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Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart

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3.  DWORKIN E A TEORIA LIBERAL DO DIREITO

Dworkin nega de forma categórica o positivismo jurídico e no início de sua obra, Taking Rights Seriously, defende uma teoria liberal do direito. Para ele o positivismo não admite a ideia de que os direitos jurídicos possam preexistir a qualquer forma de legislação e as regras seriam aplicadas na maneira “tudo ou nada”. (DWORKIN, 1978:24)

Para ele, várias teorias fracassam ao não analisar as implicações de princípios morais. O problema da teoria do direito não estaria na análise de fatos jurídicos ou de estratégias, mas sim em problemas relativos aos princípios morais.

Assim, as diversas correntes da abordagem profissional da teoria do direito fracassaram pela mesma razão subjacente. Elas ignoram o fato crucial de que os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não estratégias ou fatos jurídicos. Enterraram esses problemas ao insistir na abordagem jurídica convencional. Mas, para ser bem-sucedida, a teoria do direito deve trazer à luz esses problemas e enfrentá-los como problemas de teoria moral. (DWORKIN, 2010:12)[22]

O positivismo, na visão de Dworkin, abandona o uso e o estudo de padrões que não são regras. Há para ele outros padrões válidos, como princípios e políticas. Princípios seriam exigências de justiça, de equidade e possuem conexão com a moralidade. (DWORKIN, 1978:22-23)

Para Dworkin, o pensamento positivista ao reduzir a interpretação normativa em normas e regras, desconsidera princípios e fica sujeito a discricionariedade do intérprete. Na sua visão, não haveria discricionariedade se os princípios que norteiam as normas jurídicas concretas fossem usados.

Ele procura traçar uma teoria normativa da lei, não apta apenas para a identificar, mas também para justificá-la moralmente. Procura afastar a possibilidade por parte do juiz de edição de leis novas com o uso da discricionariedade. (IKAWA, 2004:100)

A aplicabilidade das regras estaria ligada à subsunção e exige cumprimento pleno, sendo obrigado a fazer precisamente o que ordena. Os princípios podem ser cumpridos em diversos graus, caracterizados como mandatos de otimização e ordenam que se realize algo na maior medida possível.

A diferença entre regras e princípios não é simplesmente uma diferença de grau, mas sim de tipo qualitativo ou conceitual. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem somente ser cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fática e juridicamente. A forma característica de aplicação das regras é, por isso, a  subsunção. Os princípios, no entanto, são normas que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandatos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus. (ATIENZA, apud CELLA:04-05)

Com este fundamento, Dworkin tenta demonstrar que a moral não pode ser negligenciada e que o positivismo comete esse equívoco, porque faz a distinção e não cria a conexão necessária entre regras e princípios.

O direito não é indeterminado ou incompleto para Dworkin, pois além do direito explícito, haveria princípios implícitos que mantêm coerência com o direito e apresentam melhor justificação moral. Nesta linha de raciocínio, o direito nunca seria incompleto ou indeterminado e não poderia o juiz aplicá-lo com discricionariedade.

3.1. Teste de pedigree

Em sua obra Taking Rights Seriously, Dworkin segue o propósito de apresentar críticas ao positivismo jurídico e, em especial, ao professor Hart.  No início de sua obra, The Model of Rules I, ele faz um breve resumo dos conceitos do positivismo jurídico, segundo a visão de Hart, e traz o termo pedigree.

O teste de pedigree, na visão de Dworkin, seria usado pelos positivistas para diferenciar regras jurídicas válidas de regras jurídicas espúrias. Seriam válidas as regras, na maioria dos casos, quando uma instituição competente as promulga.

Saber se as regras são válidas ao analisar a forma em que foram criadas (seja pelo poder legislativo ou por decisões criadas por juízes como precedentes instituídos para o futuro) ocorre por meio do teste de pedigree imposto pelos positivistas. (DWORKIN, 1978:40)

Como já mencionado, este teste é falho. Não seria útil, no pensamento de Dworkin, para a solução de todos os casos, pois a origem e o estudo da validade não estariam na decisão do poder legislativo ou do tribunal, mas na compreensão do que é apropriado, desenvolvido pelos profissionais da área e pelo público em geral. (DWORKIN, 1978:40)

A origem desses princípios enquanto princípios jurídicos não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo. (DWORKIN, 2010:64)[23]

Seria inviável, ainda no pensamento de Dworkin, aglutinar todos os princípios em uma única regra e, mesmo se fizesse, não teria relação com a imagem de uma regra de reconhecimento. Seria estranho pensar em princípios como tudo ou nada, pois sua dimensão de peso é maior que as regras. (DWORKIN, 1978:41)

Os princípios, seguindo o mesmo raciocínio, não encontram apoio em atos oficiais de instituições jurídicas e não enquadram conexão com critérios especificados por alguma regra de reconhecimento. (DWORKIN, 1978:41)

Tendo em vista que o teste de pedigree não é válido para Dworkin, o positivismo não apresentaria solução para os casos difíceis, pois ele remete a uma teoria do poder discricionário que, para ele, não leva a lugar algum e nada diz. (DWORKIN, 1978:44-45).                                                                                                                                                                    

3.2. O juiz Hércules

Ciente da diferença entre regras e princípios, Dworkin propõe o modelo do juiz ideal, que seria Hércules. Este juiz seria filosófico e desenvolveria, nos casos apropriados, teorias sobre a intenção do legislativo e os princípios jurídicos pertinentes, na tentativa da melhor perspectiva de interpretação.

Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo, Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules (DWORKIN, 2010:165).[24]

Haveria três etapas para essa atitude interpretativa, sendo a primeira pré interpretativa, consistente na identificação; a segunda para apresentar justificação geral dos princípios, com interpretação e não invenção; a terceira, fase pós interpretativa ou reformadora, para se ajustar melhor à justificação geral estabelecida na segunda fase.

Hércules compreenderia que as decisões anteriores exerceriam uma força gravitacional sobre as decisões posteriores, mesmo quando fora de sua órbita particular. Suas decisões também não seriam pautadas em questões políticas, pois nestas hipóteses as decisões anteriores não teriam tal força. (DWORKIN, 1978:111-113)

Dworkin esclarece ainda que o nome Hércules foi escolhido porque ele deve construir um sistema abstrato e concreto de princípios que forneça coerência no common law e respeite as disposições constitucionais e legislativas. 

O leitor entenderá agora por que chamei nosso juiz de Hércules. Ele deve construir um esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e legislativas. (DWORKIN, 2010:182)[25]

Em seu postscript, Hart critica esta visão de Dworkin, pois seria evidente que somente um juiz mítico, como Hércules, poderia realizar a façanha de criar uma interpretação simultânea de todo o direito do país. (HART, 1997:263-264)

A existência de um juiz ideal com poderes sobre-humanos, por razões óbvias, parece perfeita e toda a discussão proposta seria em vão, pois o juiz ideal tudo saberia e resolveria, com bom senso, fundamentado em princípios e dentro da legalidade. Mas este é o mundo real que carece deste ser, sendo necessário, portanto, discussões para o aperfeiçoamento do direito e da evolução humana.

3.3. Dworkin e o uso da discricionariedade em decisões judiciais

Em contraposição ao pensando de Hart, Dworkin não admite o uso da discricionariedade. Este pensador não aceita a severa distinção do positivismo entre direito e moral, pois procura determinar uma ligação entre os institutos, “não podemos tratar a lei como separada, mas sim como um departamento da moralidade[26]”. Segundo ele, o princípio forneceria razões para a aplicação das regras. (DWORKIN, apud DUTRA, 2010:26, tradução nossa)

Conforme mencionado no subtítulo 2.3, a discricionariedade seria divida em três acepções, tendo Dworkin e Hart concordância de aplicabilidade na primeira e na segunda acepção (sentido fraco), entretanto, na terceira, manifestam discordância. Dworkin não admite o uso da discricionariedade em sentido forte. (DWORKIN, 1978:31-32)

O foco da discussão entre o positivismo jurídico e uma teoria liberal do direito, na visão de Dworkin, estaria no uso da discricionariedade judicial e suas implicações com uso de princípios morais.

Na visão de Dworkin, Hart está equivocado ao afirmar que, quando pode usufruir do poder discricionário, o juiz está somente vinculado a padrões que ele tipicamente emprega.

Hart, por exemplo, afirma que, quando o poder discricionário do juiz está em jogo, não podemos mais dizer que está vinculado a padrões que ele tipicamente emprega. (DWORKIN, 2010:55)[27]

A doutrina de Hart estaria, portanto, errada, pois o julgador deveria seguir padrões estabelecidos de princípios morais, e não somente padrões que ele tipicamente emprega.

O equívoco do positivismo, com o uso da discricionariedade, estaria na falta de obrigação dos juízes em seguir regras, exceto aquelas poucas obrigatórias e alguns princípios reconhecidos. (DWORKIN, 1978:36)

Seria uma contradição apontar regras e usufruir o poder discricionário no sistema positivista, pois essas regras poderiam a qualquer momento ser mudadas e não haveria direito nos termos do modelo positivista. Resultaria também em contrariar o princípio de tripartição dos poderes e a aplicação da lei com efeitos retroativos. (DWORKIN, 1978:37)    

Ao contrário da regra que é “tudo ou nada”, os princípios apresentam critérios de peso e uns são mais importantes que os outros. Não pode qualquer princípio ser invocado para mudança, caso contrário nenhuma regra estaria a salvo. É importante que existam princípios mais relevantes que outros, os quais, neste sentido, não dependam das preferências pessoais do juiz.

Porém, não é qualquer princípio que pode ser invocado para justificar a mudança; caso contrário, nenhuma regra estaria a salvo. É preciso que existam alguns princípios com importância e outros sem importância e é preciso que existam alguns princípios mais importantes que outros. Esse critério não pode depender das preferências pessoais do juiz, selecionadas em meio a um mar de padrões extrajurídicos respeitáveis, cada um deles podendo ser, em princípio, elegível. Se fosse assim, não poderíamos afirmar a obrigatoriedade de regra alguma. (DWORKIN, 2010:61)[28]

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Dworkin discorre também sobre argumentos de políticas e de princípios, conforme já narrado neste trabalho, porém não foi despendido pesquisa neste sentido, afinal, suas implicações demandariam nova inquirição. Importante destacar, porém, que alguns argumentos de política e de princípios poderiam justificar certas decisões, na visão de Dworkin. (DWORKIN, 1978:82)

O argumento político poderia, por exemplo, justificar o objetivo coletivo da comunidade como um todo, porém Dworkin defende que as decisões devem ser geradas por princípios e não por políticas.

Não obstante, defendo a tese de que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis como o da Spartan Steel, são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas. (DWORKIN, 2010:132)[29]

Sem entrar no mérito se os conceitos expostos por Dworkin são corretos, é importante reconhecer que a temática apresentada é de suma importância e necessária. O próprio Hart em seu Postscript reconhece que não dedicou a importância pertinente ao estudo dos princípios.

Diante da complexidade de um ordenamento jurídico evoluído, inegável às implicações de conceitos morais e de princípios no âmbito da sociedade, portanto, necessário se faz um estudo detalhado para dirimir dúvidas sobre suas implicações e aplicabilidades no cotidiano.

3.4. Resposta aos críticos

Da mesma forma como Hart que fez um postscript de sua obra, Dworkin também apresentou respostas às críticas realizadas por estudiosos sobre o seu livro. Dessa maneira, é necessário expor algumas questões apontadas por ele em Resposta aos críticos (A Reply to Cristics) da obra Taking Rights Seriously.

Após discorrer em seu A Reply to Cristics sobre a diferença entre argumentos de princípios e argumentos de políticas, Dworkin prossegue com o estudo e implicações do possível uso da discricionariedade.

Dworkin esclarece que o poder discricionário existe somente se a maioria dos juristas acreditar que qualquer decisão for igualmente correta, porque nenhuma das partes tem o direito de uma decisão na matéria, assim:

Devemos abrir mão de toda referência às crenças muito difundidas, de modo que a tese passe a afirmar que o poder discricionário existe se duas decisões forem (e não, simplesmente, se se acreditar que sejam) igualmente corretas porque nenhuma das partes tem direito a uma decisão na matéria. (DWORKIN, 2010:507)[30]

Embora reconheça essa possibilidade de poder discricionário, Dworkin é categórico ao afirmar que não existe poder discricionário em sentido forte. Para o autor, cada caso deve ser analisado com argumentos jurídicos ou filosóficos, para corroborar com a tese de inexistência de direito em caso difícil ou que os argumentos de direito da parte não sejam mais fortes que o da outra.  (DWORKIN, 1978:330)

Somente nessa hipótese e abrindo mão de crenças muito difundidas seria possível o poder discricionário em sentido forte, posição esta que Dworkin mantém em sua A Reply to Critics.

Ele também enfatiza que os princípios gerais do direito são mais nobres que os princípios dos textos jurídicos[31]. A explicação do doutrinador sobre esta afirmação é esclarecedora para compreender sua luta por aplicabilidade dos princípios nas decisões judiciais. (DWORKIN, 1978:338)

Para Dworkin, mesmo aspirando que as decisões judiciais sejam questões de princípios, isto não é completamente alcançado, pois com frequência verifica-se argumentos de princípios equivocados. Mas na visão do doutrinador, ganha-se mesmo assim com a tentativa.

No sistema atual, aspiramos que uma decisão judicial seja uma questão de princípio. Isto não pode ser completamente realizado, pois todos nós achamos que os juízes, às vezes, e talvez com frequência, apresentam argumentos de princípios equivocados. Mas saímos ganhando mesmo com a tentativa. (DWORKIN, 2010:518)[32]

Há nações em que os cidadãos estariam em melhor situação se não houvesse um livro público que determinasse todas as leis. Na ânsia de impor tirania e ávidos por poder, os governantes utilizam da boa reputação da lei. Seria benéfico em algumas situações, na visão de Dworkin, se não houvesse um livro público determinando normas de comportamento e fossem respeitados princípios básicos e inerentes aos cidadãos. (DWORKIN, 1978:338)

Seria esta a justificativa de Dworkin para a aplicabilidade de princípios morais, pois somente a lei não resolveria problemas de uma nação. Princípios morais deveriam, portanto, ser o pilar de sustentação do ordenamento jurídico. 

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Sobre os autores
Bruno Fuga

Advogado e Professor. Doutor em Processo Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL (na linha de Processo Civil). Pós-Graduado em Processo Civil (IDCC). Pós-Graduado em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Membro da academia londrinense de letras (cadeira n.º 32). Conselheiro da OAB de Londrina. Membro ABDPro, IBDP e IDPA. E-mail: [email protected]

Elve Miguel Cenci

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – UPF/RS (1993), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS/RS (1999) e doutorado em filosofia pela universidade federal do rio de janeiro - UFRJ/RJ (2003). Atualmente é professor associado da Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FUGA, Bruno ; CENCI, Elve Miguel. Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4997, 7 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55984. Acesso em: 25 abr. 2024.

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