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Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart

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4. PARALELO ENTRE AS DOUTRINAS E DISCORDÂNCIAS

Ao longo do estudo observa-se a nítida discussão entre Hart e Dworkin sobre o uso da discricionariedade nas decisões judiciais. A questão é latente e indiscutível, porém alguns pontos são tratados com concordância entre os doutrinadores e, se comparados, conclui-se que as doutrinas não apresentam grandes contrastes.

Ambos concordam que não se pode usar a discricionariedade de forma ilimitada e irrestrita, que o julgador não tem poderes supremos, devendo sempre seguir padrões pertinentes da sociedade, usufruindo de princípios morais.

A qualquer momento os juízes, mesmo os de um supremo tribunal, fazem parte de um sistema cujas normas são, em seu cerne, suficientemente precisas para oferecer padrões de decisão judicial correta. Esses padrões são encarados pelos tribunais como algo que eles não têm a liberdade de ignorar no exercício da autoridade de que dispõem para tomar decisões incontestáveis dentro do sistema. (HART, 2009:188)[33]

Ainda nesse raciocínio, Hart confirma e segue a linha de pensamento do Dworkin, ao admitir que o uso da discricionariedade na forma irrestrita e ilimitada deve ser rejeitado.

Não se pode aplicar às declarações dos próprios tribunais que envolvem uma norma jurídica. Tais pronunciamentos, conforme argumentavam os “realistas” mais radicais, podem ser um disfarce verbal para o exercício de uma discricionariedade irrestrita; mas podem, por outro lado, constituir a formulação de normas genuinamente consideradas pelos tribunais, do ponto de vista interno, como um padrão para decisões corretas. (HART, 2009:190)[34]

Embora em primeira leitura do livro The Concept of Law de Hart, algumas questões sobre o uso da discricionariedade fiquem na penumbra devido à ausência de um capítulo que possa esclarecer o uso de princípios morais. Todavia, em seu Postscript, a dúvida é cabalmente esclarecida.

Hart não é adepto do uso irrestrito da discricionariedade, devendo sempre o julgador se submeter aos conceitos de princípios morais, na ausência de expressa determinação legal para resolução do conflito legal.

Ambos admitem que um ordenamento jurídico somente com princípios morais, com uma fé de que os direitos individuais e o bem estar vão se fundir, é uma utopia. Necessário se faz um mínimo de legislação vigente, como tentativa de determinar padrões a serem seguidos. Neste sentindo, segue uma citação de Dworkin:

Uma coisa é apelar ao princípio moral com fé tola de que a ética e a economia são movidas por uma mão invisível, de modo que os direitos individuais e o bem-estar geral irão fundir-se, e que o direito baseado em princípios levará a nação a uma utopia sem atritos onde todos estarão em melhores condições que antes. (DWORKIN, 2010:230)[35]

Embora Dworkin tenha reconhecido de forma sutil em seu texto, os princípios são contraditórios e dão margem à interpretação. Ele não confirma um poder discricionário do julgador, porém em consonância com o pensamento de Hart, admite a subjetividade de aplicabilidade dos princípios em decisões judiciais, neste sentido:

Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo uma outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. (DWORKIN, 2010:42)[36]

O programa de cotas nas universidades públicas no Brasil, por exemplo, pode ser defendido com o princípio da igualdade, no sentido de que a lei deve proteger os desiguais frente aos iguais. Pode também o princípio da igualdade ser defendido para justificar que é um tratamento desigual atribuir favorecimento ao cotista, por ferir o princípio da igualdade.

Sem entrar no mérito da questão, é inquestionável o fato dos princípios serem abertos com grande margem de interpretações. Dworkin reconhece que nesta subjetividade sempre haveria um princípio certo a ser aplicado ao caso, não havendo, assim, discricionariedade.

Ambos concordam que regras e princípios morais são diferentes, cada conceito apresenta suas peculiaridades. Embora cada doutrinador faça distinções entre os institutos, um e outro mantêm consenso de que regras e princípios não têm a mesma definição.

Discordam os doutrinadores sobre o critério criado por Hart de textura aberta das normas. Apesar de ser este um ponto de discordância, Hart admite que em questões fundamentais não há textura aberta da norma.

Dworkin alega que o poder discricionário poderia criar nova decisão a cada caso, este fato implicaria em insegurança jurídica. Mesmo que Hart seja adepto do uso da discricionariedade, assim como Dworkin, ele admite que não é possível os padrões variáveis implicarem em uma nova decisão a cada caso. Na doutrina de Hart lê-se:

Entretanto, a vida do direito consiste em grande parte em orientar tanto as autoridades quanto os indivíduos particulares através de normas precisas, que, diversamente das aplicações de padrão variáveis, não lhes exijam uma nova decisão a cada caso. (HART, 2009:175)[37]

Dworkin tenta criar a necessidade de justificativa de princípios morais para as normas, porém este não é o entendimento de Hart. Na visão deste doutrinador, poderia a norma ter conexão com princípios morais, mas não há exigência neste sentido.


CONCLUSÃO

Dworkin não admite o uso da discricionariedade, pois fundamenta que sempre haveriam regras morais e princípios pertinentes aos casos para as resoluções dos conflitos.

Com a possibilidade de utilização de princípios morais e a necessidade de interpretação, seja no direito costumeiro (common law) ou no positivado, Dworkin utiliza a figura do juiz Hércules, que seria uma metáfora para buscar quais os corretos critérios de interpretação e utilização de princípios para a resolução dos casos difíceis.

De certa forma, a doutrina de Dworkin parece não compreender que, ao se atribuir critérios morais e princípios para fundamentar decisões e ser fonte de parâmetro para a esfera jurídica, concede-se maior discricionariedade ao julgador.

Embora não reconheça Dworkin, de forma expressa, a possibilidade de discricionariedade do juiz nas decisões judiciais, em sua doutrina ele entende que os princípios são subjetivos e com margem para escolha do julgador. Deveria, nessas hipóteses, ser escolhido o princípio correto em um caso difícil (hard cases).

Reconhece também que somente princípios, sem nenhuma legislação escrita, não forneceriam segurança jurídica necessária para uma nação. Mas, de forma brilhante, Dworkin esclarece que não pode ser a lei fonte de sustentação para tiranos cessarem direitos preexistentes dos cidadãos, e que, mesmo com subjetividade e possibilidade de interpretações equivocadas, deveria sim o princípio fazer parte do ordenamento jurídico e, dessa forma, garantir direitos básicos para uma sociedade.

Os princípios morais, mesmo que abertos e com margens para equívocos de interpretação, na visão de Dworkin, são necessários para a sociedade, devendo a norma e as decisões serem justificadas pelos princípios morais. Assim, seria evitado que tiranos, valendo-se da boa fama da lei, retirem direitos preexistentes dos cidadãos.

Hart, em oposição ao pensamento de Dworkin, admite o uso da discricionariedade por crer ser improvável um ordenamento jurídico que tenha previsão de todas as situações passíveis de sanção sem conflitos legais. Ele admite a distinção entre direito e moral e acredita ser viável o uso do poder discricionário, pautado na moral e nos princípios, para o julgamento dos conflitos.

Hart reconhece de forma menos relutante a possibilidade de discricionariedade em decisões judiciais. O restante do conteúdo da doutrina deste professor não difere muito da doutrina de Dworkin, pois ambos refutam a ideia de poderes ilimitados aos julgadores, com discricionariedade sem limites e sem padrões.

Jamais haveria um ordenamento jurídico complexo e justo com poderes irrestritos e ilimitados conferidos aos julgadores. São requisitos fundamentais os princípios morais, segurança jurídica e previsibilidade das decisões.

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O tema tem grande implicação prática, pois os poderes conferidos aos julgadores retratam a forma de governo de um Estado, os aspectos de liberdades dos cidadãos, o espaço público e, inclusive, faz parte da estrutura e forma de divisão dos poderes e seus limites de atuação (legislativo, judiciário e executivo).

A preocupação dos doutrinadores é salutar para o estudo do tema. Reflete também a cautela de qualquer ordenamento jurídico complexo que visa estabelecer conceitos de justiça e equidade no seio da sociedade.

Poder irrestrito aos julgadores, sem freios e com poder discricionário ilimitado, de forma pacífica entre os doutrinadores aqui citados, não é benéfico para o Estado e seus cidadãos. Limites previamente impostos aos julgadores, com critérios objetivos de como utilizar fundamentações de decisões judiciais com princípios, são de grande valia.

Os limites dos poderes de interpretação das normas jurídicas e a maneira correta de se proceder é tema recorrente no estudo do direito, sendo que as pesquisas apresentadas por Dworkin e Hart contribuíram muito. 

Importante também deduzir que a preocupação no estudo da discricionariedade é assaz válida, porém necessário se faz ir mais além. A busca de conceitos de direito e justiça, não deve se limitar apenas na visão do poder judiciário ou no mundo jurídico.

A organização de um Estado é mais do que o complexo poder judiciário, o qual representa somente um dos três poderes. Não adianta descobrir a melhor forma de estrutura e controle do judiciário, com belíssimos conceitos de como proceder com o provável e inevitável poder discricionário, se os demais poderes do Estado não estiverem fortes e em harmonia.

O poder judiciário é apenas uma peça no tabuleiro de xadrez, que precisa de toda estrutura, em consonância entre o poder legislativo e executivo. Um poder judiciário forte aliado a um poder legislativo fraco e descompassado, por exemplo, não refletirá justiça. Nesta hipótese, o julgador poderá justificar o uso de demasiado poder discricionário, para suprir o déficit do poder legislativo.

O poder legislativo fraco, pode ser usado como justificativa para adotar poder discricionário e, um poder executivo que trabalha a descontento, pode ser usado como desculpa para problemas no legislativo. Para discutir e aprimorar técnicas de justiça, como visa o estudo do poder discricionário, necessário se faz antes produzir conhecimento e aprimoramentos no sistema político como um todo, em uma estrutura política forte e robusta para os três poderes e para o Estado.

Não parece ser crível e proveitoso gerar uma teoria do direito que almeja a apenas discutir aspectos jurídicos, pois este poder, por exemplo, é extremamente conectado ao poder legislativo. O poder discricionário, por sua vez, está também diretamente ligado à forma de atuação do legislativo.

Como resultado final, é possível concluir que de imensa valia é a obra de Hart e também as posteriores críticas e discussões de Dworkin sobre o tema. Os doutrinadores contribuiram para o aprimoramento e estudo do direito e da filosofia jurídica. Necessário é, também, para alcançar maior amplitude na intenção de aprimorar técnicas de julgamento e melhor espaço para justiça e equidade, ter em foco o estudo sobre os três poderes, a harmonia entre eles, formas de governo, de política e estruturas do Estado.

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Sobre os autores
Bruno Fuga

Advogado e Professor. Doutor em Processo Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL (na linha de Processo Civil). Pós-Graduado em Processo Civil (IDCC). Pós-Graduado em Filosofia Política e Jurídica (UEL). Membro da academia londrinense de letras (cadeira n.º 32). Conselheiro da OAB de Londrina. Membro ABDPro, IBDP e IDPA. E-mail: [email protected]

Elve Miguel Cenci

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – UPF/RS (1993), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS/RS (1999) e doutorado em filosofia pela universidade federal do rio de janeiro - UFRJ/RJ (2003). Atualmente é professor associado da Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FUGA, Bruno ; CENCI, Elve Miguel. Discricionariedade do juiz: discussão entre Dworkin e Hart. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4997, 7 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55984. Acesso em: 25 abr. 2024.

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