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Penhora da remuneração do devedor:

possibilidade à luz da Constituição

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01/02/2017 às 12:40
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4. CPC DE 2015 E A IMPENHORABILIDADE DA REMUNERAÇÃO DO EXECUTADO: INOVA, MAS NÃO O SUFICIENTE

No que tange à impenhorabilidade dos salários e vencimentos, o novel Estatuto Processual (Lei 13.105 de 2015) dispõe que:

Art. 833.  São impenhoráveis:

[...]

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;

[...]

§ 2o O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o.

Da leitura do dispositivo supracitado, é possível concluir que o novo CPC passa a permitir que os ganhos alimentares do devedor que superem o patamar de cinquenta salários mínimos poderão ser livremente penhorados no bojo de qualquer execução, mesmo que o crédito exequendo não tenha natureza alimentar.

Sem dúvida, caminhou muito bem o legislador ao mitigar, ainda que parcialmente, o dogma da impenhorabilidade absoluta da remuneração do executado. Contudo, parece que a inovação do legislador de 2015 não se afigura suficiente para enfrentar de maneira contundente a já mencionada crise da execução. É que o patamar a partir do qual o novo CPC torna possível a penhora da remuneração é excessivamente elevado.

Cinquenta salários mínimos correspondem, atualmente, a cerca de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais). Ora, na realidade brasileira, pouquíssimos são aqueles que logram receber remunerações de tão elevado valor. Isso fará com que a novidade da possibilidade da penhora de salários tenha aplicação restritíssima, esvaziando em grande medida essa importante norma processual e deixando fora de seu âmbito sujeitos que, embora não aufiram supersalários, ostentam ganhos mais do que suficientes para arcar com suas dívidas e manter padrão de vida minimamente digno, como, por exemplo, os integrantes da classe média.

Não se pode, entretanto, ignorar a indiscutível importância de uma norma que prevê a penhorabilidade do salário independentemente da natureza do crédito perseguido:

Algum leitor poderia afirmar que o valor – 50 salários mínimos mensais – é exorbitante para a realidade brasileira, sendo que a novidade, portanto, terá pouco efeito prático e que seria irrelevante. De fato, é verdade que o valor é elevado, pois são poucos os devedores que percebem mais de R$ 40 mil mensais. É igualmente verdade que mais adequado para a realidade brasileira um piso em valor menor.

Porém, reitere-se: o mais importante é a quebra do dogma de absoluta impenhorabilidade de salário. E isso abre o caminho para que, nas próximas reformas processuais, o valor seja minorado – e, também, para que futuramente seja possível a inserção de penhora de bem de família acima de determinado valor. O primeiro passo, que é por onde toda jornada se inicia, foi dado.

Em uma perspectiva histórica, a novidade do CPC de 2015 se mostra ainda mais significativa se considerarmos que houve tentativa frustrada, ainda na vigência do CPC de 1973, de limitar a impenhorabilidade absoluta da remuneração. A Lei 11.382 de 2006, enquanto projeto, previa a possibilidade de penhora de salários e imóveis residenciais de elevador valor. Contudo, os dispositivos que contemplavam as referidas previsões foram objeto de veto presidencial, que, embora tenha reconhecido a razoabilidade da proposta, filiou-se inexplicavelmente ao dogma da impenhorabilidade asseverando que

A tradição jurídica brasileira é no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.

Por essas razões, boa parte da melhor doutrina lamentou o veto aposto pelo Presidente da República às inovações pretendidas pela Lei 11.382 de 2006.

De toda forma, a fixação de um percentual rígido de impenhorabilidade não se afigura, data vênia, a melhor solução para o problema ora debatido: o legislador deve evitar limitação tão hermética à penhora e possibilitar uma atuação mais ativa do magistrado no caso concreto levado a juízo. Em cada situação concreta, o juiz deve sopesar os direitos em jogo e, só então e de maneira fundamentada, delimitar o âmbito de incidência da penhora:

Assim, não se deve permitir que a execução reduza o executado a uma situação indigna; no entanto, o mesmo princípio não autoriza que o executado abuse desse direito, manejando-o para indevidamente impedir a atuação executiva. (...) Pensamos assim que, em atenção às peculiaridades do caso, não tendo sido localizados outros bens penhoráveis, é possível a penhora de parte da remuneração recebida pelo executado, em percentual razoável que não prejudique seu acesso aos bens necessários à sua subsistência e à sua família.

Com efeito, nos parece que a autorização legal a partir de um determinado valor se apresenta como apenas uma dentre as hipóteses que permitem a penhora da remuneração. Em outras palavras: além do permissivo legal, no bojo do qual o legislador já efetuou prévia ponderação entre os interesses em jogo, seria possível penhorar a remuneração do executado em outros casos, a partir de um esforço ponderativo do magistrado que conduz a atuação executiva. Havendo restrição desarrazoada ou desproporcional ao direito à tutela executiva, sem que a proteção do direito do devedor em tal medida se justifique, deve-se prestigiar o primeiro:

[...] as hipóteses de impenhorabilidade podem não incidir em determinados casos concretos, em que se evidencie a desproporção/desnecessidade/inadequação entre a restrição a um direito fundamental e a proteção de outro. Ou seja: é preciso deixar claro que o órgão jurisidicional deve fazer o controle de constitucionalidade in concreto da aplicação das regras de impenhorabilidade, e, se a sua aplicação revelar-se inconstitucional, porque não razoável ou desproporcional, deve afastá-la, construindo a solução devida para o caso concreto. Neste momento, é imprescindível rememorar que o órgão jurisdicional deve observar as normas garantidoras de direitos fundamentais (dimensão objetiva dos direitos fundamentais) e proceder ao controle de constitucionalidade das leis, que podem ser constitucionais em tese, mas in concreto, podem revelar-se inconstitucionais.

Essa possibilidade decorre não apenas do poder-dever que tem os magistrados de efetuar o controle difuso de constitucionalidade, mas também de seu poder geral de efetivação das decisões que proferem. O mister de dizer o direito não se resume a reconhecer direitos e obrigações no plano abstrato, sendo inerente à jurisdição concretizar no mundo dos fatos o conteúdo das decisões que profere.

Alexandre Freitas Câmara defende, por essa razão, que deve ser reconhecido ao juiz o poder de se valer de meios executivos atípicos nas hipóteses em que os meios típicos se revelarem insuficientes ou inadequados para a materialização do direito subjetivo, ao que se subsumiria com perfeição a hipótese da penhora da remuneração do devedor que não dispõe de outros bens penhoráveis.

Por essas razões, considera-se que, não tendo o executado bens livres para a penhora, a impenhorabilidade da sua remuneração deve ser afastada pelo magistrado, por meio de decisão fundamentada e que preserve a intangibilidade do patrimônio mínimo necessário à sua existência digna.


5. CONCLUSÃO

A execução permanece sendo o ponto sensível da tutela processual. Os direitos de crédito, embora reconhecidos e chancelados pelo Poder Judiciário, não logram obter satisfação. A crise da execução prejudica o credor, que vê frustrado seu direito, bem como o Estado, que tem sua credibilidade e sua aptidão para resolução de conflitos postas em xeque.

Nesse cenário de estímulo ao inadimplemento, só o devedor sai ganhando. A enorme, e inflexível gama de exceções à responsabilidade patrimonial configura, sem sombra de dúvidas, um privilégio injustificável conferido ao executado, que goza de posição relativamente confortável enquanto réu na execução, pois é praticamente liberado de arcar com a obrigação contraída. Esse é, na análise da mais avalizada doutrina, o maior problema que encontra a atividade executiva na busca por efetividade.

Em resposta ao contexto supra, o presente trabalho propõe uma leitura constitucional do processo civil, pugnando pela interpretação dos direitos de credor e devedor enquanto princípios que devem ser ponderados em cada caso concreto, de forma a afastar violações injustificadas a um ou a outro.

Em outras palavras: o que se buscou defender foi a viabilidade de, em qualquer caso, ser possibilitado ao juiz determinar que a atividade executiva recaia sobre a remuneração do executado, por imposição do princípio constitucional da efetividade da tutela executiva. Qualquer regra que, a priori, vede de maneira absoluta a penhora dos vencimentos do devedor, sem considerar que, à dignidade deste se contrapõe o direito fundamental à tutela executiva do credor, seria contrária à axiologia constitucional, devendo ser afastada no caso concreto.

Desta forma, caberia ao magistrado, in casu, - como decorrência de seu poder-dever de efetivar as decisões que profere - delinear os contornos da penhora da remuneração do executado, sempre cuidando para não violar o mínimo existencial do mesmo.

O advento do Novo Código de Processo Civil, nesse particular, representa inegável porém tímido avanço na flexibilização do dogma da impenhorabilidade do salário. Sua importância, contudo, não pode ser negligenciada: o primeiro passo é o começo de toda caminhada.

Assim é que, longe de pretender oferecer uma fórmula mágica para a solução dos problemas que acometem o Judiciário, se propõe, com o presente trabalho, a revisão dos limites à penhora da remuneração como meio apto a abrandar, em parte, o enorme problema da falta de efetividade da execução.


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RANGEL, Talita Leixas. Penhora da remuneração do devedor:: possibilidade à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4963, 1 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54047. Acesso em: 28 mar. 2024.

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