Sumário: 1. Introdução. 2. A criação do Estado e a separação dos poderes. 2.1. John Locke e o direito de propriedade. 2.4. Jean Jacques Rousseau e a teoria do contrato social. 2.3. Montesquieu e a teoria da separação dos poderes. 3. A evolução histórica, os reflexos do princípio da separação dos poderes e a divisão da função estatal. 4. A judicialização e o ativismo judicial no atual cenário brasileiro. 5. A Suprema Corte brasileira vista a partir de uma postura contramajoritária e representativa. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho traz à baila a relevância de um tema que, embora recorrente nos estudos de grandes autores, faz-se necessário à persistência de sua investigação, pois, é um assunto sensível e de suma importante para progredirmos enquanto instituições e enquanto democracia.
Há algum tempo o poder judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, vem sendo protagonista de várias controvérsias no cenário jurídico brasileiro, ganhando, neste contexto, o epíteto de guardião da Constituição, e, portanto, da democracia. É nesse sentido que emerge a necessidade de se ter um olhar mais apurado acerca de fatos recentes que encabeçam, de um lado, o judiciário e, do outro, o legislativo.
Atualmente, os holofotes estão voltados para o Supremo Tribunal Federal e muito se questiona sobre seu papel frente às controvérsias a serem resolvidas, bem como sobre a finalidade de se verificar quais critérios de legitimidade estão sendo balizados e os limites dessa atuação.
2. A criação do Estado e a separação dos poderes
2.1. John Locke e o direito de propriedade
Após Aristóteles, foi John Locke quem enfrentou o tema da divisão dos poderes. O autor inglês carregava consigo os ideais do liberalismo, sendo, inclusive, tido como o mais notável expoente do empirismo, além de ser um dos principais ideólogos do contrato social.
Locke partiu da ideia do estado de natureza, levando em consideração o princípio de que o ser humano não é bom e nem ruim, mas, indiferente, mantendo-se numa posição de neutralidade. Segundo ele, no estado de natureza, o ser humano tende a ser bom, diferentemente da visão hobbeseana.
O insigne filósofo contratualista, John Locke, percebeu, em seus estudos, a existência de alguns direitos, quais sejam: o direito à vida, direito à propriedade e o direito de punir. Mas, não havia apenas estes direitos, pelo contrário, o mesmo imaginava o surgimento de leis, que, de acordo com ele, seriam aplicadas a todos os indivíduos, para tanto, partiu de duas vertentes, as leis da natureza e as leis Divinas.
Para ele, as pessoas são neutras porque as leis não são criação delas, por isso, o estado de natureza de Locke é algo bom, pois as pessoas tendem a ser boas e, sendo assim, não criarão conflitos entre si.
Essa visão de bom, só é possível porque Locke supõe que o individuo já entende a ideia de propriedade privado, respeitando o espaço e o limite do outro. A propriedade privada ganhou uma ênfase especial na sua obra, “Segundo tratado sobre o governo civil1”, onde expôs suas ideias acerca da tripartição dos poderes2.
Portanto, diante disso, faz-se necessário trazer à baila alguns nuances dessa obra que teve como foco a constituição do Estado, onde os indivíduos eram livres para praticar seus atos, levando em consideração certos parâmetros do direito natural.
O estado de natureza preconizado por Locke não afasta a possibilidade de um indivíduo lesar o outro, mas, por entender que o ser humano está propenso a ser bom, como dito linhas atrás, presume-se que se comportem de forma amigável, respeitando os limites do outro, bem como cuidando do local em que habitam. Entende-se que, ao agir assim, o Homem estaria conservando sua espécie, uma vez que evitariam maiores conflitos.
Com o passar do tempo, a sociedade foi evoluindo e as relações entre os indivíduos passaram a ser mais complexas, havendo, assim, a necessidade da criação de leis, onde uma parte dos membros da sociedade ficariam encarregados de elaborá-las, e a outra, de cumpri-las. Estabelecendo-se, assim, os primeiros traços democráticos.
Com essas novas contingências, surgiu a necessidade não apenas da criação das leis, mas também, de um indivíduo que agisse com imparcialidade, retidão, probo em seus atos e de uma reputação ilibada, nascendo, portanto, a figura do juiz, que tinha o papel de resolver os conflitos existentes entre os indivíduos, aplicando as leis concernentes a cada caso e punindo, adequadamente, os que transgredissem as leis, bem como acompanhar se a punição foi devidamente cumprida.
[...] carece o estado de natureza de um juiz conhecido e imparcial, com autoridade para solucionar todas as diferenças de acordo com a lei estabelecida. Pois sendo cada um, nesse estado, juiz e executor da lei da natureza ao mesmo tempo, e por serem os homens parciais em favor de si próprios, a paixão e a vingança tendem a levá-los muito longe, e com ardor demasiado, em seus próprios pleitos, da mesma foram que a negligência e a indiferença os tornam demasiado descuidados quando se trata de terceiros (LOCKE, 1998, p. 496-497).
Começam a surgir os primeiros traços que emanaram a atividade legislativa e a jurisdicional. A atividade legislativa corresponde à competência de elaborar normas para reger as relações entre os indivíduos na sociedade. No entanto, os responsáveis pela elaboração das leis, acabavam não se submetendo às próprias leis que fizeram, gozando de certos privilégios/regalias em relação aos demais membros da sociedade, indo de encontro com os objetivos pretendidos para a criação da sociedade.
Por isso, tendo em vista esse desequilíbrio, foi necessária a criação do poder executivo, que ficaria encarregado por executar as leis, buscando o bem comum da sociedade e evitando que a lei não fosse cumprida por todos.
Vale salientar que, apesar da obra de John Locke não adentrar especificamente no tema separação dos poderes, ele mostrou, de forma explícita, as divisões das funções dos poderes.
2.2. Jean Jacques Rousseau e a teoria do contrato social
Rousseau foi, ao mesmo tempo, o mais odiado e amado dentre os filósofos da época, ganhou o título de ser o mais crítico dos filósofos modernos, sendo admirado por revolucionários, como Robespierre, mas, também, foi odiado pela burguesia e conservadores.
Sua rejeição justificava-se por difundir ideias de que a civilização era a culpada pela degeneração da moral do Homem natural e que o comportamento humano se altera quando almeja ganhos e vantagens pessoais.
É um dos autores contratualistas e possui algumas diferenças e semelhanças com John Locke. Dentre as semelhanças, vislumbra-se a ideia do estado de natureza, que, no entanto, Rousseau vai além do que fora proposto por Locke. O objetivo de Rousseau não é analisar somente o âmbito judicial do Estado, mas, também, aquilo que mantém tal aspecto. Dessa forma, irá voltar-se para o âmbito social, para, a partir daí, mostrar como deveria ser o Estado. E é nesse sentido que ele chegará à conclusão que é a esfera social que ampara o aspecto legal do Estado.
Vale salientar que, ao contrario de Locke, Rousseau dedica-se a análise de três períodos, são eles: estado de natureza, estado de sociedade e o período mais sublime para ele, que é o contrato social.
O estado de natureza é uma situação na qual não há Estado, assim, a partir dessa premissa, aduz-se que o homem não se relacionava com outros grupos, diferentemente de Locke - em que já havia uma proximidade com outros indivíduos, razão pela qual ele discorre sobre a propriedade privada, negociações entre indivíduos e etc. -, e para Rousseau não, pois, no início da evolução social e intelectual da humanidade, os indivíduos não tinham convívio uns com os outros, por isso que viviam bem no estado de natureza.
Esse convívio entre os indivíduos só era bom porque o indivíduo era dotado de bondade em sua essência. No entanto, chegará o tempo em que os grupos sociais irão se deparar uns com os outros, devido ao crescimento populacional, e quando isso acontecer, irá ocorrer o que Rousseau eternizou numa celebre frase: “o homem é bom por natureza, mas a sociedade o corrompe”. É o momento em que uma determinada coletividade passa a conviver com outra, e, nesse momento, o homem passa a buscar não só o que necessita, mas o que ele julga que será necessário. O homem que era bom, agora passa a ser ruim.
Com o surgimento da propriedade privada, surgem também os conflitos, porque os indivíduos passaram a conviver com outros grupos e se corromperam, assim, haverá o desrespeito pela propriedade privada do outro. Para preservar a harmonia e manter o bom relacionamento, surge a necessidade de criação do Estado, que marca o término do estado de natureza e o início do estado de sociedade, o que não é visto com bons olhos por Rousseau (diferentemente de Locke, que considera essa passagem boa), porque esse estado de sociedade vai ter como intuito defender a propriedade privada, o que pode ocasionar alguns transtornos.
Rousseau parte da premissa de que a propriedade privada irá provocar desigualdade social, segundo ele, o referido estado de sociedade estabelece, formalmente, a isonomia entre os indivíduos, contudo, na prática, os indivíduos são, economicamente, desiguais, pois não gozam das mesmas possibilidades. Outro aspecto relevante que ele considera é que, no estado de sociedade, o aparato legal é voltado para proteger a propriedade privada, assim, no caso de um processo eleitoral, por exemplo, quem tiver maior poder aquisitivo conseguirá ser escolhido.
E, uma vez sendo escolhido, aquele que tiver boas condições financeiras irá contribuir para o aumento do desequilíbrio social, gerando como consequência a falta de liberdade, ou seja, a lei estabelece que os indivíduos gozam de liberdade, porém, isso não acontece efetivamente, por exemplo, o indivíduo tem o direito de transitar livremente de um lugar para outro, no entanto, essa locomoção, muitas vezes, estará condicionada a sua capacidade aquisitiva.
No campo político, a partir da visão de Rousseau, têm-se que os indivíduos escolherão os candidatos que estão disponíveis e não aqueles que realmente queriam ver eleitos. Assim, ante o exposto, infere-se que, para Rousseau, os indivíduos não são completamente livres. A liberdade dos indivíduos nessa sociedade é uma liberdade aparente, enganadora, assim como a ideia de igualdade, isonomia.
Rousseau expõe de forma categórica: a liberdade é aparente, mentirosa, porque não será determinada por A, e sim por B, ou seja, certos indivíduos irão estabelecer regras para outros indivíduos. Com relação à igualdade, ele aponta que esta, encontra-se, apenas, no plano formal, pois na prática, não existe. É por isso que ele considera o estado de sociedade indesejável.
Para mudar isso, Rousseau apresenta o contrato social, onde os indivíduos saem do estado de sociedade (que ele considera indesejável) e ingressam no contrato social, que seria a condição ideal. Essa condição ideal só seria viável se os indivíduos: a) reconhecessem que no estado de sociedade eles não tinham liberdade e buscassem ser mais participativos, saindo da zona de conforto; b) procurassem introduzir uma democracia direta, onde todos pudessem participar direta e ativamente na tomada de decisões, noutras palavras, passassem a elaborar as leis que eles mesmos irão obedecer.
Neste ponto, Rousseau critica a democracia representativa, pois as leis são feitas pelos representantes, sem a participação direta dos indivíduos que os elegeram, restando a estes, apenas cumpri-las. Segundo Rousseau, para assegurar a liberdade no âmbito político, é preciso que haja uma democracia direta satisfatória, onde os indivíduos, em conjunto, participem ativamente da elaboração das leis.
2.3. Montesquieu e a teoria da separação dos poderes
Montesquieu viveu no século XVIII, na França, em meio ao período do absolutismo francês, possuía uma visão liberal, ou seja, o grande foco nos seus escritos é a garantia da liberdade individual. É por isso que ele fará uma análise dos sistemas políticos da sua época, e será considerado como o criador de um dos principais princípios da atualidade, que é o da separação dos poderes. No entanto, para chegar até esse princípio, ele percorreu dois pontos de suma relevância, qual seja: o conceito de lei e a teoria dos regimes, para, enfim, chegar à separação de poderes.
Pra entender o conceito de lei, é preciso perceber que Montesquieu era uma espécie de sociólogo e não se dedicava apenas ao aspecto jurídico, mas, principalmente, aos fatos sociais, e é justamente daí, que vem a ideia para o conceito de lei, quando ele apresenta que as leis são conexões fundamentais que se originam da essência das coisas. Em linhas gerais, levando em consideração que as leis decorrem das relações entre os indivíduos, elas serão elaboradas tomando por base essas correlações, esses acontecimentos.
Para ilustrar melhor esse conceito de lei, Montesquieu utiliza-se do clima e do tamanho do território. Quanto ao clima, ele diz que quando o clima é frio, há condições favoráveis para o aparecimento de uma república, porque com esse clima as pessoas ficariam mais próximas umas das outras e essa aglutinação favoreceria os debates acerca da criação de leis. Em sentido oposto, o clima quente, estaria mais propenso ao despotismo, tendo em vista o afastamento das pessoas. Isso facilitaria com que o déspota criasse leis como bem entender, pois não precisa dos outros por perto para participar, para obter opiniões para criar as leis.
Já em relação ao tamanho do território, o raciocínio seria o mesmo. Em território pequenos haveria uma maior probabilidade do surgimento da república, porque as pessoas estariam próximas, mantendo contato entre si. As pessoas sabem da realidade local e de suas dificuldades, podendo criar leis para satisfazer suas necessidades. Nos territórios de grandes dimensões, haveria a impossibilidade de transporte, bem como de transmissão de informações entre localidades distantes, e isso favorecia o aparecimento do despotismo.
O segundo ponto diz respeito aos regimes, e, adentrando a teoria dos regimes, Montesquieu trabalha com a constituição de um regime politico. Essa noção partia, basicamente, da ideia de quantidade e qualidade, por exemplo, na natureza do despotismo, uma única pessoa governa de forma livre, sem objeções, nem limites. Diferentemente da república, onde todos irão governar. Nesta fase, ele chama atenção pra duas diferenças que se dá no campo da república, que é a república aristocrática e a república democrática. Vale salientar que, a república democrática de Montesquieu seria a mesma situação do contrato social do Rousseau, quando ele fala de democracia direta (todos criam a lei).
Também, tratou da monarquia, na qual uma única pessoa governa, mas, essa única pessoa governa de acordo com leis determinadas, criadas por outro poder, no caso o legislativo. Segundo Montesquieu, o princípio que rege a monarquia é a honra, que é de fundamental importância, pois, será o embrião para o nascimento da teoria da separação dos poderes.
A priori, a honra é encarada com certa repulsa, pois apresenta traços marcantes de individualismo, senão vejamos. No raciocínio de Montesquieu, na medida em que o indivíduo deseja o máximo de honra pra si, fatalmente faz com que o outro seja diminuído, apequenado, ou seja, o individuo quer desenvolver-se e ao mesmo tempo não deseja que o outro se desenvolva, pois, caso isto ocorra, surgirá uma disputa para saber quem será o mais honrado.
Por fim, Montesquieu trata da separação dos poderes, que foi seu grande trunfo, sendo a sua mais notável colaboração para as gerações vindouras. Uma de suas inovações acerca do tema é a noção de freios e contrapesos, explicitando de que forma um poder vai controlar o outro, que não será apenas através dos mecanismos institucionais de separação dos poderes, mas também, e principalmente, pela questão da honra.
Há um sistema monárquico no qual o governo é representado pelo rei e o poder legislativo representado pelo parlamento. Assim, para serem honrados e reconhecidos como os melhores, os indivíduos buscarão fazer o melhor de si, dessa forma, se o rei tiver essa pretensão, vai fazer com que o parlamento fique ignorado, apequenado. Destarte, o parlamento irá fazer duas coisas: I) cingir o poder do rei; e II) fazer por merecer para ser honrado socialmente. Portanto, esse conceito de freios e contrapesos surge como corolário do princípio da monarquia, que é a honra.
Em síntese, a ideia é a de que quando o rei almejar progredir, o parlamento também fará a mesma coisa, e, quando ambos fizerem isso, um irá controlar o outro, um será o contrapeso do outro. Dessa maneira, é que os indivíduos terão sua liberdade preservada, porque o parlamento irá controlar a atuação do rei e o rei controlará a autuação do parlamento, cada qual com seus mecanismos de controle. Noutras palavras, quando um poder não se sobreleva ao outro, há um equilíbrio, e isso assegura a liberdade dos indivíduos.
Locke, que foi o primeiro a pensar em separação de poderes no sentido moderno, diz, apenas, que é necessária a separação de poderes para que não haja a concentração de poder em um só (que crie e execute a lei). Percebe-se que Locke não fala nada a respeito de equilíbrio, de que um irá controlar o outro. Portanto, essa é uma inovação que Montesquieu trouxe – freios e contrapesos.
Outra grande inovação é a separação da função judiciária. Outros autores já haviam falado da existência da função judiciaria, porem, todos eles deixavam o judiciário como uma função de um dos outros poderes (ou o judiciário seria exercido pelo executivo ou pelo legislativo).
Montesquieu, portanto, diz que a função judiciaria é uma função do estado, a qual precisa de um poder separado, surgindo assim o poder judiciário, que exerce a atividade jurisdicional do Estado de forma independente dos outros poderes. Na sua visão, os poderes são hierarquicamente análogos, ainda que não sejam harmônicos entre si.
Não são harmônicos porque, segundo Montesquieu, do ponto de vista formal, o poder judiciário é igual aos demais poderes, mas, do ponto de vista político, o poder judiciário é inferior, sendo invisível e praticamente nulo, porque se os indivíduos viverem em harmonia uns com os outros, as demandas serão mitigadas, assim, o judiciário não seria útil, na visão dele.
O segundo ponto de fraqueza do judiciário seria o fato dele ser provisório, e não permanente como nos dias atuais.
3. A evolução histórica, os reflexos do princípio da separação dos poderes e a divisão da função estatal.
Primeiramente, deve-se salientar para a questão do termo empregado, qual seja “separação dos poderes”, pois, pode levar a uma falsa impressão e nos fazer pensar que há poderes estatais paralelos que competiriam ou disputariam entre si a primazia na definição das políticas públicas.
No entanto, não é exatamente isso que ocorre, uma vez que o poder estatal é unitário. O que existe é a divisão funcional do poder, onde separa o poder e atribui, ao mesmo, funções diferentes, estendendo-se a órgãos distintos, por um conjunto de razões de ordem constitucional e institucional.
Apesar da utilização do nome “separação dos poderes”, o termo é amplamente difundido, sendo um princípio aplicado no sistema democrático e, por causa disso, o termo geral, inclusive previsto na Constituição Federal de 1988, no seu art. 2º. In verbis:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
A origem histórica do termo, remonta ao período da antiguidade, onde já havia um embrião dessa ideia básica. Mas, isso não quer dizer que essa ideia foi teorizada ou desenvolvida com as mesmas nuances que tem nos dias atuais. Cogita-se que em Políbio3, durante a Grécia Antiga, já se desenvolvia a ideia de que dividir o poder por órgãos e estruturas diferentes, com lógicas e formas de atuação distintas, poderia contribuir tanto para a efetividade do poder quanto para o seu controle e sua legitimidade.
Apesar de advir de uma origem remota, a verdade é que esse conceito se consolida e se sedimenta com as revoluções liberais, notadamente, a partir da revolução inglesa do século XVI em diante, e, sobretudo, nas revoluções francesa e americana.
A compreensão do contexto histórico ajuda a perceber o real alcance e finalidade desse princípio. A conjuntura histórica dava-se em meio à superação ao absolutismo, ou seja, de um poder extremamente concentrado, e por conta disso, potencial e/ou efetivamente arbitrário.
Quando nas revoluções liberais o povo se organizou por meio da burguesia – que era uma espécie de fio condutor -, para superar esse poder absoluto, concentrado, a ideia de separação dos poderes se impôs como natural. Natural a ponto de a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – declaração dos direitos da revolução francesa -, chegar a dizer que, em um estado onde não houvesse separação dos poderes e garantias dos direitos individuais, não teria Constituição (em seu sentido normativo).
Portanto, desde aquele momento, a separação dos poderes se incorpora como um dogma democrático, um verdadeiro pressuposto da atuação do estado de direito, e, desde então, é reproduzida não só nas Constituições, como também na prática política dos diferentes Estados democráticos.
O Supremo Tribunal federal quando se refere à separação dos poderes, afirma que o objetivo é evitar o surgimento de instâncias hegemônicas de poder, assim, faz-se necessário partilhar esse poder de forma que ele se controle e se mantenha em um estado de normalidade.
Além desse aspecto de controle, também há a ideia de aumentar a efetividade, a eficácia da ação estatal. No entanto, a função de controle desempenha um papel de destaque quando se adota a separação dos poderes.
As noções ora trazidas, são necessárias para entender, mais adiante, em que medida o judiciário assume um papel de protagonista e de que forma esse protagonista pode ou não significar um desprestígio indevido aos demais poderes. Faz-se pertinente entender como esse princípio se organiza e como impõe determinadas exigências aos poderes.
Um ponto de grande repercussão dentro do assunto em destaque é o conteúdo jurídico, abordando aquilo que se exige e/ou se determinar a partir da separação dos poderes. Existem duas4 vertentes basilares que se complementam, proporcionando uma interação relevante entre si, são elas: a ideia de independência orgânica e a ideia de especialização funcional. Apesar de serem autoexplicativos, os termos possuem alguns contornos que merecem ser analisados.
Adentrando ao tema, independência orgânica, como o próprio nome sugere, é a independência entre os diferentes órgãos que receberam essa partilha do poder politico. Com esse conteúdo, a independência orgânica é inerente ao próprio principio da separação dos poderes, o poder é dividido entre órgãos que têm uma independência entre si, como pressuposto para que haja uma divisão efetiva. Se não houver independência entre eles, continuaria o mesmo sistema de dominação de uma instância central, apenas delegando e coordenando outras instâncias que estariam sob a sua tutela.
Portanto, a independência orgânica é intrínseca à própria ideia de separação dos poderes. Disso, decorre que, cada um dos poderes tradicionais (Judiciário, Executivo e Legislativo), colocam-se num plano de coordenação, e não de subordinação entre si, não havendo hierarquia entre eles e, mais que isso, devem respeito às esferas recíprocas de atuação.
Essa independência orgânica é o motivo pelo qual não se admite que um mesmo agente público exerça, simultaneamente, a função de mais de um poder, pois, acarretaria numa confusão entre os poderes, quebrando essa independência, essa separação original.
No regime constitucional anterior a 1988, percebeu-se uma clara preponderância do poder executivo, embora a Constituição registrasse, em tese, a separação dos poderes. Vislumbra-se, portanto, que essa preponderância colocava em risco a independência orgânica e, na prática, produzia o domínio de uma instância sobre as outras.
No regime atual - pós 1988 -, há uma independência formal no plano constitucional e há, também, um conjunto de garantias de cada poder, que permite a cada um deles exercer suas funções sem interferências indevidas ou limita essas interferências naquilo que é aceitável e normal na dinâmica política. Isso não significa, porém, que inexista controle entre eles, muito pelo contrário, é normal e desejável que os poderes estabeleçam controle entre si. Desde a Constituição americana, em 1787, já se percebia a incorporação dessa prática democrática, onde os poderes devem se controlar mutuamente, comumente conhecida como “checks and balances”.
No Brasil, esse termo foi historicamente traduzido como freios e contrapesos, que traz a ideia de que a atuação de um poder deve frear os excessos dos outros poderes, tudo isso dentro de uma órbita recíproca. Assim, a atuação coordenada e esses mecanismos coordenados de controle, produzem um estado de equilíbrio/estabilidade, evitando-se arbitrariedades. A Constituição possui vários destes mecanismos, por exemplo, o controle de constitucionalidade se insere nessa lógica de controle recíproco, bem como, a possibilidade que o poder legislativo tem de sustar, suspender, atos do poder executivo que tenham extrapolado o poder regulamentar ou as delegações legislativas.
A interferência de um poder em relação ao outro, guardadas proporções, não deve ser vista como uma forma de subjugação, e sim, como uma forma de interação para produzir um equilíbrio dinâmico.
Como dito linhas atrás, o princípio da separação dos poderes divide a função estatal em diferentes seguimentos, que são atribuídas a órgãos distintos: o poder legislativo com a função precípua de inovar o ordenamento jurídico, criando leis; o poder executivo na função típica e dominante de aplicar a legislação de ofício e desenvolver as políticas públicas; e o poder judiciário com a função típica de julgar as controvérsias que surgem. Deve-se salientar que essas funções sofreram uma considerável relativização e há diferentes pontos de interferência.
Essas funções são desenvolvidas com predominâncias e não com exclusividade, portanto, o normal é que cada um dos poderes exerça a função que lhe é típica, mas isso não significa que o exercício de função atípica seja impossível, mais que isso, não significa que o exercício de função atípica não possa ter um papel relevante dentro do sistema constitucional.
Porém, essa função atípica deve ser prevista, não pode ser presumida, pois trata-se de uma exceção a regra geral. Como exemplo, menciona-se o caso do poder executivo, que exerce função legislativa de forma atípica quando edita medidas provisórias (tem eficácia de lei, claro que condicionada a uma série de fatores), de acordo com o que a Constituição estabelece.