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Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart

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Dworkin e Hart contribuíram muito no debate sobre os limites dos poderes de interpretação das normas jurídicas e a maneira correta de se proceder, um tema recorrente no estudo do direito.

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa analisar a discussão entre Herbert Lionel Adolphus Hart e Ronald Dworkin, sobre o uso da discricionariedade por parte dos julgadores nas decisões judiciais.

O debate criado entre Hart e Dworkin é extremamente rico e com enormes implicações pragmáticas, pois qualquer ordenamento jurídico convive com as questões propostas no decorrer do estudo, refletindo na prática e nos aspectos das decisões judiciais.

O interesse no tema está presente nas consequências práticas das questões abordadas por Hart e Dworkin, que embora seja de cunho teórico, têm grandes implicações no sistema jurídico e político de um Estado.

O trabalho foi divido em cinco etapas. Inicia-se com o contexto histórico do direito natural e positivismo jurídico, com doutrinadores como Austin e Kelsen. Ilustra-se também nessa etapa aspectos do terceiro reich e citações da doutrina de Hannah Arendt, com posições sobre o direito natural e questões de princípios morais.

A segunda etapa apresenta o estudo com a doutrina de Hart e alguns conceitos pertinentes de seus princípios no livro The Concept of Law, inclusive seu postscript. Será abordada sua visão sobre normas primárias, secundárias, a norma de reconhecimento e a discricionariedade do julgador, com possível, porém restrito, uso de normas morais para influência no julgado.

O estudo a respeito da doutrina de Dworkin, sendo esta a terceira etapa, é sobre o livro Taking Rights Seriously. Nesta obra o doutrinador faz algumas críticas a Hart, com o teste do pedigree, a figura do juiz Hércules e algumas respostas aos seus próprios críticos.

A quarta etapa traça um paralelo entre as doutrinas e tenta apontar consensos e discordâncias sobre o tema em questão, assim como se há realmente grandes divergências de conceitos. Por fim, apresenta-se a conclusão após a pesquisa nas leituras apresentadas, com o intuito de demonstrar a grande implicação prática do tema proposto.

A problemática está cabalmente presente a todo instante, pois o foco do trabalho são as implicações de gozar, ou não gozar, o julgador de discricionariedade no ato do julgamento, podendo ou não usufruir do instituto da moralidade para fundamentar seus julgados.

Para entender a discussão travada entre os doutrinadores, é importante compreender a amplitude do debate, inclusive sobre conceitos e aspectos do commom law.

No sistema do direito costumeiro (common law), não aplicável no direito brasileiro, as regras são quase sempre vagas e com necessidade de interpretações. Importante, portanto, para iniciar a leitura deste artigo, ter a sensibilidade de compreender a diferença entre o sistema jurídico brasileiro e a common law, assim como a importância dos princípios e conceitos morais nos ordenamentos jurídicos, seja no common law ou no direito com livre público determinando normas a serem seguidas.


1. CONTEXTO HISTÓRICO

Discutir sobre temas como moral, ética e princípios no direito, ou até mesmo lançar comentários sobre estes institutos, implica em utilizar de cautela e, também, apresentando diferentes posições doutrinárias, pois o assunto é de extrema complexidade.

É importante, antes de iniciar o tema central - o uso de discricionariedade nas decisões judiciais –, apresentar o contexto histórico entre a corrente do positivismo jurídico e do direito natural ou jusnaturalismo.

Essencial se faz entender não apenas a discussão contemporânea acerca do positivismo jurídico, mas também iniciar o estudo sobre os precursores e os doutrinadores mais importantes destes institutos.

Os principais ícones do positivismo jurídico são John Austin, Hans Kelsen e Hart. Alguns doutrinadores fazem também referências a Hobbes, Tomás de Aquino e Bentham (DELAMAR, 2010), outros a Platão e Aristóteles (FILHO, 2005), como aqueles que distinguiram direito natural de direto positivo.

Em A província da jurisprudência determinada (The province of jurisprudence determined, 1832), John Austin define a distinção entre direito positivo de moralidade, tema este que será amplamente tratado por ser o foco da discussão entre Hart e Dworkin.

Para Austin, a definição de direito estaria ligada aos comandos, os quais são expressões do que uma pessoa deve fazer ou deixar de fazer, devidamente acompanhadas por ameaças de punição. Essa definição foi realizada para criar diferença entre direito e moral e, assim, distinguir-se de doutrinas do direito natural.

Ainda segundo Austin, as leis são as condutas prescritas pelo soberano ou por certo organismo determinado, a quem uma sociedade deve obediência. As regras morais são as criadas por Deus, pela moralidade positiva ou por regras de conduta criadas pelo homem. Também afirma que seria valioso ter uma moralidade neutra em relação a teoria do direito, assim como seria benéfico ter uma abordagem descritiva e conceitual da lei.

Hans Kelsen, por sua vez, gerou grande influência quando em 1934 publicou a obra Teoria Pura do Direito. A doutrina foi escrita na tentativa de purificação do direito, pois o mundo jurídico, na ocasião, era cercado por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. O intuito do doutrinador era livrar o direito de elementos metajurídicos e, assim, criar uma teoria pura deste.                    

O obra teve grande importância no ordenamento jurídico e foi fonte de parâmetro interpretativo por muito tempo. Por isso foi um dos marcos do positivismo jurídico e fez forte defesa da diferença entre os conceitos do direito e da moral.

Para Kelsen, a moral teria ligação com a sociologia jurídica, que estaria ligada ao ser, enquanto o Direito ligado ao dever ser. Moral e direito estariam em campos opostos, muito embora pudessem coexistir.

Com a evolução do direito e de novos questionamentos jurídicos, surge a necessidade de repensar o direito e sua conexão com princípios morais. Neste contexto histórico, questiona-se o positivismo jurídico e suas implicações, com a intenção de aprimoramento do ordenamento jurídico existente.

A tentativa de buscar pensamento evoluído e atraente pôde ser verificada na Alemanha, pós segunda guerra mundial, pois depois de um acontecimento assim, os estudiosos de um sistema precisam pesar suas atitudes diante de tais iniquidades, conforme afirma Hart:

Após uma revolução ou grandes sublevações, os tribunais de um sistema têm de ponderar sua atitude perante as iniquidades morais cometidas de forma legal por cidadãos comuns ou autoridades sob um regime anterior. Ainda que a punição desses indivíduos possa parecer socialmente desejável, procurá-la através de uma legislação explicitamente retroativa, tornando criminoso o que era permitido ou mesmo exigido pela lei do antigo regime, pode ser difícil, um ato mortalmente odioso ou, talvez, impossível. (HART, 2009:268)[2]

Neste espaço intelectual, pós segunda guerra mundial, são repensadas as implicações morais latentes no mundo jurídico e, principalmente em palavras como jus, recht, diritto ou droit, que estão presentes na teoria do direito.

Nessas circunstâncias, pode parecer natural explorar as implicações morais latentes no vocabulário jurídico e, especialmente, em palavras como jus, recht, diritto ou droit, que estão impregnadas da teoria do Direito Natural. (HART, 2009:269)[3]

Ainda, sem deixar de lado o contexto histórico da Alemanha pós terceiro reich, o qual atualmente ainda exerce grande influência no modo de pensar dos institutos de direito e da moral, torna-se importante citar obra de Hannah Arendt:

Até que, sem grande alarde, tudo isso desmoronou quase da noite para o dia, e então foi como se a moralidade de repente se revelasse no significado original da palavra, como um conjunto de costumes (mores), usos e maneiras que poderia ser trocado por outro conjunto sem maior dificuldade do que a enfrentada para mudar as maneiras à mesa de um indivíduo ou um povo. Que estranho e que assustador parecia de repente o fato de que os próprios termos que usamos para designar essas coisas – moralidade, com sua origem latina, e ética, com sua origem grega nunca tivessem significado nada além de usos e hábitos. (ARENDT, 2004:113/114)

Ainda em Hannah Arendt, no livro Responsabilidade e Julgamento, ao tratar sobre o colapso dos padrões morais nas décadas de 1930 e 1940 no terceiro reich:

Nós – ao menos os mais velhos dentre nós – testemunhamos o colapso total de todos os padrões morais tradicionais na vida pública e privada durante as décadas de 1930 e 1940, não só (como se supõe em geral na Alemanha de Hitler, mas também na Rússia de Stálin, onde neste momento a geração mais jovem está fazendo perguntas que possuem uma grande semelhança com as que estão atualmente em debate na Alemanha. (ARENDT, 2004:116)

No mesmo contexto fático e ao fazer uso de explicação de padrões jurídicos e padrões morais, Arendt afirma:

Quando nos confrontamos pela primeira vez com esse horror, ele parecia transcender, não apenas para mim, mas para muitos outros, todas as categorias morais, pois certamente desmoronava todos os padrões jurídicos. (ARENDT, 2004:118)

Sobre não ser possível afirmar que a conduta moral é algo natural, segue Hannah Arendt:

Agora deixem-me enumerar brevemente as questões gerais que essa situação factual, assim como a vejo, suscita. A primeira conclusão, creio eu, é que ninguém em sã consciência pode ainda afirmar que a conduta moral é algo natural – das Moralische versteht sich von selbst, uma pressuposição sob o domínio da qual a geração a que pertenço foi criada. Essa pressuposição incluía uma nítida distinção entre a legalidade e a moralidade, e embora existisse um consenso vago e inarticulado de que em geral a lei do país grafa o que a lei moral exige, não havia muita dúvida de que em caso de conflito a lei moral era a mais elevada e tinha de ser obedecida primeiro. Essa afirmação só podia fazer sentido se aceitássemos como naturais todos aqueles fenômenos que geralmente temos em mente quando falamos da consciência humana. Qualquer que seja a fonte do conhecimento moral – mandamentos divinos ou razão humana -, todo homem mentalmente são, supunha-se, carrega dentro de si mesmo uma voz que lhe diz o que é certo e o que é errado, e isso independentemente da lei do país e independentemente das vozes daqueles que pertencem à mesma comunidade. (ARENDT, 2004:124)

É pertinente citar Arendt neste contexto, pois a filósofa, que não é uma jurista, apresenta uma visão interessante dos institutos da moralidade e da legalidade, voltado para a área política e filosófica. Para ela, após o terceiro reich, questiona-se a existência de padrões morais e da própria legalidade.

Para Arendt, com o terceiro reich vislumbra-se o colapso da moralidade e o desmoronamento de padrões jurídicos. Com este contexto histórico, a doutrinadora inicia a discussão sobre a existência de padrões morais naturais à espécie humana, e se esses padrões são mesmo naturais.

A visão da doutrinadora sobre o tema em questão é de grande importância, embora não ser possível traçar paralelo ou possível influência de suas obras nas reflexões de Hart e Dworkin. Sua visão é de grande valia, pois tem conotações políticas e filosóficas sobre os institutos da moral e da legalidade, e não exclusivamente jurídica.

O tema de uma possível ou improvável moral natural à espécie humana continua recorrente com visões de Hart e Dowrkin sobre o assunto, assim como suas implicações no ordenamento jurídico e possivelmente político.


2. HART E O POSITIVISMO JURÍDICO BRANDO

Hart baseava sua doutrinária no pensamento positivista e admitia o uso da discricionariedade por parte do julgador. Para ele haveria sempre casos juridicamente não regulados, principalmente casos difíceis e com normas contraditórias incompatíveis.

Para Hart a discricionariedade seria vital, pois as normas possuem textura aberta. Esta característica seria arraigada à norma, tendo em vista a impossibilidade na estratégia escolhida para a transmissão de padrões de comportamento prever todas as situações possíveis, seja o precedente ou a legislação.

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Hart se auto intitula como adepto do positivismo brando, pois aceita explicitamente como critério de validade que a norma de reconhecimento incorpore obediência a princípios morais ou valores substantivos. Neste sentido:

Em primeiro lugar, ignora minha aceitação explícita de que a norma de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a obediência a princípios morais ou valores substantivos; assim, minha doutrina consiste no que tem sido chamado de “positivismo brando” (soft positivism), e não, como quer a versão de Dworkin, num positivismo “dos simples fatos”. (HART, 2009:323)[4]

O filósofo admite que tanto a norma de reconhecimento quanto as normas em específico, podem apresentar certa penumbra de incerteza. Necessário se faz, nestas suposições de composição de casos inéditos, uma solução racional. (HART, 1997:252)

Toda esta completude do direito tem origem no fato de que as normas e princípios apresentam textura aberta. Nesta hipótese, pode ser a lei ou o princípio parcialmente indeterminado. (HART, 1997:252/253)

Na visão de Hart, a textura aberta da norma tem ligação com a imprevisibilidade dos objetos e busca criar normas cuja aplicação nunca exigiria escolha adicional, seria um mundo adequado a uma jurisprudência mecânica.

Diante desta incompletude e textura aberta, torna-se necessário, em casos não regulamentados juridicamente, os tribunais exercerem a função legislativa limitada denominada discricionariedade, a saber:

Esses não são simples “casos difíceis”, casos polêmicos no sentido de que juristas sensatos e bem-informados podem discordar sobre qual a resposta juridicamente correta; o direito é, nesses casos, fundamentalmente incompleto: não oferece nenhuma resposta aos problemas em pauta. Estes não são regulamentados juridicamente; e, para chegarem a uma decisão em tais casos, os tribunais precisam exercer a função legislativa limitada que denomino “discricionariedade”. (HART, 2009:326)[5]

Seria típico da condição humana, na visão de Hart, tentar antecipadamente e sem ambiguidade, regulamentar alguma esfera do comportamento por meio de padrões. Estaria o ordenamento, porém, em desvantagens, pois haveria imprecisão de nosso objeto e relativa ignorância dos fatos, motivos pelo qual ser ele adepto do positivismo brando. (HART, 1997:127/128)

2.1 Normas primárias e normas secundárias

Embora não seja o foco da discussão os conceitos de normas e a aplicabilidade das normas primárias e secundárias são tratados com afinco pelos doutrinadores citados. Há grande discussão entre os conceitos propostos por Hart e discutidos por Dworkin, que inspiram atenção quanto à coerência e clareza com o tema.

Hart propõe que diante da complexidade de um sistema jurídico, é preciso criar distinção entre dois tipos de normas. A norma poderia, portanto, ser do tipo básica ou primária, que exige a prática ou a abstenção desta em certos atos de forma coercitiva. A norma parasitária ou secundária estipula o dever de fazer ou não fazer, assim como introduz novas normas com competência de extinguir e modificar as antigas ou, ainda, controlar sua aplicação.

As normas de um tipo, que pode ser considerado o tipo básico ou primário, exigem que os seres humanos pratiquem ou se abstenham de praticar certos atos, quer queiram, quer não. As normas do outro tipo são, num certo sentido, parasitárias ou secundárias em relação às primeiras, pois estipulam que os seres humanos podem, ao fazer ou dizer certas coisas, introduzir novas normas do tipo principal, extinguir ou modificar normas antigas ou determinar de várias formas sua incidência, ou ainda controlar sua aplicação. (HART, 2009:104)[6]

As normas primárias determinam deveres, dizem respeito a atos que envolvem movimentos ou mudanças físicas, enquanto as secundárias outorgam poderes, sejam estes públicos ou privados, e dispõem sobre a criação ou modificação de deveres ou obrigações.          

As normas de primeiro tipo impõem deveres; as do segundo tipo outorgam poderes, sejam estes públicos ou privados. As do primeiro tipo dizem respeito a atos que envolvem movimento físico ou mudanças físicas; as do segundo dispõem sobre operações que conduzem não apenas movimentos ou mudanças físicas, mas também à criação ou modificação de deveres ou obrigações. (HART, 2009:106)[7]

Hart trata este conceito apresentado de forma geral, pois compreende que o direito não pode ser encarado com uma uniformidade simples. Acredita, entretanto, que as características do direito seriam melhor elucidadas se esses dois tipos de normas e as relações entre elas fossem bem compreendidas. (HART, 1997:81)

As incertezas são próprias do regime jurídico, inclusive nas normas primárias, e a forma mais simples de solução destes problemas seria a norma de reconhecimento.

A forma mais simples de solução para a incerteza própria do regime de normas primárias é a introdução de algo que chamaremos “norma de reconhecimento”. Essa norma especifica as características que, se estiverem presentes numa determinada norma, serão consideradas como indicação conclusiva de que se trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social que este exerce. (HART, 2009:122)[8]

Dworkin caracteriza a distinção de regras feita por Hart como sendo de grande relevância e esclarece ainda que na visão deste, uma regra pode ser obrigatória porque é aceita ou porque é válida. Assim esclarece Dworkin: “Portanto, podemos registrar a distinção fundamental de Hart da seguinte maneira: uma regra pode ser obrigatória (a) porque é aceita ou (b) porque é válida.” (DWORKIN, 2010:33)[9]

Ao continuar seu trabalho, Dworkin, em Taking Rights Seriously, critica o positivismo e, inclusive Hart, dando ênfase na sua pesquisa sobre a dimensão que os princípios possuem, tema este que será tratado mais adiante. (DWORKIN, 1978:26)

2.2 A Norma de reconhecimento

O conceito norma de reconhecimento é inicialmente proposto por Hart dentro do âmbito das normas primárias e secundárias e, posteriormente, criticado por Dworkin.

Por norma de reconhecimento Hart entende como sendo as características as quais, presentes em determinada norma, compreendem como indicação conclusiva de que trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social. Neste sentido:

Essa norma especifica as características que, se estiverem presentes numa determinada norma, serão consideradas como indicação conclusiva de que se trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social que este exerce. (HART, 2009:122)[10]

Em sua doutrina positivista, a norma de reconhecimento consiste em estabelecer quais as normas que satisfazem certa condição social e que são válidas. Isso tem clara conotação empírica e ligação com os costumes, além de fundamentar a validade de toda regra dela derivada.

Em um estágio primitivo, a norma de reconhecimento pode ser uma lista, texto ou documento. Quando existe o reconhecimento da norma como fonte de autoridade, verifica-se de forma simples uma norma secundária, a qual será responsável pelas normas primárias de obrigação. (HART, 1997:95)

Pode também, em um sistema evoluído, a norma de reconhecimento ser complexa. Nesta hipótese, ao invés de identificar as normas por consultas a um texto, lista ou monumento público, o fazem por terem sido aprovadas por um órgão oficial, por sua longa prática ou sua relação com as decisões judiciais. (HART, 1997:95).

Em um sistema jurídico evoluído, as normas de reconhecimento são evidentemente mais complexas; em vez de identificarem as normas exclusivamente pela consulta a um texto ou lista, o fazem por meio de referência a algumas características gerais das normas primárias. Pode ser, por exemplo, o fato de terem sido aprovadas por um órgão específico, ou sua longa prática consuetudinária, ou ainda, por sua relação com as decisões judiciais. (HART, 2009:122)[11]

A norma de reconhecimento contém muitas características do direito e seria o embrião da ideia de validade jurídica, na visão de Hart. Ele ainda trata o tema com grande profundidade, porém este não é o objetivo no momento, sendo importante apenas a este estudo para compreensão do instituto. (HART, 1997:95-103)

Para Dworkin, Hart adota como critério de validade uma norma a ser designada por um órgão competente. Algumas leis poderiam ser criadas pelo poder legislativo, outras por juízes com precedentes instituídos para o futuro. Mas, na visão de Dworkin, este teste de pedigree não funciona em todos os casos.

Segundo Hart, a maioria das regras de direito são válidas porque alguma instituição competente as promulgou. Algumas foram criadas por um poder legislativo, na forma de leis outorgadas. Outras, foram criadas por juízes, que as formularam para decidir casos específicos e assim as instituíram como precedentes para o futuro. Mas esse teste de pedigree não funciona para os princípios dos casos Riggs e Hemingsen. (DWORKIN, 2010:64).[12]

Dworkin resume a norma de reconhecimento de Hart como um teste de pedigree, que seria responsável pelo critério de apurar a validade da norma. Para Dworkin, esta norma é falha pois não identifica princípios e suas implicações, assim como faz parte da doutrina positivista que tanto critica. (DWORKIN, 1978:17)

Para ele a doutrina de Hart não faz a devida distinção entre regras e princípios, assim como traz a figura da discricionariedade tanto discutida entre os filósofos. Quanto ao termo pedigree criado por Dworkin ao explicar conceitos de Hart, será esclarecido mais adiante, quando for apresentada a reflexão de Dworkin.

2.3.  Hart e o uso da discricionariedade em decisões judiciais

Como já mencionado, na visão de Hart, o juiz deve decidir com discricionariedade quando a norma jurídica não existir no caso concreto. Ele afirma que o ordenamento jurídico não contempla resposta a todos os casos e, portanto, seria necessário o uso da discricionariedade para a decisão, principalmente em casos difíceis.

A orientação incerta da norma em razão de sua textura aberta (open texture) habilita o julgador fazer jus da discricionariedade para julgar. Seria típico da condição humana regulamentar antecipadamente esferas do comportamento com desvantagens, pois haveria sempre imprecisão de objetivo e ignorância dos fatos.        

É típico da condição humana (e também, portanto, da legislação) que labutemos com duas desvantagens interligadas sempre que procuramos regulamentar, antecipadamente e sem ambiguidade, alguma esfera de comportamento por meio de um padrão geral que possa ser usado sem orientação oficial posterior em ocasiões específicas. A primeira desvantagem é nossa relativa ignorância dos fatos; a segunda é a relativa imprecisão de nosso objetivo. Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades. Poderíamos crias normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma. Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência “mecânica”. (HART, 2009:166)[13]

Diante da tentativa de regulamentar os fatos futuros e a imprecisão de nossos objetos, em consonância com a textura aberta da norma jurídica, seria inevitável o uso da discricionariedade do julgador.

Como já mencionado, existem normas primárias e secundárias. Estas seriam responsáveis para capacitar o indivíduo a solucionar, de forma autorizada, os conflitos na ocasião específica quando for violada uma norma primária, a saber:

O terceiro suplemento ao regime simples de normas primárias, que visa remediar a ineficiência de sua pressão social difusa, consiste em normas secundárias que capacitem alguns indivíduos a solucionar de forma autorizada o problema de saber se numa ocasião específica, foi violada uma norma primária. (HART, 2009:125)[14]

O responsável para dirimir conflitos de normas e usufruir do poder discricionário seria, portanto, a pessoa que está autorizada por poderes conferidos pela norma secundária. (HART, 1997:96)

O termo discricionariedade, conforme esclarecido por Dworkin, pode ser apontado em três acepções. A primeira seria a escolha pelo juiz entre critérios que um homem razoável poderia interpretar de diferentes maneiras. A segunda é a ausência de revisão da decisão tomada por uma autoridade superior, sendo estas discricionariedades em sentido fraco. (DWORKIN, 1978:31-32)

Há também a terceira acepção, que seria a discricionariedade em sentido forte, ponto este de divergência entre Hart e Dworkin. Esta última implica na ausência de vinculação legal a padrões previamente determinados. (DWORKIN, 1978:32)

Para Hart, na terceira acepção poderia o juiz usar o poder discricionário para proferir decisão na ausência de vinculação legal, enquanto Dworkin é contra este poder, alegando não ser o juiz membro do legislativo. (DWORKIN, 1978:35)

Hart procura traçar uma teoria descritiva da lei, em busca da segurança jurídica e pela eficiência da pressão social. Tenta também, criar critérios para dizer quais regras e quais princípios são leis, sendo irrelevante sua justificação. (HART, 1997:132).

O doutrinador Hart faz distinção entre lei e moral e afirma que os institutos devem ser tratados com suas peculiaridades. Não teria a regra moral o mesmo condão da regra positivista prevista no ordenamento jurídico. Neste sentido, a doutrina italiana

de Hart gira em torno da tese segundo a qual é possível, útil e muito desejável, ter bem distinto o direito da moral, fazendo, além disso, atenção em reconhecer e separar, especialmente no discurso jurídico, as descrições das avaliações. Este argumento, que remonta ao pensamento de Jeremy Bentham, é baseado, em suma, na crença que não há realmente nenhuma conexão entre direito e moral, e que a identificação da lei depende de certos fatos sociais.  (MATTIONI, 2010:7, tradução nossa)[15]

Sobre a discussão, Hart contesta a interpretação feita por Dworkin de que a discricionariedade seria criar direitos com liberdade sem freios. Para Hart, o juiz poderia aplicar a discricionariedade apenas nos casos de omissão da lei e sendo vedada reformas de larga escala ou novos códigos. A decisão deveria sempre ser pautada em padrões dogmáticos e na racionalidade. Neste sentido, para Hart:

É importante que os poderes de criação que eu atribuo aos juízes, para resolverem os casos parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam diferentes dos de um órgão legislativo: não só os poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos que  estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que os poderes do juiz são exercidos apenas para ele se libertar de casos concretos que urge resolver, ele não pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou novos códigos. Por isso, os seus poderes são  intersticiais,  e também estão sujeitos a muitos constrangimentos substantivos. Apesar disso, haverá pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer decisão que seja correta e, para decidir  os casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso de forma arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e valores. Mas se ele satisfizer estas condições, tem o direito de observar padrões e razões para a decisão, que não são ditadas pelo direito e podem diferir dos seguidos por outros juízes confrontados com casos difíceis semelhantes. (HART, apud CELLA:9)

Para Hart, o poder de discricionariedade do juiz estaria pautado na própria aplicação de princípios e doutrinas para fundamentar as decisões. Seria, inclusive, contraditório Dworkin alegar que o uso de princípios em decisões jurídicas não gera discricionariedade, pois estes são conhecimentos gerais e passíveis de diversas interpretações, sendo seu uso sujeito à discricionariedade.

Não apresenta o princípio um consenso de aplicabilidade, pois o caso concreto é suscetível de múltiplas explicações e posicionamentos. Para Hart, quando Dworkin admite o uso do princípio como fundamento de decisões, este afirma a própria discricionariedade diante das muitas possibilidades de interpretação no caso concreto.

Diante da possibilidade de princípios contraditórios, que evidencia a necessidade de discricionariedade, o juiz terá que escolher no sentido do que é melhor, e não em qualquer ordem de prioridades, segundo Hart. Não existe um critério seguro que possa medir o peso dos princípios em cada caso, sendo necessário, portanto, a discricionariedade.

Defensor de Hart é Yanal, pois este esclarece que a discricionariedade aceita pelo doutrinador seria em sentido moderado, dentro dos parâmetros pertinentes ao caso e não de qualquer maneira, neste sentido:

Tenho a certeza, nunca tive a intenção de que os juízes tenham um poder discricionário em sentido forte. É claro, nem que tenham eles apenas poder discricionário em sentido fraco. Na verdade, eu me pergunto se há algum poder discricionário em sentido fraco. Se eu disser a você, Arquive esses memorandos. Como? Use seu poder discricionário, estou apenas dizendo, ou eu indico que você faça isso? Acredito que Hart iria conceder um poder discricionário em sentido fraco aos juízes: a de que os juízes não podem decidir um caso difícil de qualquer maneira (por isso eles não têm poder discricionário em sentido forte), mas dentro dos parâmetros dos princípios e normas pertinentes ao caso, há uma livre escolha legal. (YANAL, apud IKAWA:99, tradução nossa)[16]

Embora reconheça a distinção entre normas e princípios, como já mencionado, Hart é adepto do positivismo jurídico brando. Nesta posição ele defende explicitamente como critério de validade que a norma de reconhecimento incorpore obediência a princípios morais ou valores substantivos. (HART, 1997:250). Hart admite ser um positivista legal inclusivo, pois aceita que a moral possa fazer parte das condições de validade jurídica, porém não seria esta a própria natureza do direito. A coerência de uma norma pode, mas não precisa ter coerência com a moral, neste sentido, o pensamento que resume bem o instituto:                                              

pode ser o caso, mas não precisa ser o caso, que a consistência de uma norma tenha alguns ou todos os requisitos da moralidade, como uma condição prévia para o status da norma como uma lei nesta ou naquela jurisdição.  (KRAMER, apud DUTRA:16, tradução nossa)[17]

O positivismo inclusivo aceita a ideia de uso dos princípios morais, entretanto não acolhe um sistema jurídico com determinação de padrões morais. Joseph Raz acrescenta ainda que não fazer distinção entre moral e norma poderá trazer consequências indesejáveis, pois há vários sistemas morais díspares ínsitos aos ordenamentos jurídicos, como o que defende a segregação racial.

2.4. Pós- escrito

Logo no início de seu postscript, Hart esclarece que não haveria conflitos significativos na obra dele e de Dworkin, pensamento este que acompanha alguns filósofos e foi, inclusive, fonte de questionamento no livro Taking Rights Seriously. (HART, 1997:240)

Quanto à crítica de Dworkin sobre a Norma de reconhecimento, Hart esclarece que não fundamentou sua teoria na ideia equivocada de que ela fosse parte do significado da palavra direito e que tal norma de reconhecimento devesse existir em todo ordenamento jurídico, ou se “os critérios para identificação dos fundamentos do direito não fossem fixados de maneira incontroversa, a palavra direito significaria coisas diferentes para pessoas diferentes.” (HART, 2009:318)

Assim, minha doutrina de que os sistemas jurídicos internos evoluídos contêm uma norma de reconhecimento que especifica os critérios para a identificação das leis que os tribunais têm de aplicar pode ser incorreta, mas em nenhum lugar baseio essa teoria na ideia equivocada de que seja parte do significado da palavra “direito” o fato de que tal norma de reconhecimento deve existir em todos os sistemas jurídicos, ou na ideia ainda mais equivocada de que, se os critérios para a identificação dos fundamentos do direito não fossem fixados de maneira incontroversa, a palavra “direito” significaria coisas diferentes para diferentes pessoas. (HART, 2009:318)[18]

O autor também elucida que sua doutrina positivista não trata apenas sobre os fatos históricos e não é um exemplo de positivismo dos simples fatos (plain-fact positivism). Esclarece que, embora sua ideia de norma de reconhecimento esteja ligada ao pedigree, conforme relatado por Dworkin, ele aceita expressamente que os critérios de validade jurídica possam incorporar explicitamente princípios de justiça e valores morais, integrando, assim, o conteúdo das restrições jurídicas constitucionais. (HART, 1997:247)

Ao assumir ser adepto do positivismo brando, Hart observa que as normas de reconhecimento, assim como as normas específicas, apresentam certa “penumbra” de incerteza. Nessa hipótese, poderia ocorrer caso inédito de necessidade de obediência aos critérios de princípios e valores morais. Neste sentido Hart diz:

Eu havia tornado isso claro, ou esperava tê-lo feito, em minha afirmação explícita, feita neste livro, de que a norma de reconhecimento, bem como as normas específicas do direito identificadas mediante referência a ela, podem apresentar uma “penumbra” de incerteza. (HART, 2009:325)[19]

Todo este contexto do positivismo brando lançado por Hart, deve-se ao fato da textura aberta (open texture) das normas e princípios. Como os casos inéditos não são regulados juridicamente, haveria a necessidade de discricionariedade (discretion). (HART, 1997:252)

Hart admite que alguns princípios são identificados como parte do direito vigente e outros não. Assim sendo, os princípios seriam extremamente subjetivos, fugazes e passíveis de mudanças com o tempo, sendo contraditório Dworkin afirmar que não haveria discricionariedade do julgador ao admitir o uso de princípios como padrão de comportamento. (HART, 1997:252)

Embora possa admitir a possibilidade dos enunciados do direito estarem ligados aos princípios e méritos morais, Hart não adota como verdade que esses enunciados só tenham sentido quando houver alguma fundamentação moral para sua existência.

Assim, sejam as leis moralmente boas ou más, justas ou injustas, os direitos e deveres exigem atenção como pontos focais no funcionamento do sistema jurídico, que tem importância suprema para os seres humanos e independe dos méritos morais das leis. Portanto, não é verdade que os enunciados de direitos e deveres jurídicos só possam ter sentido no mundo real se houver alguma fundamentação moral para que se afirme sua existência. (HART, 2009:347)[20]

Poderia a norma, portanto, ter conexão com princípios morais, mas isto não seria um requisito obrigatório para sua validade. Ainda que a norma possa ter conexão com a moral, a ausência de vinculação ou conexão não inviabilizaria sua aplicabilidade.

É importante neste momento da pesquisa fazer simples digressão, pois a discussão entre Hart e Dworkin aparenta ser entre princípios, normas de textura aberta, a moral e sua ligação com o direito, porém este é o pilar para a principal discórdia: o uso da discricionariedade nas decisões judiciais.

Para Dworkin não haveria possibilidade de discricionariedade, pois o direito não é incompleto ou indeterminado, podendo sempre, quando necessário, o julgador usufruir da moral e dos princípios para proferir decisões em casos difíceis. Para ele, usar a discricionariedade implicaria em criar novo direito aos fatos pretéritos.

Em seu postscript, Hart admite não ser viável um poder discricionário apto a criar novo direito de forma irrestrita, e nega, inclusive, que sua doutrina tenha traçado raciocínio neste sentido. Na sua visão a decisão proferida no caso difícil deverá sempre ser fundamentada e pautada em precedentes, princípios e conceitos morais, sendo abominável pensar no direito ilimitado e com arbitrariedade.

Seria um contrassenso, na visão de Hart, Dworkin fundamentar a não possibilidade de discricionariedade por parte do julgador, e de ser possível este usufruir de conceitos morais e de princípios para fundamentar suas decisões. Diante da subjetividade desses conceitos, haveria discricionariedade com a simples interpretação de princípios conflitantes.

Mas, embora esse procedimento possa certamente postergar, ele não elimina a oportunidade para a criação judicial do direito. Pois, em qualquer caso difícil, podem apresentar-se princípios distintos que autorizem analogias conflitantes, e o juiz é muitas vezes forçado a optar entre eles, confiando, como um legislador consciencioso, em sua percepção do que é melhor, e não em qualquer ordem de prioridades já estabelecidas que o direito lhe prescreva. (HART, 2009:355)[21]

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Sobre os autores
Bruno Fuga

Advogado e Professor. Doutor em Processo Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL (na linha de Processo Civil). Pós-Graduado em Processo Civil (IDCC). Pós-Graduado em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Membro da academia londrinense de letras (cadeira n.º 32). Conselheiro da OAB de Londrina. Membro ABDPro, IBDP e IDPA. E-mail: [email protected]

Elve Miguel Cenci

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – UPF/RS (1993), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS/RS (1999) e doutorado em filosofia pela universidade federal do rio de janeiro - UFRJ/RJ (2003). Atualmente é professor associado da Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FUGA, Bruno ; CENCI, Elve Miguel. Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4997, 7 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55984. Acesso em: 26 abr. 2024.

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