2 – O NOVO PERFIL DA FAMÍLIA APÓS A CONSTUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Este capítulo colima perquirir sobre o novo perfil da família brasileira inaugurado com o advento da Constituição de 1988 que redefiniu os contornos tradicionais da família pátria deixando de ter o perfil patrimonializado e hierarquizado do Código Civil de 1916 e passando a albergar um modelo mais inclusivo de famílias plurais a medida em que consagrou diversos direitos fundamentais que passaram a repercutir de forma horizontal nas relações privadas, incluindo-se aí o Direito de Família.
Este capítulo possui o fito de demonstrar como os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar assolaparam a tendência patrimonializada da família do Código Civil de 1916, e, de outra margem, como os princípios constitucionais da igualdade, da pluralidade das formas de família, da liberdade da dissolução do casamento e do melhor interesse do menor foram responsáveis pelo rompimento da estrutura hierarquizada das famílias.
Assevera com precisão e técnica Leonardo Moreira Alves:
Quanto à dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 1º, inciso III, da constituição Federal como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pode-se afirmar que ela é a fundamentalidade material dos direitos fundamentais (CUNHA JÚNIOR, 2008, P. 518), no sentido de que tais direitos fundamentais devem buscar essencialmente satisfazer as necessidades da pessoa humana. Desse modo, tem-se que os direitos fundamentais são instrumentos de realização da personalidade humana, não possuindo, portanto, um fim em si mesmo. O foco de atuação do Estado Democrático de Direito deve ser sempre, pois, o ser humano. (ALVES, 2010, p. 112
Destarte, afere-se do excerto retro colacionado, que o paradigma do Estado brasileiro no pertinente aos Direitos fundamentais e sua repercussão no Direito de Família foi transformado severamente, passando a ter como viga-mestra da hermenêutica constitucional pátria o super princípio da dignidade da pessoa humana. Devendo sempre este princípio ser valorado e sopesado no caso concreto de modo a verificar-se in casu se há sua observância ou inobservância, se o indivíduo tem seus valores personalíssimos correlacionados à sua dignidade ameaçados ou violentados no caso sub judice, verificar no caso concreto se é necessário a tutela do Estado Juiz de modo a reestabelecer-se o status quo ante de modo a ter sua dignidade em sua plenitude e integridade, excetuando-se apenas o caso de que a tutela deste direito colida com um direito fundamental coletivo, partindo-se sempre da premissa de que nenhum direito fundamental aprioristicamente é absoluto. Urgindo-se sempre a aplicação da técnica de ponderação de valores ao caso concreto.
Muito bem ilustra esta compreensão o seguinte excerto de Lamounier:
Consequentemente, cada homem é fim em si mesmo. E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador constituinte, para reforçar a ideia anterior, colocou, tipograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.
Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público [...] (LAMOUNIER, 2009 apud ALVES, 2010, p. 113).
O princípio da solidariedade é outra diretriz basilar das famílias brasileiras hodiernamente, com fincas no artigo 3º, inciso I, da Carta Política de 1988 que afirma ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e também tem disposição expressa em outro artigo da Carta Magna, o 226, parágrafo 8º, que assevera que “ o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988).
Com esta mesma hermenêutica jurídica, entende Lôbo (2007, p.148), que “A solidariedade e a dignidade humana são os dois hemisférios indissociáveis do núcleo essencial irredutível da organização social, política e cultural do ordenamento jurídico brasileiro”. Em outro excerto do mesmo autor (2007, p. 148), afirma que “De um lado, o valor da pessoa humana enquanto tal, e os deveres de todos para com sua realização existencial, nomeadamente do grupo familiar; de um outro lado, os deveres de cada pessoa humana com os demais, na construção harmônica de suas dignidades”.
São institutos que se amoldam ao princípio da solidariedade Familiar: o direito a alimentos, a tutela e curatela, o dever matrimonial de mútua assistência, da paternidade socioafetiva.
No que pertine ao princípio da igualdade deve-se desmembrar os institutos da seguinte forma: igualdade entre cônjuges e companheiros, a igualdade na chefia familiar e a igualdade entre filhos.
A igualdade entre cônjuges e companheiros é corolário da cláusula de igualdade geral insculpida no art. 5º, caput da Constituição Cidadã, da igualdade entre homens e mulheres com fulcro no artigo 5º, inciso I, do Texto Constitucional, também citado nos artigos 226, parágrafo 5º da Carta Constitucional e 1.511 do código Civil de 2002. Estes artigos legais são uníssonos em reverberar a igualdade entre homens e mulheres no bojo de uma relação casamentária ou de companheirismo, pondo fim a hierarquia entre estes que existia até então. O que possibilitou que hodiernamente o marido requeira alimentos da esposa ou companheira e vice-versa e que um dos cônjuges ou conviventes utilize o nome do outro livremente, conforme deliberação de ambos (artigo 1.565, parágrafo 1º, do código civil de 2002).
O princípio da igualdade na chefia familiar é corolário do princípio retro citado, caracteriza-se pela igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher na gestão da vida familiar e tutela dos filhos, rompendo definitivamente com a superioridade masculina no bojo familiar o que caracterizava o modelo familiar alcunhado por patriarcal fundado no código civil de 1916. Este princípio esta fulcrado nos artigos 226, parágrafo 5º e 227, parágrafo 7º e nos artigos 1566, incisos III e IV, 1.631 e 1.634 do Código Civil de 2002.
O princípio da igualdade entre filhos trouxe a lume o fim da discriminação à filhos anteriormente considerados de “segunda categoria”, como os até então denominados filhos “bastardos” ou “ilegítimos” que eram aqueles provenientes de relações adulterinas, concubinárias e até mesmo adotivos e advindos de inseminação artificial heteróloga (proveniente da utilização de material genético de terceira pessoa). Destarte, qualquer pessoa registrada como filho de determinado indivíduo nas formas legais é seu filho para todos os fins sem poder haver distinção às formas de filiação devendo todos serem tratados com igualdade material e afetiva. Sendo, pois, a igualdade de tratamento com os irmãos um direito corolário do princípio da igualdade visto alhures. Com fulcro nos artigos 227, parágrafo 6º da Carta Magna e 1.596 do Códex Civilista em vigor.
O princípio da pluralidade das formas da família é assunto caro à pauta do cidadão pós-moderno é cláusula de inclusão social das mais relevantes que muito bem encerram a incidência horizontal do princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada ao Direito das Famílias, ele eleva todos os cidadãos no que tange aos seus anseios e valores mais íntimos, os afetivos, à condição de igualdade. Todos podem satisfazer seus projetos de vida e afetividade no locus que lhe é peculiar, o ambiente familiar, e da forma que melhor lhe aprouver, com a conformação que lhe for mais favorável. Prosperando a tese de que o Estado não pode e nem deve intervir no ambiente mais privado e íntimo do indivíduo que é o locus familiae. Haja vista esta seara jurídica não merecer intervenção Estatal já que a formação e conformação da estrutura em que os indivíduos realizarão e satisfarão seus desejos sexuais, afetivos e projetos de vida dizem respeito somente a eles mesmos e a ninguém mais é o principal campo de incidência do princípio da autonomia privada.
O princípio da liberdade da dissolução do casamento vem nesta mesma tocada a consagrar a liberdade dos indivíduos, no sentido de não obrigar a se perpetuar uma relação triste, sofrida e famigerada que somente desgasta e tortura emocionalmente os cônjuges, conferindo-lhes o direito a unir-se e desunir-se a quem tenha ou queria ter comunhão de vida, propósitos e patrimonial da forma que melhor lhe aprouver, buscando-se sempre a família eudemonista, aquela que valoriza a felicidade dos consortes.
O princípio do melhor interesse do menor vem ao encontro do entendimento de que as medidas judiciais pertinentes à menores, como a decretação de guarda judicial, deve sempre serem editadas em benefício do menor e não dos pais ou responsáveis. Possui fulcro no artigo 227, caput da Carta Magna que rege que é dever da família, da sociedade, do Estado assegurar aos indivíduos menores de idade os direitos fundamentais com absoluta prioridade. Também com supedâneo ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em que no seu artigo 3º consagra a proteção integral dos direitos fundamentais das Crianças e dos Adolescentes.
DIREITO DE FAMÍLIA MÍNIMO
No regime jurídico do Código Civil de 1916 a família era matrimozializada e patrimonializada a ideologia daquele tempo incutia na sociedade a falsa compreensão de congruência entre a autonomia da vontade e autonomia privada. Este valor repercutia basicamente a pretensão de ter-se liberdade patrimonial em detrimento da liberdade extrapatrimonial, sendo esta na sua maior parte regulada por normas cogentes até então, fato que mitigava contundentemente a liberdade dos indivíduos e o exercício da autonomia privada pelos membros de uma família.
Falsa premissa revelada no seguinte excerto de Rodrigues, que muito bem exemplifica o pensamento jurídico àquele tempo:
Já foi afirmado acima que a família constitui a célula básica da sociedade. Ela representa o alicerce de toda a organização social, sendo compreensível, portanto, que o Estado a queira preservar e favorecer. Daí a atitude do legislador constitucional, proclamando que a família faz com que o ramo do direito que disciplina as relações jurídicas que se constituem dentro dela se situe mais perto do direito público do que do direito privado. Dentro do Direito de Família o interesse do Estado é maior do que o individual. Por isso, as normas de Direito de Família são, quase todas, de ordem pública, insuscetíveis, portanto, de serem derrogadas pela convenção entre particulares [...] (RODRIGUES, 2000 apud ALVES, 2010, p. 135).
Malgrado, com o advento da lex legum de 1988, houve uma robusta alteração do quadro jurídico que regulava as Famílias brasileiras. Inaugurando uma nova era de mais respeito às liberdades individuais. Em um primeiro momento despiu-se a retórica vazia da ideologia burguesa que se fazia imperiosa no Estado Liberal brasileiro e fez-se a devida distinção entre Autonomia da Vontade e Autonomia Privada, garantindo-se a aplicação desta última também as relações extrapatrimoniais e não tão somente às relações patrimoniais como ocorrera outrora. Em segundo plano, redesenhou-se os contornos da Família em solo pátrio passando-se a concebê-la como o lócus de felicidade e realização pessoal do indivíduo, aplicando-se em seu bojo o exercício da autonomia privada, o que permitiu a família tornar-se deverás uma instituição democrática.
Sobre este tema esclarece com maestria Pereira na seguinte passagem:
Sem dúvida, até o advento da Constituição Federal de 1988, os pilares do Direito Civil eram centrados na propriedade e no contrato. Porém, com a nova Carta Magna fez-se presente a crise de categorias jurídicas pré-constitucionais, que entraram em choque com as recém-criadas, cuja tônica e preocupação era com a preservação da dignidade da pessoa humana. Isto fez com que fossem revistos as regras e institutos do Direito Civil, a partir de uma despatrimonialização e de uma ênfase na pessoa humana, isto é, na compreensão da dignidade como cerne do sujeito e consequentemente das relações jurídicas. Neste sentido, ampliou-se o campo de aplicação da autonomia privada, que também se curva sobretudo no âmbito das relações familiares [...].
A partir do momento em que a família se desinstitucionaliza para o Direito – ou seja, que ela não mais se faz relevante enquanto instituição -, e que a dignidade humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passa-se a valorizar cada membro da família e não a entidade familiar como instituição [...] (PEREIRA, 2006 apud ALVES, 2010, p. 136).
Neste sentir a família tornou-se com fulcro no artigo 226, caput da constituição Federal, a base da sociedade e não mais a base do Estado, logo não necessitando de seu monopólio de regulamentação, mas sim de sua proteção especial. É com base neste novo pensar que o estado passou a dar guarida a novas conformações familiares, formadas sem vínculos jurídicos formais, sem uma solenidade oficial, portanto famílias de fato a exemplo da união estável (artigo 226, parágrafo 3º, da Carta Política). Destarte, o Estado passou a reconhecer como viga-mestra da família e liame basilar como requisito para o reconhecimento do núcleo familiar o afeto (affectio familiae).
Encerra muito bem este tema, Pereira, ao aduzir:
Para que haja uma entidade familiar, é necessário um afeto especial ou, mais precisamente, um afeto familiar, que pode ser conjugal ou parental [...]. Diante deste quadro estrutural, o que se conclui é ser o afeto um elemento essencial de todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental [...] (PEREIRA, 2006 apud ALVES, 2010, p. 138).
No próximo tópico tratar-se-á de relevantíssimo tema a esta pesquisa, o princípio da intervenção mínima no direito de família.
O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA NO DIREITO DE FAMÍLIA
A família dos tempos hodiernos é a família eudemonista que tem como escopo precípuo a satisfação pessoal de cada indivíduo que a compõe. Para isso faz-se mister que esta família seja democrática, aberta e plural e para conquistar-se tal desiderato é imperioso que haja a menor intervenção possível do Estado em sua configuração e intimidade, para que a família seja de fato e não de direito, para que os fatos e anseios da vida colmate as lacunas legais que devem ser o mais concisas possível, como já reprisado, o Estado só deve intervir na intimidade familiar para garantir a aplicação dos direitos fundamentais, quando no caso concreto estes estejam sendo violados.
Neste sentir, prelecionam os afamados e já bastante destacados nesta pesquisa por emérita cátedra, Farias e Rosenvald na seguinte passagem:
Com isso, forçoso é reconhecer a suplantação definitiva da (indevida) participação do Estado no âmbito das relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente a vontade do próprio titular, como expressão mais pura de sua dignidade[...].
A partir disso, percebesse, sem embaraçamentos, que o estado começa a se retirar de um espaço que sempre lhe foi estranho, afastando-se de uma ambientação que não lhe diz respeito (esperando-se que venha, em futuro próximo, a cuidar com mais vigor e competência das atividades que, realmente, precisam de sua direta e efetiva atuação). Foi vencido na guerra. E o vencedor (a pessoa humana, revigorada pelo reconhecimento, em sede constitucional, de sua fundamental privacidade, como expressão e sua dignidade) pode, agora, desenvolver amplamente seus projetos existenciais e patrimoniais, como corolário de sua liberdade. (FARIAS E ROSENVALD, 2008 apud ALVES, 2010, p. 142).
Deve-se sempre assegurar a liberdade dos membros da família, a intervenção do Estado às relações familiares deve ocorrer apenas em última instância com o escopo de garantir a incidência dos direitos fundamentais, ou seja, em ultima ratio, fato que os estudiosos da ciência familiarista entenderam por bem alcunhar por princípio da intervenção mínima no âmbito do direito de família.
Esta denominação flagrantemente bebeu-se na fonte jus científica criminalista, haja vista, originariamente o princípio da intervenção mínima tem sua gênese naquela seara, advém da concepção de que o Direito Penal deve intervir apenas nos casos mais relevantes para a incolumidade pública (fragmentariedade). Destarte, o Direito de Família colheu esta expressão na seara jurídica coirmã penalista.
Neste sentir, dissertou com boa técnica, Pereira:
Sob nova roupagem e assumindo novo papel, a família contemporânea não admite mais ingerência do Estado, sobretudo no que se refere à intimidade de seus membros. Conforme salienta Luiz Edson Fachin, está-se diante de um notório processo de privatização das relações, com propagação da interferência mínima do Estado no âmbito das relações privadas, notadamente nas relações de família. É a chamada “privatização do estado” e “desinstitucionalização da família”[...]. (PEREIRA, 2006 apud ALVES, 2010, p. 144).
É imperioso ressaltar que há no Direito positivo pátrio, dispositivo que assenta definitivamente que ao Estado não é permitido ingerir no âmago familiar, expressão basilar do Direito de Família Mínimo. Refere-se ao artigo 1.513 do Código Civil de 2002, que assim prescreve: “ É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família (BRASIL, 2002).
Este dispositivo legal encerra tudo que fora dito retroativamente nesta pesquisa, e impõe de forma cogente e imperiosa o respeito à família plural e eudemonista. E acaba de vez com a discussão pública de ser possível ou não impor- -se a sua concepção familiar a outras famílias e a resposta é categoricamente: “Não”. Logo, o Estado brasileiro não autoriza a intervenção pública nas conformações familiares.
No próximo e derradeiro capítulo, falar-se-á sobre o princípio da pluralidade das entidades familiares na Constituição de 1988, a família eudemonista e as conformações familiares hodiernas no Brasil. Destarte, será o apogeu, o tema mais relevante desta pesquisa.