Judicialização da política, ativismo judicial e o novo papel do poder judiciário

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28/11/2016 às 16:11
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3 LEGITIMIDADE E LIMITAÇÕES

3.1 Legitimidade do protagonismo judicial

O pós-positivismo, consolidado no constitucionalismo, busca restabelecer a relação entre direito e ética através da materialização da relação entre valores, princípios, regras e a teoria dos direitos fundamentais. Promoveu uma modificação de paradigma, ao passo que enaltece a força normativa da Constituição e promove uma nova maneira de encarar e interpretar o direito, na perspectiva de um processo legítimo, apto e eficaz à efetiva tutela dos direitos fundamentais. Nesse novo ambiente jurídico, os princípios, em razão da oxigenação da ciência jurídica contemporânea, são elevados a importantes e autênticos elementos de concretização jurisdicional. A doutrina pós-positivista implica em alterações no paradigma até então vigente. (FERNANDES, BICALHO, 2011).

Nesse contexto, a realização dos paradigmas principiológicos previstos na Constituição deverá prevalecer, mesmo na ausência de previsão normativa ordinária ou regulamentária, pois omissões legislativas não podem obstruir os avanços da Ciência jurídica.

Perante lacunas jurídicas, sejam elas de natureza axiológica, ontológica ou até mesmo normativa, o Órgão Judicante deve formular uma forma de concreção com base na realidade fático-valorativa para dar efetividade aos direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal.

 

 

[...] uma Constituição de princípios, colocada em prática por juízes independentes, não é antidemocrática. Ao contrário, uma das precondições da democracia legítima encontra-se na exigência de que o governo trate todos os cidadãos como iguais e respeite suas liberdades fundamentais e sua dignidade. (DWORKIN, 2003, p. 172). 

 

Uma das principais críticas à expansão e à posição atuante de Judiciário consiste na suposta inexistência de legitimidade democrática desse Poder, uma vez que não possui membros eleitos e não representa a vontade popular. Entretanto, Barroso (2009) ensina que existem duas justificativas que conferem legitimidade a essa postura do Judiciário, uma de natureza normativa e outra filosófica.

A primeira, de natureza normativa, decorre do fato da própria Constituição atribuir esse poder ao Judiciário de forma expressa, especialmente ao Supremo Tribunal Federal.  Os Estados democráticos geralmente designam uma parcela de poder político para ser exercida por agentes que não ingressam no poder público através de eleições, e que exercem função de natureza predominantemente técnica e imparcial. A ideia de que magistrados não devem possuir vontade política própria deve ser vista com muita cautela, uma vez que juízes e tribunais não desempenham uma atividade puramente mecânica. Na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, tornam-se, em algumas circunstâncias, coparticipantes do processo de criação do Direito. (BARROSO, 2009).

A segunda justificativa para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é de natureza filosófica:

 

 

O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia significa soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes. Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um fórum de princípios – não de política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas. (BARROSO, 2009, p. 11-12).

 

 

É importantíssimo ressaltar aqui que os juízes e tribunais só atuam legitimamente quando são capazes de fundamentar racionalmente suas decisões com base na Constituição, devendo ocupar o papel de protagonismo somente quando se tratar de preservar a democracia e os direitos fundamentais. Assim, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco. (BARROSO, 2009).

Sob um enfoque processual, “a legitimidade política das decisões deve provir não da escolha pelo voto dos juízes, mas da efetiva participação dos litigantes diante de um Estado-juiz, num processo dialético que redundará em decisão-síntese de conflito” (ZUFELATO, 2013, p.313).

Noutro giro, tem-se suposta violação ao princípio da separação dos poderes. Cabe salientar aqui que esse princípio deve ser e analisado levando-se sempre em consideração o contexto histórico em que surgiu: a época do absolutismo. Naquele momento, o governante detinha todas as funções governamentais, sendo responsável por criar as normas jurídicas, administrar um país e, ainda, julgar as demandas de seu povo. Assim, a separação dos poderes tinha o objetivo de limitar o arbítrio estatal.

Ocorre que a situação atual é completamente diferente. No Brasil, a Constituição de 1988 significou o início de uma nova ordem social, responsável por afirmar o atual Estado Democrático Social de Direito, a quem incumbe concretizar, através de políticas públicas, diversos princípios previstos.

Como estudado, atualmente cada Poder exerce suas funções típicas, bem como funções atípicas, que são de natureza típica dos outros órgãos. Tal fato não fere o princípio da separação de poderes, já que essas competências foram previstas constitucionalmente pelo constituinte originário.

Aranha Filho (2014) aduz que as competências estatais foram repartidas apenas por um critério funcional, de forma que devem ser vistas tão somente como meios para atingir os objetivos do Estado brasileiro, mas nunca como um fim em si mesmas. Ou seja, em seu entender o Estado é uno e, à luz do art. 3º, inciso IV, da Constituição, tem como objetivo fundamental promover o bem e todos.  A teoria em questão, portanto, não deve servir de argumento às críticas lançadas em torno do ativismo judicial, pois juntamente pelo contrário, ela legitima o Poder Judiciário a proteger, como expressão de um todo, os direitos constitucionais.

Inclusive, hodiernamente, o juiz não pode invocar o princípio da separação dos poderes para deixar de julgar quando devidamente provocado. Diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, ele precisa admitir a ação, examinar o mérito e acolher ou negar o pedido.

Na visão de Cappelletti (1999), o magistrado está em posição adequada e propícia para proteger os direitos fundamentais e para garantir o acesso da sociedade excluída ao sistema de valores democráticos, o que representa um fortalecimento da democracia através da atuação do Judiciário. Em afirmação à legitimidade democrática da criação do direito jurisprudencial, ele aduz que a ideia de representatividade plena por parte dos poderes políticos seria uma utopia, e que os tribunais podem contribuir para a representatividade do sistema político ao possibilitar amplo acesso ao processo judicial.

Por fim, defende-se a legitimidade do ativismo judicial no Brasil, desde que esteja prolatando decisões compatíveis com os preceitos constitucionais e com os valores atuais do povo.

 

 

3.2 Limitações à atuação judicial

As experiências totalitárias que terrificaram o mundo durante a Segunda Guerra Mundial acarretaram uma expansão do Estado Constitucional de Direito e consequente ampliação normativa da Constituição. Diante dessa situação, com base na supremacia da Constituição, foram implementados tribunais constitucionais para concretizar o direito constitucional.

Atualmente, diante das omissões do Legislativo e do Executivo, o ativismo do Judiciário encontra-se cada vez mais em evidência.  A regra do ordenamento jurídico brasileiro é a discricionariedade do legislador, no entanto, quando este possui a obrigação de editar norma regulamentadora de preceito fundamental, mas não o faz, incide em omissão inconstitucional. Nesse caso, o judiciário, quando devidamente provocado, não pode deixar de atuar. Salienta-se, entretanto, que tal atuação deve se dar de acordo com a lei e na medida do que foi levado a sua apreciação.

Coma a ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988, as inércias do executivo e as omissões legislativas passaram a poder ser supridas pelo judiciário, justamente em razão da previsão na Carta Magna e dos mecanismos por ela disponibilizados. (STRECK, 2000).

Entretanto, muitas vezes existe uma crença cega e muito perigosa de que os juízes e tribunais são a melhor opção para analisar e oferecer resposta às aspirações e aos problemas modernos. Mas não são os juízes que detêm o papel principal de promover as transformações sociais. Justamente pelo contrário, o Judiciário tende a ser mais reativo que ativo, mais conservador do que revolucionário. (SAMPAIO, 2011). Portanto, ao ativismo judicial não deve ser tido como uma solução à crise institucional do Legislativo e Executivo. A postura ativista do Judiciário deve ser sempre equilibrada e conciliada como um elemento natural de uma democracia moderna.

O juiz federal Sérgio Moro, que ganhou notoriedade ao conduzir os processos da operação da Lava Jato, afirmou recentemente sobre os riscos de que a população enxergue os juízes num patamar superior ao dos políticos. "Não devemos ter a ilusão que o Judiciário vai mudar o país ou que o juiz vai ser o salvador. O Congresso e o Executivo também têm que trabalhar". (MORO apud STRUCK, 2015).

Não é possível que uma democracia seja efetivada e mantida sobre os ombros de juízes. Um governo não é feito de julgamentos. Deve existir harmonia entre os poderes, sem que um se sobreponha ao outro. Mas entende-se que um ativismo judicial que se apresente em uma atitude responsável, pautado na razoabilidade e na defesa de valores supremos da nossa Constituição, não viola a harmonia requerida para o equilíbrio político.

A definição de possíveis limites para a atuação do Judiciário em um papel ativista não constitui tarefa simples, pelo que não se pretende aqui o esgotamento do assunto. Existe uma linha tênue “entre a ousadia e criatividade no exercício da jurisdição constitucional, indispensáveis à rápida adaptação do sistema jurídico, diante de novas necessidades sociais, e o insidioso descaminho do ativismo judicial”. (RAMOS, 2010, p. 313).

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Partindo de uma análise jurisprudencial, é imperativo concluir que o ativismo judicial nem sempre possui caráter negativo. A posição ativista adotada pelo Poder Judiciário pode ser prejudicial em algumas situações, mas pode vir a ser muito benéfica em outras.

Segundo Valle (2009), nos casos desarrazoados de omissão legislativa, o ativismo se justifica em razão da força normativa da Constituição, segundo a qual o texto constitucional é um documento jurídico imperativo, dotado de eficácia jurídica. Em função dessa força normativa, a concretização da Constituição não pode ficar reservada exclusivamente à discricionariedade do legislador ordinário.

Contudo, é impossível negar que, em algumas situações, uma postura mais incisiva do Poder Judiciário pode significar indevida interferência no campo de atuação do Poder Legislativo. Nesse sentido, a atuação do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional, deve respeitar limites, pois o ativismo judicial desprovido de critérios pode caracterizar uma violação ao princípio da separação dos poderes.

Nessa linda de entendimento, Barroso (2009, p. 19) elucida:

 

 

O Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionalidade, motivação, correção e justiça.

 

 

No mesmo sentido, Tavares (1998, p. 114) diz que “as escolhas políticas feitas pelo legislador, no uso de sua discricionariedade legislativa, desde que mantenham coerência com o restante do sistema constitucional, não podem ser objeto de invalidação pelo Poder Judiciário. Nesses casos, deve prevalecer o poder da maioria democraticamente eleita”.

Ainda, as decisões do Judiciário não podem ser produto de discricionariedade e das convicções meramente pessoais do julgador. Em quaisquer casos as respostas e decisões deverão ser justificadas e exaustivamente motivadas pelos princípios jurídicos que se coadunam com a democracia e com o direito de igual proteção para todos. (VITÓRIO, 2011).

No contexto da definição dos limites do Supremo Tribunal Federal, especial atenção deve ser dada ao princípio da aplicação da interpretação conforme a Constituição. A Corte não pode fazer interpretações que não estejam abrangidas no próprio objeto interpretado, pois a letra da lei é o limite da interpretação constitucional, que, caso seja ultrapassado, o Tribunal estaria substituindo-se ao legislador.

Na implementação e no desenvolvimento de políticas públicas, o Judiciário poderá intervir mediante observação dos critérios de razoabilidade, da reserva do possível e do mínimo existencial. O critério da razoabilidade ganha destaque como limite e parâmetro de controle jurisdicional, uma vez que devem existir limites à intervenção estatal que impeçam soluções iníquas, desproporcionais ou desarrazoadas para o caso concreto.

Por todo o exposto, pode-se dizer que o ativismo judicial pode ser uma ferramenta favorável para a efetividade dos direitos fundamentais, devendo, no entanto, ser exercido com moderação.  Nessa perspectiva, Barroso (2009, p. 14-15) propõe ao juiz a observância dos seguintes critérios:

 

 

(I) só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (II) deve ser deferente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; (III) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do possível.

 

 

Para finalizar, ainda nas palavras de Luís Roberto Barroso (2009, p. 21):

 

 

Em suma: onde não haja  lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. H vendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Havendo, porém, lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

 

 

Percebe-se, portanto, que o Judiciário pode e deve avaliar e corrigir os atos emanados dos outros poderes no caso de haver vício ou omissão que afetem o interesse público. Entretanto, o ativismo deverá ser sempre responsável e moderado, no sentido de respeitar escolhas legítimas feitas por legisladores e administradores, bem como os fundamentos constitucionais, as leis infraconstitucionais e os valores da sociedade. 

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Sobre a autora
Agathe Pompermayer Voumard

Acadêmica do 10º período de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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