O art. 92, I, a, do Código Penal, prevê, como efeito da condenação, a perda do cargo de servidor público em caso de condenação a pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, em razão de crime funcional, a critério do juiz, que deve declarar na sentença.
Já o art. 44 do mesmo diploma permite ao magistrado converter a pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Da conjugação desses dois comandos legais emerge um problema que mereceu ser pesquisado: havendo a aludida conversão, poderá o juiz determinar a perda do cargo se a letra legal só autoriza a medida quando a condenação for à privação de liberdade?
A pesquisa justificou-se porque embora o STJ venha decidindo que sim, há tribunais e autores que entendem o contrário, gerando decisões judiciais defendendo a incompatibilidade da medida.
Por tratar-se de questão muito específica, poucos autores atentaram para o problema e dele se ocuparam. Pesquisou-se nas obras dos mais renomados penalistas brasileiros e todos trataram dos efeitos específicos da condenação, abordando a perda do cargo, mas apenas três desceram à especificidade aqui tratada.
Rogério Greco[1] e Alexandre Araripe Marinho/André Guilherme Tavares de Freitas[2] arrostaram o tema com conclusões diametralmente opostas: Greco, no sentido de que não é possível determinar a perda do cargo e Marinho/Freitas, no fluxo contrário. Janaína Pachoal[3] não mirou nos olhos do problema, mas ponderou que "faz sentido retirar o cargo, mesmo em casos de condenações mais leves, quando a própria função desempenhada restou traída, haja vista o abuso de poder ou a violação de dever".
O administrativista disciplinar Marcos Salles Teixeira[4] cuidou do tema na mais completa obra de Direito Disciplinar do país, na qual defendeu que à luz da base principiológica irrigadora da instância criminal, é mais razoável considerar que a conversão de condenação a pena privativa de liberade, por crime funcional, em pena restritiva de direitos, não se harmoniza com a perda do cargo, pois o efeito acessório soaria mais gravoso que a pena em si.
O Defensor Público Federal Pablo Luiz Amaral[5] bebe na mesma fonte, e na sua abordagem adotou todas as ideias, argumentos e citações do desembargador Silas Rodrigues Vieira, do TJ/MG, num voto como relator nos Embargos Infringentes nº 1.0024.05.782574-7/003 (2014). Os embargos orbitaram a questão aqui estudada, e o magistrado compreendeu que a perda do cargo público somente ocorrerá com a condenação do acusado à privação de liberdade, porque os dispositivos penais não podem ser interpretados para prejudicar o réu, parte mais frágil da relação processual, e se a intenção do legislador fosse imputar a perda do cargo aos condenados contemplados com penas restritivas de direito, assim o teria feito expressamente.
Em arremate, ponderou: "dentro desta premissa, dúvida não há quanto à vedação de se decretar a perda do cargo público quando o agente é agraciado com penas restritivas de direito". Outras decisões judiciais colegiadas foram sopradas pelos mesmos ventos favoráveis aos servidores, anunciando que a conversão de penas inviabiliza o efeito condenatório da perda do cargo, ou que esse efeito da condenação restaria mais gravoso que ela própria, em linha com Rogério Greco, Marcos Salles Teixeira e Pablo Luiz Amaral.
Essas compreensões foram esposadas nas apelações criminais - ACR, julgadas no TJ/RN, n°s 2014.011775-5 (2016), 2011.006915-6 (2013), 2011.007069-2 (2012), 2011.009814-0 (2012), e 2011.005618-0 (2011). Idem nas ACR julgadas no TRF2 em 2010, nºs 2007.51.19.001943-1 e 2003.51.01.508626-3; no TJ/RO em 2009, nº 2009.001253-8; e no TJ/MG, nas ACR nºs 1.0120.03.900006-8/001 (2004) e 1.0024.02.671996-3/001 (2005).
Noutro norte, o STJ tem a companhia da grande maioria dos Tribunais Estaduais e Federais para apostar na compatibilidade entre a troca de pena e a perda do cargo. Amparam-se no fato de que a imposição da perda do cargo público não se relaciona com a modalidade de pena corporal estabelecida para o sentenciado, sendo mera consequência administrativa da condenação imposta, exigindo-se, para tanto, apenas, o preenchimento de requisitos objetivos da condenação para sua aplicação.
Nesse contexto, a conversão da modalidade penal imposta não pode influenciar a reprimenda acessória, sob pena de inaplicabilidade do instituto, haja vista que, nessa modalidade, na maioria das vezes, será possível a substituição da pena privativa de liberdade por restrição de direitos. Essa é a síntese do cabedal argumentativo que amparou as seguintes decisões do STJ: HC nº 338.636 (2016), AgRg no AREsp nº 358.326 (2016), AgRgnoAREsp nº 745.828 (2015), AgRg no REsp nº 1.208.940 (2014), AgRg no REsp nº 1.346.879 (2013), AgRg no AREsp nº 46.266 (2012), HC nº 110.504 (2012), EDcl no REsp nº 819.438 (2007), HC nº 35.427 (2006). Idem no TRF3, na ACR nº 0001692-14.2011.4.03.6116 (2015); e no TRF5 na ACR nºs 12.573 (2016), e nos EIACR 20088202001823704 (2016).
Esse farto acervo argumentativo de ambas as correntes permite concluir que não merece prosperar o entendimento de que a decretação da perda do cargo público é incompatível com a conversão de penas. Isso porque o objetivo daquele efeito da condenação não é a incompatibilidade da prisão com a permanência do condenado no cargo público, mas sim a necessidade de se afastar da Administração Pública o servidor que agiu com abuso de poder ou violação de dever funcional.
Considerando que as penas mínimas para os crimes contra a Administração são brandas, e que, em regra, os servidores condenados atendem às condições para conversão de penas, se vencessem os que defendem a impossibilidade de perda do cargo, esse salutar efeito da condenação restaria inviabilizado na esfera penal. Isso permitiria que servidores que usaram seus cargos para locupletar-se em crimes de concussão e corrupção passiva, por exemplo, permanecessem nos quadros estatais mesmo depois de mostrarem mácula de caráter incompatível com o mister público.
Essa distorção se confirma ao mirar-se o § único do art. 137 da Lei nº 8.112/90, que prevê a impossibilidade de retorno aos quadros do servidor federal que praticar crime contra a administração, corrupção, entre outros. Ora, se a lei administrativa veda que o desonesto retorne à Administração, como poderia a lei penal permitir que ele permaneça depois de se afogar em lodacenta escória?
Portanto, conclui-se pela integral compatibilidade entre a conversão de penas e a perda do cargo, sendo necessário que o STJ publique súmula para evitar que decisões noutro sentido autorizem a permanência de bandidos travestidos de servidores nos quadros públicos, como ocorreu em algumas decisões apresentadas neste estudo.
[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 12ª ed. vol. 1. Niterói: Impetus, 2010, p. 631.
[2] MARINHO, Alexandre Araripe. FREITAS, André Guilherme Tavares de. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 618.
[3] PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito Penal: Parte Geral. 2ª ed. Barueri, SP: Manole, 2015. p. 146
[4] Disponível em: http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/rfb-anotacoes-sobre-pad-2015.pdf p. 1000/1001. Acessado em 21/7/2016.
[5] Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,da-impossibilidade-da-perda-de-cargo-publico-quando-a-pena-privativa-de-liberdade-e-convertida-em-restritiva-d,43389.html . Acessado em 20/7/2016.