1. Reflexões introdutórias
Importante abordar inicialmente que é sabido por todos os envolvidos no campo jurídico que se vivencia, na contemporaneidade, a positivação e divulgação dos métodos consensuais de resolução de conflitos, isto com vistas às possíveis melhorias processuais/sociais (notadamente por meio da transferência dos diálogos sobre o litígio para as próprias partes envolvidas) e celeridade processual (diminuição do “abarrotamento judiciário” e razoável duração do processo).
A princípio, torna-se imperioso defender a tese de que é necessária, notadamente no presente momento, uma reflexão profunda sobre os aportes teóricos que sustentam o direito processual, sob a égide da grande mudança de paradigmas que marca o Novo Código em vigor.
Sustenta-se também com o presente trabalho, que as discussões envoltas ao direito processual não estão imunes à Filosofia e Teoria do Direito, desmunidas de sentido as afirmações daqueles que bradam em alto som que o processo é prático, não é lugar de reflexões teóricas. A (suposta) dicotomia teoria/prática será abordada em momento oportuno, porém, deve-se alertar que sem o suporte teórico, que exige aprimoramento desde o início da universidade, não se tem bons agentes atuantes no processo, sem bons agentes, não há “bom” processo – e isso reflete de maneira assaz significativa na sociedade (jurisdicionados).
Um exemplo marcante corrobora a reflexão proposta: o § 2º do artigo 489 do Código de Processo Civil de 2015 dispõe que “no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. ” Pois bem, o trecho colacionado possui enorme carga semântica, exigindo do jurista conhecimentos propedêuticos.
O que o legislador quis dizer com o termo “colisão entre normas”? O termo “normas” compreenderia regra e princípio? É possível tal colisão? Veja-se que um parágrafo, como o descrito, suscita um sem número de indagações, imagine, pois, o código em seu conjunto. Exige-se assim, para a escorreita interpretação deste dispositivo, conhecimentos atinentes à teoria de Ronald Dworkin, F. Muller, e, claro, Robert Alexy, e sua teoria da Ponderação (que pode ser muito mais complicada do que parece)[1].
Sob título de complementação à parte introdutória, interessante citar trabalho que diz respeito às provas no processo, escrito pelo magistrado Eduardo José da Fonseca Costa, o autor ensina que “prova e verdade são problemas filosóficos entrelaçados, que exigem uma radicalidade reflexiva; porém, vivem no Direito uma monotonia teórica, despojada de originalidade, porquanto presos a cálculos dogmáticos, a conceitos convencionais dominados pela linguagem esclerosada dos processualistas e armazenados no uso corrente do quotidiano do foro”. O eminente processualista ainda arremata “que infunde a suspeita de que o Brasil, templo da rasidade meditativa, é um dos túmulos mundiais do Direito Probatório”[2].
O trabalho escrito pelo magistrado traz como assunto a questão probatória, mas suas reflexões podem ser estendidas ao Direito Processual como um todo, com o intuito de superar o habitus (Bourdieu) que impera no âmbito do senso comum teórico do jurista (L. Alberto Warat).
Assim, concluindo a parte introdutória da presente pesquisa é possível afirmar que reduzir o direito processual ao modus operandi simplificador acrítico, significa compreender o Direito como mero instrumento, deixando de lado o papel de destaque que a atividade jurídica assume no cenário hodierno.
2. A necessária adequação do Processo Civil ao Constitucionalismo
Essa reflexão introdutória é de assaz relevância diante do cenário instaurado (e reproduzido) pela comunidade jurídica no sentido de interpretar o direito processual como seara “meramente prática”, alheia às reflexões filosóficas. Ora, a separação (arcaica e metafísica) entre matérias práticas e teóricas acaba por justificar incongruências por parte da academia jurídica, ao ponto de contribuir para o dilema do ensino jurídico mitigado.
Defende-se por meio deste, que a teoria processual surgida no bojo da Constituição Federal é corroborada pelo Código de Processo Civil recém elaborado, exigindo o olhar do novo com os olhos do novo (Lenio Streck).
O estudo do direito processual não deve ser entendido como mero instrumento, ainda mais quando se pensa que o processo bem guiado é garantidor daquilo que a Carta Constitucional propõe.
Com o intento de aclarar as informações trazidas, o estudioso Daniel Gomes de Miranda entende instrumentalismo: “como a corrente que defende uma relação de interdependência entre o direito material e o direito processual, de modo que este serve de instrumento para a efetivação daquele, que, por sua vez, confere sentido a este. ” [3]
Posto isso, como forma de inserir o direito processual no cenário proposto, constitucionaliza-lo significa condicionar a atuação dos envolvidos na criação/aplicação da lei aos novos preceitos, desde a tarefa legiferante até a solução da lide.
Interessante o estudo de Daniel Miranda, afirmando que a constitucionalização do processo gera efeitos de três ordens:
a) A criação normativa: momento em que inserido o projeto do novo Código de Processo Civil, uma vez que o legislador busca adequar a legislação infraconstitucional aos direitos fundamentais assegurados e protegidos pela ordem jurídica brasileira; b) A interpretação normativa: reconhece-se que não há mais espaço para os vetustos princípios gerais de direito, brocardos seculares, na interpretação normativa processual. A interpretação do novo Código deve-se dar através de um vetor hermenêutico, qual seja a Constituição Federal. Enxerga-se o Código com os olhos da Constituição; e 29 c) A aplicação normativa: o magistrado, quando da aplicação das normas contidas no novo Código, tem – em decorrência da interpretação constitucionalizada que conferiu ao texto normativo – um grau maior de liberdade de decisão, na medida em que pode recusar aplicação da regra, sob fundamento de desconformidade com o texto constitucional, o que não significa que se esquiva do dever de bem motivar, também constitucional. [4]
Ainda sobre a constitucionalização do processo, salutar, destacar a obra de Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira, que ao criticar a postura instrumental proposta por Dinamarco, entendem que
podemos concluir que o que acontece com Dinamarco e sua instrumentalidade do processo é um não retorno crítico através da tradição, o que faz com que se aceite acriticamente alguns conceitos que a própria teoria pretende superar. Isso no campo jurídico é corrente na medida em que um retorno apropriativo em direção ao passado, possibilitado pela própria historicidade do Ser-aí, é tido como supérfluo.[5]
Logo após, os mesmos autores arrematam ao afirmar que
o estudo do direito processual centrado na relação jurídica permite um acesso hermenêutico ao Direito. Essa perspectiva permite a superação da visão nominalista do direito diante da qual este nada mais seria do que um conjunto de normas que regulam a vida humana, uma vez que por relação jurídica se entende uma relação juridicamente relevante regulada pelo direito objetivo (material) de pessoas entre si ou de pessoas e coisas![6]
Este cenário é envolto por muitos outros temas correlatos, por exemplo o papel que o Judiciário assume no contexto histórico a partir da segunda metade do século XX, aumentando, inevitavelmente, sua carga de trabalho e o número de processos. Neste sentido, vale destacar interessantes obras que tratam do tema, por exemplo: Ingeborg Maus em “O Judiciário como Superego da Sociedade”; em que a autora relaciona a atuação judiciária à teoria psicanalítica de Freud.
No Brasil, o jurista que merece destaque é Lenio Streck, que trata do tema em diversos estudos, notadamente em “Verdade e Consenso” e “Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica”, este que, por sua vez, constrói o que entende ser sua Teoria da Interpretação em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo, pautando na intricada relação entre Direito e Política com amparo, principalmente, na obra de Ronald Dworkin, na filosofia hermenêutica de Heiddegger e na hermenêutica filosófica de Gadamer.[7]
Essas reflexões servem de esteio para o desenvolvimento da pesquisa, visto que nos fazem pensar sobre a possibilidade da busca da “resposta adequada ao caso concreto” por meio do diálogo entre os próprios atores do processo, trazendo à baila a participação, inclusive, da instituição religiosa que as partes frequentam. Portanto, percebe-se que o Código de Processo Civil recém-inaugurado vem, também, com o escopo de adaptar-se à realidade constitucional, promovendo a adequada colocação do processo no Estado Democrático de Direito.
3. Breves anotações sobre as principais mudanças no Processo Civil
A grande viragem na Teoria do Direito que pretende se esboçar se dá com a Lei 13.105/2015, que institui o Código de Processo Civil e proclama logo no caput de seu artigo 3º: a reprodução do conhecido Princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional (art. 5º, XXXV), a permissão da arbitragem (§ 1º), a promoção da solução consensual dos conflitos pelo Estado (§ 2º) e o estímulo por parte de juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público (§ 3º).
O Novo Código ainda corrobora a luta pela celeridade do processo ao dispor em seu artigo 4º sobre o Princípio da Razoável Duração do Processo, colocado na Constituição Federal, a partir da Emenda 45/2004, no artigo 5º, LXXVIII.
O artigo 6º do NCPC ainda traz o “Princípio da Cooperação entre as partes”, conforme tem sido chamado pela doutrina, que afirma a busca pela resolução consensual, instigando a participação ativa das partes no sentido de uma decisão justa, efetiva e em tempo razoável. Ainda sobre a razoável duração, vale destacar que, dentre as incumbências do juiz, está a de velar pela razoável duração do processo (art. 139, II) e promover, a qualquer tempo, a auto composição, preferencialmente com o auxílio de conciliadores e mediadores judiciais (art. 139, V).
No artigo 334, o CPC também inova ao estabelecer a audiência de conciliação como ato processual necessário, ou sua recusa fundamentada por ambas as partes. Proibição de decisão surpresa (art. 10), honorários sucumbenciais para a Fazenda Pública (85, §19), garantia da razoável duração do processo por meio de multa a recursos meramente protelatórios (art. 80), institucionalização das férias forenses, instrumentos de uniformização de jurisprudência como o incidente de resolução de demandas repetitivas (art.976). [8]
Nem tudo são flores no Novo Código. Importante abordar interessantes críticas feitas por estudiosos da seara processualista. Pois bem, Eduado José da Costa entende que “na leitura do artigo 927 do CPC-2015, percebe-se uma tentativa de “redução” dos tribunais superiores a órgãos a-históricos, compostos por juízes neutros, que (i) resolvem as questões que lhes são levadas à apreciação a partir de um ver puramente teórico, e que (ii) procedem à objetivação de seus entendimentos mediante a elaboração de enunciados universais lato sensu (ex.: enunciados stricto sensu de súmula de jurisprudência dominante, precedentes em controle abstrato de constitucionalidade ou em julgamento de recursos excepcionais repetitivos).” [9]
Outra crítica que merece reflexão, mas que não cabe aqui, diz respeito à “fetichização dos precedentes”, a tão exarada “aproximação com a commom law”. Ora, como alterar o sistema jurídico de uma nação, o que pressupõe uma ruptura paradigmática assaz relevante, em tão curto período de tempo? E por meio de um código procedimental. [10]
4. Modelos juiz e interação entre as partes
Com espeque nas supracitadas alterações no Código Processual Civil, percebe-se uma interessante e salutar conjuntura que pode ser resumida nos seguintes termos: o CPC corrobora a inafastabilidade da prestação jurisdicional, reconhecendo a abundante e crescente busca pelo Judiciário como realizador de direitos e garantias; porém distribui entre todos os participantes do processo, a responsabilidade por contribuir com a resolução da demanda em tempo razoável, estabelecendo a obrigatoriedade de tentativa de auto composição, e buscando a diminuição da arbitrariedade do intérprete julgador.
Como bem ensina Humberto Dalla Bernardina de Pinho Karol Durço, em interessante artigo denominado “A mediação e a solução dos conflitos no estado democrático de direito. O juiz Hermes e a nova dimensão da função jurisdicional”:
Em sociedades primitivas a pacificação dos conflitos era feita pela força privada; em Estados despóticos a pacificação dos conflitos confundia-se com o próprio Rei; em Estados liberais a mesma era ditada pela lei do mercado; em Estados sociais a pacificação dos conflitos correspondia ao paternalismo prestacionista; e em Estados democráticos a pacificação dos conflitos deve ser legitimada por um discurso processual intersubjetivo além de reclamar, portanto, métodos outros que a estrita e fria atuação estatal por meio da atividade jurisdicional.[11]
Importante alertar que os autores ainda sustentam o artigo sob a égide do trabalho de François Ost, chamado “Os modelos de juiz”, em que este último propõe a associação entre os modelos jurisdicionais e os modelos de Estado no curso da história, concluindo assim que “atividade jurisdicional e a presença dos denominados equivalentes jurisdicionais (autotutela, autocomposição, mediação e julgamento de conflitos por tribunais administrativos) nada mais é do que um reflexo do modelo de Estado sob o qual esta é exercida”.
Deve-se alertar que quando se diz “modelos de juiz” se pretende expor “modelos de jurisdição”, ou modelos de intérpretes, como propõe Morais da Rosa e Tomaz de Oliveira. [12]
Ost entende não ser possível falar em um único modelo de juiz para o atual contexto jurídico, para tanto recorre à mitologia, na tentativa de analisar as facetas da atuação judicial. As referências são Júpiter, Hércules e Hermes.
Há, outrossim, três grandes modelos de juiz, a saber: o vinculado ao paradigma do Estado Liberal, paralelo ao período de codificação, em que a confiança no legislador é notória e influenciada pela “vontade geral” de Rousseau, nesta esteira o juiz é mera “boca da lei” (lembrando que a Revolução liberal francesa busca, notadamente, acabar com o elo magistratura/soberano, tão presente no período anterior).
Assim o juiz do período liberal clássico é Júpiter: o juiz mínimo. Júpiter é tratado como exegeta (paloejuspositivsmo, amparado na classificação de “positivismos”, que pode ser encontrada em Bobbio).
O segundo modelo se alia ao Estado Social, na esteira da superação do liberalismo clássico, afirmação dos direitos sociais (2º geração) e revoluções socialistas, para este período Ost entende o juiz como Hércules, um magistrado ativo, atuante – com vistas a superar o “boca da lei”, e até, de certa forma, discricionário. Vinculado ao “realismo jurídico”, ou seja, para Ost, o segundo modelo é o juiz que realiza o Direito, sendo o Direito aquilo que o juiz afirma.
Aqui cabe tecer alguns comentários sobre as atuações deste modelo de juiz, salutar dizer que Ost não se baseia no Hércules de Dworkin, pois a atividade do juiz Hércules (de Dworkin) é árdua: levar a sério o Direito, com responsabilidade política e recorrendo aos princípios (que não são os gerais, tampouco são valores).
Nesta esteira, ao criticar a posição de Ost, Streck argumenta que o juiz Hércules de Dworkin é antidiscrionário, isto porque atua na busca da coerência e integridade do Direito, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição. Ainda sustenta que Ost descreve o juiz Hércules como típico da Modernidade Filosófica, ou seja, o sujeito solipsista, que projeta suas decisões a partir de sua consciência. Desta feita, Ost teria se enganado ao abordar Hércules nesta vertente, pois as qualidades que lhe atribui são típicas do paradigma liberalista/individualista, não do Estado Social.
Destarte, Streck afirmaria que o modelo de juiz que melhor se amolda com a configuração estatal contemporânea é o Hércules de Dworkin, aquele, metaforicamente, capaz de chegar à “resposta correta”. Assim, pode-se dizer que “Dworkin alia a figura do juiz Hércules à metáfora do romance em cadeia (chain novel) a fim de ilustrar o processo de aprendizado social subjacente ao direito compreendido como prática interpretativa. [13]
A obra de Dworkin é extensa, posto que o autor trata de diversos pontos ligados à reflexão jurídica, porém, no enfoque da mudança de atuação dos atores do processo, como se pretende no momento, o juiz Hércules tem algo importantíssimo a mostrar: a construção intersubjetiva da decisão busca dar segurança às decisões judiciais, no sentido de garantir integridade e coerência à jurisprudência, estabelecendo a ideia de que o processo (e seu resultado) tem por finalidade a resolução da demanda do jurisdicionado.
Nesta perspectiva, o cidadão é menos dependente da atividade (discricionária) do magistrado, podendo participar da construção da resposta que melhor se amolda à resolução de seu imbróglio.
O terceiro modelo proposto por Ost diz respeito ao “juiz Hermes”, que pode ser entendido como aquele adaptado à fragmentada pós-modernidade, o juiz mediador, capaz do diálogo entre todos envolvidos no processo, bem como o diálogo entre valores adversos. Mais adiante será abordada a mitologia do “semideus” Hermes.
Para deixar claro, palavras do próprio Ost:
O Direito, aceita um número indefinido de jogadores cujos papéis e réplicas não estão inteiramente programados. Por um lado, podem entrar em jogo hierarquias enredadas em anéis desconhecidos; como vimos, às vezes papéis secundários ganham destaque. Por outro lado, cada participante do jogo do Direito é simultaneamente introduzido em outros domínios que se celebram sobre outros domínios particularmente familiares, econômicos e políticos.[14]
O trabalho de Ost sofreu inúmeras críticas por todo o mundo, não vem ao caso numerá-las. Para a presente pesquisa, sua tese é de fundamental importância, e, principalmente, instiga a reflexão sobre o modelo de processo que se instaura no paradigma do novo CPC. [15]