com o Estado esteja localizado em Município compreendido na área de atuação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. (grifos nossos).
Verifica-se in casu a adoção de critério regional para a disponibilização de incentivos fiscais para municípios localizados na área da SUDENE.
De mesma sorte, pode-se apontar as legislações dos estados do Rio de Janeiro e do Maranhão. Assim, a lei maranhense n.º 10.349, de 20 de outubro de 2015, criou o Programa Especial de Desenvolvimento para municípios maranhenses que façam parte de Rede Integrada de Desenvolvimento (RIDE). Ao passo que a lei fluminense n.º 6.979, de 31 de março de 2015, instituiu tratamento tributário especial de caráter regional aplicado a estabelecimentos industriais.
Há de se reforçar que concessões de benefícios a determinados setores ou segmentos da economia, seja com isenções ou seletividade de alíquotas de determinados tributos, não guardam relação às justificativas de caráter espacial aqui abordadas, potencialmente ocasionando por diversos momentos, inclusive, a denominada “guerra fiscal”.
Como mecanismo de harmonização dos diversos interesses estaduais, a Constituição da República Federativa do Brasil estipula, em seu art.155, §2º, inciso XII, alínea “g” que os benefícios fiscais concedidos no âmbito do ICMS devem ser outorgados mediante deliberação dos estados e Distrito Federal, consoante lei complementar. Tal norma é a Lei Complementar nº 24, de 07 de janeiro de 1975, que concretiza a forma de realização das decisões conjuntas através do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ):
Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta lei.
Parágrafo único - O disposto neste artigo também se aplica:
I - à redução da base de cálculo;
II - à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros;
III - à concessão de créditos presumidos;
IV - à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus;
V - às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data.
Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.
§ 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação.
§ 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
§ 3º - Dentro de 10 (dez) dias, contados da data final da reunião a que se refere este artigo, a resolução nela adotada será publicada no Diário Oficial da União.
Tal normatização busca, basicamente, evitar a concessão abusiva de benefícios fiscais pelos entes federados na competição para atrair investimentos privados. Como se sabe, a despeito desta regulamentação, os estados vem concedendo, de forma unilateral, diversas vantagens fiscais no intento de atrair investimentos privados. A respeito, tem-se a seguinte decisão do STF referente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4.481:
I. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL QUE INSTITUI BENEFÍCIOS FISCAIS RELATIVOS AO ICMS. AUSÊNCIA DE CONVENIO INTERESTADUAL PRÉVIO. OFENSA AO ART. 155, § 2o, XII, g, DA CF/88. II. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS.
1. A instituição de benefícios fiscais relativos ao ICMS só pode ser realizada com base em convênio interestadual, na forma do art. 155, §2º, XII, g, da CF/88 e da Lei Complementar no 24/75.
2. De acordo com a jurisprudência do STF, o mero diferimento do pagamento de débitos relativos ao ICMS, sem a concessão de qualquer redução do valor devido, não configura beneficio fiscal, de modo que pode ser estabelecido sem convênio prévio.
3. A modulação dos efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade decorre da ponderação entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, uma vez que a norma vigorou por oito anos sem que fosse suspensa pelo STF. A supremacia da Constituição e um pressuposto do sistema de controle de constitucionalidade, sendo insuscetível de ponderação por impossibilidade lógica.
4. Procedência parcial do pedido. Modulação para que a decisão produza efeitos a contatar da data da sessão de julgamento. (ADI 4.481 – Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Data do julgamento: 11/03/2015.)
Cabe frisar que a não aprovação dos incentivos fiscais pelo CONFAZ, nos moldes estipulados no art.155, §2º, inciso XII, alínea “g” da Constituição Federal, tem levado estados destinatários dos produtos contemplados com benefício advindo de outro ente federado a “glosarem” os créditos do ICMS, tornando ineficaz o ato concessivo na origem. Tal circunstância tem trazido instabilidade econômica e insegurança jurídica às empresas.
Ao mesmo tempo, o Estado de Minas Gerais, como mecanismo de autotutela da concessão unilateral e abusiva de benefícios fiscais por outros entes da federação, se vale de contramedida através do qual lança mão de incentivos unilaterais, tendo em vista o equilíbrio da competição por investimentos privados. Tal inteligência pode ser demonstrada no dispositivo abaixo, extraído da Lei 6.763/75:
Art. 32-K. Fica o Poder Executivo autorizado a conceder crédito presumido do ICMS de até 100% (cem por cento) do imposto devido nas operações de saída, desde que a medida adotada seja adequada, necessária e proporcional para assegurar a isonomia tributária, igualdade competitiva e livre concorrência, enquanto perdurarem os efeitos decorrentes da presunção de constitucionalidade de ato normativo de outra unidade da Federação que conceda benefício ou incentivo fiscal ou financeiro-fiscal não previsto em lei complementar ou convênio celebrado nos termos da legislação específica.
O supracitado normativo é um dos autorizativos para a concessão de benefícios fiscais unilaterais no estado de Minas Gerais. Contudo, tal dispositivo vem sendo contestado no STF por meio da ADI 5.151, proposta pelo governador do Estado de São Paulo, sendo que atualmente se encontra suspenso cautelarmente.
Ainda em Minas Gerais, a Lei nº 15.980, de 13 de janeiro de 2006, criou o Fundo de Equalização do Estado de Minas Gerais com o objetivo de aumentar a competitividade do Estado para atrair e manter empresas que apresentem ou desenvolvam empreendimentos de importância estratégica para a expansão ou modernização das cadeias produtivas ou de suas aglomerações produtivas locais, através da concessão de financiamentos.
Já a Lei Estadual nº 19.822, de 22 de novembro de 2011, acrescentou ao rol dos permissivos para percepção dos referidos incentivos a localização de empreendimentos nos municípios compreendidos na área de atuação da SUDENE, restando certa a compatibilidade do mecanismo com o critério espacial de incentivo.
Diante de tal circunstância, verifica-se que inexiste óbice à inclusão no mesmo rol, ainda que de forma transitória, de empreendimentos localizados em área afetada por desastre como o ocorrido na região de Mariana.
Outrossim, conforme o art. 6º, §1º da Lei nº 15.981, de 16 de janeiro de 2006, alterada pela suscitada Lei nº 19.822, de 22 de janeiro de 2011, o Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento (FINDES) também traz tratamento especial às áreas compreendidas no âmbito de atuação do SUDENE.