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As alterações do instituto das incapacidades no Código Civil trazidas pela Lei Federal nº. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e seus corolários no casamento

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5. A Lei Federal n.º 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Partindo dessas premissas e com o foco na inclusão social, adveio a Lei Federal n.º 13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A Lei em questão modificou e revogou vários artigos do Código Civil pátrio relativos à incapacidade da pessoa, justificando as suas inovações na busca da evolução da inclusão social da pessoa portadora de deficiência. Noutro revés, poderá ser encarada como uma flexibilidade desnecessária e que poderá prejudicar direitos dos deficientes e quem sabe até da sociedade.

Logo em seu primeiro artigo, a Lei Federal n.º 13.146/2015[28] é incisivo ao criar o Estatuto da Pessoa com Deficiência ao proferir:

Art. 1o É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. (grifo nosso).

Ao analisar o primeiro artigo já chegamos rapidamente a boa intenção do legislador em se preocupar com a inclusão social e com a cidadania, em que pese algumas ressalvas que não foram, talvez, consideradas ao longo do Estatuto.

Retornando a análise da Lei[29], vemos que é importante que haja uma definição de quais cidadãos estão abrangidos pela referida lei, ipsis litteris:

Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.  

Em suma, não existe mais no sistema privado brasileiro pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade.

Para Flávio Tartuce[30] isso faz com que todas as pessoas com deficiência que eram tratadas no comando anterior passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua total inclusão social, em prol de sua dignidade.

Desta maneira, devemos nos indagar se a modificação não teria ido longe demais na ideia de integração social.

Passaremos a abordar a seguir os artigos do Código Civil revogados com o advento da Lei Federal n.º 13.146/2015.

5.1 Os artigos revogados do Código Civil com o advento da Lei Federal n.º 13.146/2015

As principais mudanças ocorridas com o advento da citada lei ao direito civil se situam nos artigos 3º e 4º, do Código Civil de 2002[31], que dizem respeito à incapacidade, cuja antiga redação apontava:

Art. 3º. São absolutamente incapazes:

I – os menores de dezesseis anos;

II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário

discernimento para a prática desses atos;

III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxico, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;

IV - os pródigos.

Parágrafo único.  A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. 

Com a nova redação e a revogação dos incisos temos algumas alterações importantes, a primeira alteração feita pelo Estatuto da Pessoa Deficiência é a redução do número de absolutamente incapazes, que passa a abranger agora apenas os menores de dezesseis anos. A segunda alteração envolve aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade que passam a ser relativamente incapazes. A terceira alteração envolve os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido que deixam de ser incapazes, relativa ou absolutamente para adquirirem capacidade plena. A quarta alteração envolve os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo que também passaram a ser completamente capazes[32].

Entre vários comandos que, para alguns, representam grande avanço para a proteção da dignidade da pessoa humana com deficiência, a recente legislação alterou e anulou alguns artigos do nosso Código Civil, trazendo grandes mudanças estruturais na já conhecida “teoria das incapacidades”, o que gera consequências diretamente para institutos do Direito das Famílias, especialmente o casamento analisado neste estudo.

Após teceremos comentários a respeito da repercussão do advento da Lei em questão no casamento civil.

5.2 A repercussão no casamento civil

A principal mudança trazida pelo Estatuto ao casamento foi a inclusão familiar plena do deficiente físico. Ele não precisa, portanto, mais de qualquer autorização para se casar ou ter filhos.

Previa originalmente o artigo 1.518, do Código Civil[33], que a autorização especial para o casamento poderia ser revogada pelos pais, tutores ou curadores até a celebração do casamento. Esse comando também foi alterado pela Lei Federal n.º 13.146/2015, passando a enunciar que “até a celebração do casamento podem os pais ou tutores revogar a autorização”. Assim, o curador não pode mais intervir e não terá como impedir a celebração do casamento[34].

Com a revogação dos incisos do artigo 3º, do Código Civil[35], deixa de existir no sistema civilista brasileiro a pessoa do absolutamente incapaz maior de idade, assim igualmente, como corolário, não existe mais ação de interdição absoluta, uma vez que os menores não podem ser interditados e todas as pessoas tratadas no mencionado artigo passam a ser capazes para o Direito Civil.

A partir de então, o sistema passou a ser mais flexível e deverá ser analisado com mais cautela nas circunstâncias do caso concreto e com a finalidade da inclusão social das pessoas com deficiência.

Em que pese levantar a bandeira do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a nova Lei acabou por desconsiderar muitas outras situações corriqueiras no dia a dia como, por exemplo, do casamento de pessoas com síndrome de down ou com psicopatia, os quais com o advento da Lei não são mais incapazes e será necessário um grande esforço doutrinário e jurisprudencial para conseguir situá-las no inciso III, do artigo 4º, do Código Civil, tratando esses cidadãos como relativamente incapazes[36].

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Ainda quanto ao casamento, prelecionava o antigo diploma que seria nulo o casamento do doente mental, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, o que equivalia ao antigo artigo 3º, inciso II, do Código Civil[37], que foi revogado. Nessa esteira, perdeu-se a base legal a possibilidade de se decretar a nulidade do casamento nessa hipótese. Noutras palavras, o casamento do enfermo mental, sem discernimento, passa a ser plenamente válido.

Nesta esteira, terão esses permissivos legais o condão de incluir essa família à sociedade? Só o tempo irá nos responder, mas hoje nos parece que não.

Interessante é o raciocínio dos juristas Marlon Tomazette e Rogério Andrade Cavalcanti Araújo[38] em artigo criticando a nova sistemática da incapacidade de fato de acordo a Lei Federal n.º 13.146/2015:

A nova lei, repita-se, buscou solução inversa à adotada na legislação revogada. O casamento, após a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, estará sempre permitido, seja isso ou não um bem para o deficiente (mesmo que o caso concreto indique que o deficiente esteja sendo exposto a pessoas inescrupulosas, que desejam participar de seu patrimônio, sem, de fato, amá-lo). O pior é que a nova lei se mostra contraditória: no parágrafo primeiro do artigo 85, ela taxativamente afirma que a definição da curatela não alcança o direito ao matrimônio, ao passo que, no artigo 114, ela altera a redação original do parágrafo segundo do artigo 1550, a fim de permitir que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia possa contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou do curador!!! É de indagar-se: como se falar em responsável pelo deficiente se ele não é mais incapaz?? E como pensar na manifestação de vontade pelo curador se, na definição de curatela, não se engloba o direito ao matrimônio? Há algo muito mal dimensionado na norma analisada (...)”. (grifos dos autores).

Desta premissa, é salutar que se discuta incansavelmente se o melhor interesse da pessoa deficiente (quiçá incapaz) é mesmo expô-lo a um cônjuge e demais familiares com possíveis interesses vis. Não seria um retrocesso? Só o tempo, a doutrina e a jurisprudência – repita-se - irão nos ajudar a ter uma resposta, mas a título de exemplo iremos analisar um caso concreto que ilustra a problemática estabelecida.

5.4 Caso concreto

Importante destaque na efetivação da Lei Federal n.º 13.146/2015[39] possuem os Registradores Civis das Pessoas Naturais e os Tabeliões, uma vez que asseveram em seus artigos 83 e 85, caput, e § 1º, que:

Art. 83. Os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade.

Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

§ 1º. A definição de curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

Assim, tais registradores terão de ter segurança na hora de auferir a real vontade das pessoas com deficiência para se casar.

Imaginemos a hipótese uma mulher depressiva crônica, curatelada pela própria genitora - pois apesar de lúcida não sabe mais trabalhar com dinheiro - e que se dirija ao Registro Civil de sua cidade para se casar com seu noivo. Havendo desconfiança do Oficial local em realizar o matrimônio considerando o risco de dilapidação dos bens da nubente, resolve pedir mais documentos, laudos médicos e ouvir o testemunho da curadora, para, desta forma, sentir-se mais seguro na hora de deferir o pedido de habilitação para casamento.

De outra banda, acaso não haja conforto na hora de autorizar o processamento, poderia submeter a dúvida ao Juízo Comum da Comarca, nunca se olvidando que o Tabelião não pode tomar atitudes discriminatórias ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços.

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Sobre os autores
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

Hivison Augusto de Souza Novaes

Acadêmico de Direito da Facesf

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMINHO, Leonardo Barreto Ferraz ; NOVAES, Hivison Augusto Souza. As alterações do instituto das incapacidades no Código Civil trazidas pela Lei Federal nº. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e seus corolários no casamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4936, 5 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54900. Acesso em: 26 abr. 2024.

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