Judicialização da política, ativismo judicial e o novo papel do poder judiciário

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28/11/2016 às 16:11
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2 O NOVO PAPEL DO JUDICIÁRIO

A Constituição de 1988 constitui um verdadeiro marco histórico do processo de redemocratização no Brasil, mas também serviu como marco jurídico.

No âmbito do Poder Judiciário, a Carta Magna assegurou sua autonomia financeira e administrativa e instituiu a independência funcional dos magistrados, ampliando sua importância política. (SARMENTO E SOUZA, 2012).

 

 

[...] a Constituição de 1988, seguindo estas tendências, redefiniu profundamente o papel do Judiciário no que diz respeito à sua posição e à sua identidade na organização tripartite de poderes e, consequentemente, ampliou o seu papel político. Sua margem de atuação foi ainda alargada com a extensa constitucionalização de direitos e liberdades individuais e coletivos, em uma medida que não guarda proporção com textos legais anteriores. Dessa forma, a Constituição de 1988 pode ser vista como um ponto de inflexão, representando uma mudança substancial no perfil do Poder Judiciário, alçando-o para o centro da vida pública e conferindo-lhe um papel de protagonista de primeira grandeza. (SADEK, 2004).

 

 

O novo sistema político instituído corroborou com a expansão do Poder Judiciário. No que toca as condições institucionais, o catálogo de direitos trazidos é o mais generoso de nossa história constitucional, contendo direitos a prestações negativas e positivas por parte do Estado. Nesse sentido, é sabido que há uma tendência de que, quanto mais amplas forem a Carta de Direitos e as garantias da sua eficácia em uma Constituição, maior será o grau de judicialização. (BRANDÃO, 2013).

Com relação ao controle de constitucionalidade, a Constituição de 1988 expandiu o rol de legitimados para propor ações do controle abstrato concentrado, permitindo o acesso de grupos da sociedade civil e partidos políticos, e criou ainda o mandado de injunção.  Esses fatos ampliaram significativamente a quantidade de demandas junto ao STF. A este tribunal ainda foram atribuídas competências superlativas, pois, além da função de Tribunal Constitucional, passou a desempenhar função recursal de última instância e também de foro especializado. (BRANDÃO, 2013).

Enfim, a Constituição de 1988 consagrou a solução compromisso, alargando a competência originária do STF em relação aos remédios constitucionais e ao controle abstrato de normas. (BRANDÃO, 2013).

Mais adiante, em 2004, ocorreu um fenômeno que ficou conhecido como “a reforma do judiciário”. Neste ano, com a promulgação da Emenda Constitucional 45, o Poder Judiciário passou por diversas modificações em sua estrutura, podendo-se salientar, novamente, ampliação das competências do STF.

Sobre esse importante momento, elucida Maria Tereza Sadek (2009):

 

A reforma do Judiciário (e das demais instituições de Justiça) propiciou mudanças importantes e ensejou a utilização de instrumentos com capacidade de alterar o status quo na estrutura do Poder Judiciário, no tempo e na qualidade da prestação jurisdicional. Os institutos da súmula vinculante, da repercussão geral, dos recursos repetitivos e da transcendência permitem que tribunais tenham maior controle da pauta de julgamentos e acentuem seu papel de Cortes voltadas para questões de interesse geral, retraindo, assim, sua atuação como mais uma instância recursal para litígios individuais, repetitivos e de pouca expressão coletiva.

[...]

A EC 45 abriu espaço para a efetivação de alterações de natureza institucional no Judiciário.                                                                                                                   

Com a Emenda Constitucional 45, a Constituição brasileira ganha o artigo 103-A[4], que institui e regula e a chamada súmula vinculante. Esta surge em função da multiplicação de controvérsias envolvendo as mesmas questões, fato este que poderia gerar insegurança jurídica no ordenamento. A súmula, portanto, consiste na pacificação, pelo STF, do entendimento alcançado sobre determinada questão, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública a ele, de forma que não haja mais no ordenamento interpretações diversas para casos concretos idênticos.

A Emenda Constitucional 45 também atribuiu o efeito vinculante às decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade, contribuindo ainda mais com a ampliação das competências do STF.

É interessante, ainda, mencionar a mudança paradigmática ocorrida no Supremo Tribunal Federal nos últimos anos que, anteriormente, adotava a teoria não concretista, a qual entendia que as decisões em sede de mandado de injunção teriam a finalidade exclusiva de reconhecer formalmente a inércia do legislativo, não devendo estabelecer qualquer medida jurisdicional que forneça prontamente condições que viabilizem o exercício do direito constitucional objeto da omissão; e, posteriormente, evoluiu para a adoção da teoria concretista, ora individual, ora geral. Segundo entendimento da teoria concretista geral, diante da lacuna, o Poder Judiciário deverá criar a regulamentação para o caso específico, mas em caráter geral, ou seja, os efeitos da decisão seriam estendidos a todos aqueles em idêntica situação (efeito erga omnes). Na concretista individual o Judiciário cria a regulamentação para o caso específico, viabilizando o exercício do direito, mas somente pelo impetrado (efeito inter partes)[5].

Após tantas medidas ampliando as funções e poderes do STF, não é difícil compreender que atualmente existe um amplo grau de ativismo por parte desse órgão.

Nesse sentido, pode-se dizer que “a enorme ambição do texto constitucional de 1988, somada à paulatina concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ocorrida ao longo dos últimos vinte anos, aponta para uma mudança no equilíbrio do sistema de separação de poderes no Brasil”. (VILHENA, 2008, p. 444).

Face a tantas alterações, é inevitável que se reflita sobre o novo papel do Poder Judiciário e seus integrantes na sociedade contemporânea.

As profundas transformações nas áreas econômica, política e sócio-cultural (tanto no plano científico quanto no tecnológico e operacional), observadas nos últimos tempos, bem como as constantes mutações em ritmo cada vez mais acelerado, requerem uma mudança de atitude do Judiciário e dos magistrados para que possam corresponder aos atuais anseios da sociedade. (YOSHIDA, 2006)

Com o crescente volume e complexidade das lides trazidas ao conhecimento e apreciação do Poder Judiciário, ganha cada vez maior relevância o ensinamento, sempre atual, de que o operador do direito, notadamente o magistrado, não é apenas um autômato da aplicação da lei. Pois, realmente, se forem meros autômatos, inevitavelmente cometerão injustiças diante de cada caso concreto. (YOSHIDA, 2006).

A Constituição prevê uma grande variedade de direitos fundamentais difusos, coletivos e individuais, que tutelam bens e valores que conflitam uns com os outros. Esses conflitos só podem ser analisados e decididos diante do caso concreto, mediante critérios de proporcionalidade e razoabilidade. Nesse sentido, percebe-se claramente a necessidade de um aplicador do direito dotado de certo grau de discricionariedade.

Nesse contexto, o magistrado, diante de cada caso concreto, busca interpretar a norma e aplicar o direito da forma mais adequada, com a finalidade de realizar a justiça, a justiça social, a justiça equânime que a sociedade espera. (YOSHIDA, 2006).

O Direito, até então limitado à produção de leis pelo Poder Legislativo, passou a ser visto também como resultado da interpretação e aplicação da lei feita pelo juiz. Assim, com o reconhecimento do peso da tarefa do magistrado no âmbito de um Estado Democrático de Direito, dito Estado Constitucional, o Poder Judiciário expande sua atuação no processo de concretização dos valores dessa nova perspectiva de Estado. (VIRGÍLIO, 2014).

Diferentemente do antigo “juiz mero aplicador de leis que, ao sentenciar apenas deduz e subsume, segundo entendimento axiomático-dedutivista do positivismo e da dogmática jurídica tradicional”, no âmbito do constitucionalismo contemporâneo e de uma democracia participativa, surge a “concepção do juiz intérprete que, ao decidir, normatiza”. (BONAVIDES, 2001, p. 22).

 

 

O novo juiz deve ser não apenas o garantidor, mas o concretizador das promessas do constituinte e verdadeiro guardião e avalista dos direitos fundamentais do cidadão. Esse novo modelo exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, como agente político do Estado e que entregue a sua “setentia” com sentimento, utilizando o sentimento e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando assim dos conceitos abstratos e da lógica tradicional do positivismo jurídico. (BANDEIRA, 2014).

 

 

A verdade é que não mais se admite o chamado juiz “boca de lei” que serve apenas para garantir a aplicação da lei. O juiz não pode ser uma figura inerte e alheia à realidade social que o rodeia.

2.1 Ativismo judicial como mecanismo de concretização de direitos fundamentais

Inicialmente, para melhor compreensão do presente tópico, é imprescindível que se faça a conceituação de Direitos Fundamentais, sendo assim oportuna a lição de Marmelstein (2008, p. 20):

 

 

São normas jurídicas intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico.

 

 

Essa definição é baseada em cinco princípios, quais sejam: dignidade da pessoa humana, limitação de poder, norma jurídica, Constituição e democracia. A Constituição de 1988 traz, em seus artigos 5º a 17, vários direitos fundamentais. No entanto, esse rol não é taxativo, existindo outros previstos na Constituição, bem como até mesmo em preceitos extraconstitucionais, como afirmado pela Carta Magna em seu artigo 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Os direitos e garantias fundamentais estão diretamente ligados à democracia, que

 

 

[...] possui dois significados distintos, representados pelas expressões “democracia formal” e “democracia substancial”. A primeira diz respeito aos meios, que são precisamente as regras de comportamentos universais, mediante o emprego dos quais podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso, ou seja, independentes da consideração dos fins. A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para alcançá-los. Uma vez que, na história da teoria democrática, entrecruzam-se motivos de métodos e motivos ideais, que se encontram fundidos na teoria de Rousseau, segundo a qual o ideal igualitário que a inspira (democracia como valor) se realiza somente na formação da vontade geral (democracia como método), ambos os significados de democracia são legítimos historicamente. (BOBBIO, 2000, p. 328-329).

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Nesse sentido, no plano do Direito, a democracia substancial se dá pela realização de direitos e garantias fundamentais através do processo judicial, que é o meio que o Poder Judiciário dispõe para efetivar esses direitos.

A democracia não significa simplesmente a submissão à vontade da maioria, por essa razão, Ronald Dworkin (2001) confere aos direitos fundamentais supremacia diante da soberania popular. Para ele existem alguns núcleos de direito que devem ter prioridade frente a possíveis ingerências decorrentes de processos majoritários. Nem sempre uma lei baseada nos interesses da maioria será justa, podendo até mesmo violar os direitos individuais.

Segundo Ernest Benda (1996, p. 416-417), os direitos fundamentais são indispensáveis para a defesa de uma democracia pluralista que contemple, de forma efetiva, os interesses das minorias:

 

 

[...] são direitos de possibilidades (perspectivas de possibilidades), pois se abrem aos indivíduos e aos grupos espaços de liberdade em formação, favorecendo o desenvolvimento da própria personalidade; - sustentam-se na perspectiva constitucional, sobre um consenso de base própria, referente aos seus limites: o Estado de direito e a ordem na qual o povo politicamente maduro reconhece os seus limites; - exigem, como pressuposto para participação nos processos políticos, econômicos e culturais, que o Estado constitucional tenha a dignidade humana como premissa e não a soberania popular.

 

 

O acesso à Justiça, tanto às instâncias ordinárias quanto à Corte Constitucional, se revela um importante meio de concretização dos preceitos constitucionais. A violação do direito de qualquer um pode se tornar um precedente jurídico. Nesse sentido, atualmente, entende-se que o direito ao acesso à Corte Constitucional, individualmente considerado, confere mais valor e poder aos cidadãos do que o direito ao voto nas eleições para a escolha dos representantes do legislativo e executivo. (ARJOMAND, 2007).

A postura ativa e atuante do Judiciário, em certos assuntos da vida política e moral da sociedade, dá-se em observância a princípios e regras constitucionais, no cumprimento da sua obrigação de guarda da Constituição e em resposta direta aos anseios da população que deseja exercer seus direitos formalmente previstos e, para isso, busca a via judicial, pois não encontra amparo nos outros Poderes e seus órgãos.

O Judiciário tornou-se o real guardião das promessas destinadas ao exercício pleno da cidadania. Percebe-se que a maioria das decisões judiciais consideradas ativistas buscava, justamente, efetivar direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal.

Para Konrad Hesse (1991, p. 15), a força normativa da Constituição justifica a postura ativista dos julgadores:

 

 

A Constituição não se configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.

 

 

Nesse sentido, a esfera judiciária exerce importante papel para a efetivação de direitos fundamentais, ao passo que constitui espaço de luta dos movimentos populares, que ganha impulso e legitimação com as ações desses sujeitos de direito.

No campo das políticas públicas e atos de governo, o controle e a intervenção judicial têm se manifestado através de instrumentos de ações coletivas e são feitos por meio de sanções ao Poder Executivo e controle de constitucionalidade de normas do Legislativo, reforçando a ideia de freios e contrapesos do Estado Democrático de Direito.

Para a implementação e correção de políticas públicas relacionadas aos direitos sociais assegurados pela Constituição, deve-se observar os pressupostos ou limites no mínimo existencial, no princípio da razoabilidade e na reserva do possível. Ou seja, cabe a intervenção do Judiciário nas políticas públicas quando a omissão ou a política já implementada não oferecer condições mínimas de existência humana; se o pedido de intervenção for razoável; e, do ponto de vista administrativo, a omissão ou a política seja desarroazoada, havendo necessidade que exista verba suficiente.

Entretanto, no entendimento de Ada Pelegrini (apud GARCIA, ZANETI, 2012), não haverá necessidade de observar a reserva do possível quando se tratar de casos de urgência ou do mínimo existencial.

Esses parâmetros para a intervenção do Judiciário em políticas públicas foram traçados em voto do ministro Celso de Mello, pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 45.  Nessa oportunidade o ministro escreveu que implementar políticas públicas não está entre as atribuições do Supremo nem do Poder Judiciário como um todo. Mas é possível atribuir essa incumbência aos ministros, desembargadores e juízes quando o Legislativo e o Executivo deixam de cumprir seus papéis, colocando em risco os direitos individuais e coletivos previstos na Constituição Federal.

 

 

A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas na Constituição, objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade de pessoas. (BRASIL, 2011).

 

 

Pode-se dizer, portanto, que “a judicialização da política é um instrumento democrático de concretização dos direitos fundamentais mediante a atuação ativista do Poder Judiciário sempre de acordo com a Constituição e com os princípios democráticos” (PEIXINHO, 2008, p.14).

 

 

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Sobre a autora
Agathe Pompermayer Voumard

Acadêmica do 10º período de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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