O detetive particular e a investigação criminal: algumas questões pontuais

16/04/2017 às 15:55
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Com o advento da Lei nº 13.432/17, a figura do detetive particular foi, finalmente, regulamentada. Saiba como ficou a garantia do sigilo das investigações e a possibilidade de aproveitamento das provas por ele obtidas, no curso de uma investigação criminal, após o novel instituto.

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

1 – INTRODUÇÃO

            A Lei 13.432/17 regulamenta a atividade do Detetive Particular na investigação criminal. Estabelece limites a essa atuação, que configura atividade típica de Estado. Para atuar, o Detetive deve contar com a autorização expressa de seu contratante e com o aceite do Delegado de Polícia ou outra autoridade que presida investigações, a exemplo do Promotor de Justiça, nos casos de Procedimento Investigatório Criminal (PIC). Também, sua atuação não conta com todas as prerrogativas das Polícias Judiciárias (Civil e Federal) ou do Ministério Público, de forma que nem mesmo lhe é dado participar diretamente de diligências policiais (vide artigos 5º. e Parágrafo Único e 10, IV, ambos da Lei 13.432/17).

            Neste trabalho, serão abordados alguns pontos que podem certamente levantar dúvidas a respeito da amplitude e dos limites da atividade do Detetive Particular na investigação criminal.

            O primeiro ponto a ser desenvolvido diz respeito ao sigilo natural do Inquérito Policial ou qualquer forma de investigação criminal e como isso pode ser preservado com a presença do Detetive Profissional habilitado nos autos.

            No seguimento, tratar-se-á de caso em que o detetive tenha atuado antes do vigor da Lei 13.432/17 e, portanto, sem a autorização do Delegado de Polícia ou outro presidente da investigação. Seriam provas, informações ou indícios assim coletados passíveis de serem aproveitados? Ou somente depois da Lei 13.432/17 é que as descobertas feitas por Detetives Particulares podem ser acatadas numa investigação criminal?

            Uma terceira questão diz respeito à atuação clandestina do Detetive Particular após o advento da Lei 13.432/17. Uma atuação, portanto, ilegal, à margem da legislação de regência, e a coleta de provas, evidências e informações. Como isso ficaria diante do ordenamento jurídico. Haveria ou não possibilidade de aproveitamento dessas provas, evidências ou informações?

            Ao final, as ideias desenvolvidas no decorrer do trabalho serão expostas sumariamente e apresentar-se-ão as conclusões às quais foi possível alcançar.

           

2 – O SIGILO DAS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS E O DETETIVE PARTICULAR

            O Inquérito Policial tem, como uma de suas principais características, o sigilo, legislado no artigo 20 do Código de Processo penal, “in verbis”:

“A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.  

            Em uma primeira vista, pode parecer que a introdução do Detetive Particular na investigação criminal poderia macular esse necessário sigilo legalmente estabelecido, o qual certamente se impõe ao Inquérito Policial ou a qualquer outra forma de investigação criminal.

            Primeiro, porém, é necessária uma breve digressão para deixar claro se o artigo 20, CPP foi recepcionado pela ordem constitucional de 1988, considerando o prestígio dado ao “Princípio da Publicidade” no “Devido Processo Legal”. Isso porque se a resposta for negativa, ou seja, o artigo 20, CPP não foi recepcionado, então a questão posta se desfaz no ar.

            Ocorre que a resposta é positiva. O artigo 20, CPP foi recepcionado pela Constituição de 1988. Apenas uma interpretação e aplicação exacerbada do dispositivo sob comento pode ser inconstitucional. Pretender, por exemplo, vedar totalmente o acesso às pessoas interessadas (vítimas, investigados, testemunhas, defensores etc.) não se coaduna com a conformação de uma investigação criminal típica de um Estado Democrático de Direito erigido pela Carta Magna. Isso vale tanto para o Inquérito Policial como para os PICs do Ministério Público ou quaisquer outras formas oficiais de investigação criminal (artigo 4º., Parágrafo Único, CPP).

            Neste sentido, Marcão:

“O sigilo das investigações não é inconstitucional, até porque o art. 5º., XXXIII da CF, ao assegurar o direito de informação em relação a fatos de interesse particular ou coletivo, ressalva a possibilidade de sigilo nas hipóteses em que se revelar imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado”. [1]

            Assumindo, portanto, como ponto pacífico que o sigilo é uma característica inerente à investigação criminal, a abertura para a participação do Detetive Particular não viria a prejudicar esse aspecto tão importante? Realmente muito importante, porque o sigilo visa preservar a eficácia da atividade de investigação, a qual não pode ser alardeada, sob pena de destruição e ocultação de provas e indícios por pessoas interessadas, fuga de suspeitos etc. e também para a preservação da honra e da imagem, seja de investigados, seja de vítimas e testemunhas envolvidas.

            Tal como ocorre em praticamente todas as circunstâncias, há necessidade de buscar uma mediania virtuosa de que nos fala Aristóteles:

“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio – termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente no que concerne às ações e  às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio – termo. Portanto, acerca do que ela é, isto é, qual é a definição de sua essência, a virtude é uma mediania, porém com referência ao sumo bem e ao mais justo, ela é um extremo”. [2]

            Tratando inicialmente a questão sob um prisma genérico, é necessário ter em mente que o sigilo da investigação criminal não é absoluto e que se divide em interno e externo.

“Há , entretanto,  que fazer distinção entre: a) sigilo externo e b) sigilo interno. O sigilo externo diz respeito à restrição à publicidade dos atos de investigação com relação às pessoas do povo. Já o sigilo interno constitui impossibilidade de o investigado tomar ciência das diligências realizadas e acompanhar os atos investigatórios a serem realizados”. [3]

            O sigilo externo é regra na investigação criminal, pois que, como já visto, não se pode alardear disquisições sob pena de prejudicar sua eficácia, além do fato da necessidade da preservação da honra e da imagem das pessoas envolvidas, sejam elas suspeitas ou vítimas. Já o sigilo interno é absolutamente excepcional e somente aplicável àqueles casos em que a realização eficaz da diligência possa ser prejudicada pelo conhecimento até mesmo dos envolvidos no procedimento. São casos exemplares, a busca e apreensão, o cumprimento de mandado de prisão provisória, a interceptação telefônica etc.

Não seria racional permitir a ciência do sujeito passivo de tais medidas, de seu advogado ou de qualquer pessoa interessada, pois que então a realização da diligência respectiva seria uma mera formalidade estéril. As buscas resultariam negativas, as interceptações vazias de conteúdo de interesse probatório e o suspeito poderia facilmente se evadir. Note-se, porém, que mesmo nos casos excepcionais de sigilo interno, este não é estabelecido “ad perpetuam”, ou seja, deve ser levantado no primeiro momento em que não mais seja imprescindível, passando a ser exercido o direito de informação e a vigorar a publicidade interna como regra geral.

    Assim sendo, a inclusão da atuação do Detetive Particular na investigação criminal por força do artigo 5º., Parágrafo Único, da Lei 13.432/17 não vem a chocar-se com o sigilo necessário às investigações, previsto no artigo 20, CPP. Caberá ao Delegado de Polícia ou outra autoridade que presida uma investigação criminal oficial, delimitar o grau de acesso informativo que o Detetive Particular terá com relação aos autos, sem prejudicar o sigilo necessário e nem coartar o trabalho do profissional. Essa distinção entre o sigilo interno e o sigilo externo é bastante relevante.

Admitido o Detetive Profissional num Inquérito Policial, por exemplo, passa ele, juntamente com seu cliente (seja este vítima de um crime ali apurado, seja investigado) a integrar o rol de pessoas com interesse direto na investigação, as quais não são afetadas pelo sigilo externo. Quanto aos casos excepcionais de sigilo interno, estará o Detetive, tal como até mesmo o defensor, o investigado ou qualquer pessoa, alijado do conhecimento e contato com as diligências e documentos, até o momento em que se possa levantar o sigilo sem prejudicar a elucidação dos fatos.

            Afinal, o sigilo imposto pelo artigo 20, CPP não é absoluto, conforme ensina  Mossin:

“O regramento processual penal não é rígido, uma vez que somente é imposto o sigilo quando houver necessidade para a elucidação do fato ou quando o exigir o interesse da sociedade.

Não se verificando essas situações, nada obsta que se dê publicidade às investigações, embora não seja recomendável em face das suas finalidades no campo da persecução criminal”.  [4]

            Com o devido ajuste, é plenamente aplicável ao Detetive Profissional a Súmula Vinculante 14 do STF:

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício de defesa”.

            Na mesma medida, e com os devidos ajustes, também aplicável a mais ampla redação advinda do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), a demarcar as prerrogativas do advogado na investigação criminal com relação ao seu acesso, nos termos do artigo 7º., XIV, com a nova redação dada pela Lei 13.245/16.

            É claro que, quando se diz que a aplicação da Súmula e do artigo do Estatuto da OAB deve se dar com “os devidos ajustes”, é preciso ter consciência de que o Detetive Particular não se pode equiparar ao defensor na persecução criminal em termos de prerrogativas. Trata-se de uma baliza aproximativa tão somente. Diversamente do defensor, o Detetive Particular não conta com sustento constitucional para o exercício de sua atividade como “indispensável à administração da justiça” (inteligência do artigo 133, CF).

Ele pode, no máximo, enquadrar-se ainda numa situação precária na legislação pátria, a uma condição de participante da chamada “Investigação Defensiva ou Privada”. [5]   Ponto marcante dessa diferença entre o Detetive e o Defensor é que a atuação do primeiro está condicionada à discricionariedade do Delegado de Polícia no Inquérito Policial, de acordo com o artigo 5º., Parágrafo Único, da Lei 13.432/17 e, inclusive, nos termos do artigo 14, CPP. Já o advogado não pode ser alijado da persecução criminal por quem quer que seja.

            Ainda maior cautela se deve ter com os casos em que o segredo de justiça é determinado legalmente, como, por exemplo, no caso dos crimes contra a dignidade sexual, nos termos do artigo 234 – B, CP.

            Malgrado no artigo 234, CP, se trate somente dos “processos” e não da fase de investigação pré – processual, há que conjugar o dispositivo com o artigo 20, CPP e ter a cautela devida. Este é o entendimento da doutrina:

            “Embora se refira a lei somente ao processo, o sigilo deve alcançar o inquérito policial, incumbindo à autoridade e ao juiz a adoção nos autos das providências necessárias à preservação da intimidade da vítima”. [6]

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            Para uma melhor orientação sobre o tema, é preciso atentar para o fato de que o sigilo estabelecido legalmente em casos como o do artigo 234 – B, CP e similares é aquele “externo”, não atingindo as pessoas que têm participação direta no processo, tais como vítimas, investigados, defensores etc., mas somente o público em geral não afeto ao caso.

            Neste sentido:

“Evidentemente, o segredo de justiça não pode ser oposto ao defensor do acusado ou do indiciado, a quem se deve facultar o acesso a todos os elementos de prova que estejam documentados nos autos do processo ou do inquérito policial”. [7]

            E mais:

“Como é cediço, o segredo de justiça não alcança o direito dos advogados e estagiários de advocacia, com procuração para a causa, de ter acesso irrestrito aos autos, no exercício de suas prerrogativas profissionais e como garantia de efetiva ampla defesa”. [8]

            Em se tratando de sigilo externo, mesmo nos casos em que a lei o imponha, não será vedada, ao menos de maneira geral, a permissão de atuação do Detetive Particular, a qual ficará na dependência da prudência do Delegado de Polícia ou outra autoridade que presida a investigação, bem como também de seu próprio contratante (artigo 5º. e Parágrafo Único, da Lei 13.432/17). Como visto, o segredo externo não impede que pessoas interessadas legitimamente na investigação a ela tenham acesso. Como o sigilo especial decorre da lei e também a autorização de participação do Detetive Profissional é estabelecida legalmente, impondo como requisitos as autorizações do contratante e do Delegado de Polícia ou outra autoridade incumbida da presidência da investigação, não se faz necessária ordem judicial para tanto. A lei exige somente a permissão do contratante e da autoridade policial ou investigadora.

Perceba-se que o Juiz, nos casos de sigilo legalmente estabelecido, não tem discricionariedade para impô-lo ou afastá-lo, assim como não o tem o Delegado de Polícia ou o Promotor ou quem quer que seja. A questão não reside neste ponto, mas no fato de que esse sigilo, embora inafastável, mesmo pelo magistrado, é apenas externo, permitindo, normalmente a participação do Detetive ou de outros interessados diretos no caso, desde que devidamente cumpridas as normas legais. E essas normas são as do artigo 5º. e seu Parágrafo Único da Lei 13.432/17, onde não existe previsão de exigência de autorização judicial.

            Contudo, há casos em que o sigilo não decorre diretamente da lei, mas é decretado casuisticamente pelo Juiz de acordo com normas de Processo Penal e ditames constitucionais que excepcionam, em certos casos, o Princípio da Publicidade. A normatização dessas situações encontra-se no artigo 93, IX, CF e artigos 201, § 6º. e 792, § 1º., CPP. É claro que, por extensão, o magistrado pode decretar sigilo na fase pré - processual com fulcro nessas mesmas normativas e ainda as combinando com o artigo 20, CPP. Também é óbvio que esse sigilo somente pode ser externo, tal qual ocorre com o que advém de normas legais diretamente.

            Portanto, a princípio, mesmo em se tratando de sigilo judicialmente estabelecido para a fase de investigação, com a devida cautela, nada obsta a atuação do Detetive Particular, desde que cumprindo as normas legais e regulamentares respectivas.

            Há, porém, uma diferença que a legislação não solve e precisa ser estudada. Como visto, na determinação legal, o magistrado não tem discricionariedade, é obrigado a cumprir a determinação de sigilo externo. Já na “lei processual”, lhe é facultada uma discricionariedade regrada pela necessidade de obtemperar a publicidade em casos em que o interesse público e a intimidade e a vida privada das pessoas possa ser objeto de prejuízo. [9] Então, o sigilo externo determinado nestes casos, não decorre diretamente da lei, mas do dispositivo criado pelo magistrado, de sua decisão que determina o sigilo.

            Dessa forma, não parece possível resolver a situação da autorização para que o Detetive Particular atue com base tão somente nas normas legais, mais especificamente, com a aplicação isolada do artigo 5º. e seu Parágrafo Único da Lei 13.432/17. Nessa situação, o Juiz é protagonista da determinação de sigilo e não parece que alguém possa ser inserido na liberdade de acesso pela publicidade interna sem a sua consulta e concordância.  

            A habilitação do Detetive Particular, nesses casos, deverá passar por ao menos duas fases. Num primeiro momento, deverá obter a permissão de seu contratante e do Delegado de Polícia. Havendo negativa em qualquer caso, estará impedido de atuar. Não há se falar em pedido direto ao Juiz ou “recurso” a este contra a decisão discricionária da Autoridade Policial. Isso porque, mesmo havendo o sigilo partido do magistrado, não há alteração do fato de que a este último não cabe atuar na fase investigatória, sob pena de macular sua mais preciosa característica, que é a imparcialidade, ferindo de morte o sistema acusatório. Calamandrei já chamava a atenção para isso:

“Historicamente, a qualidade proeminente que parece inseparável da própria ideia de juiz, desde sua primeira aparição nas árvores da civilização, é a imparcialidade”. [10]  

Mas, em havendo autorização por parte do contratante e do Delegado de Polícia ou outra autoridade presidente das investigações, não parece que isso baste para que o Detetive Particular, nestes casos específicos de sigilo judicial, passe a atuar livremente. É recomendável, que, sendo o sigilo de origem judicial, o Delegado de Polícia ou outra autoridade, submeta sua decisão positiva à apreciação judicial para homologação. Embora a lei não exija isso, parece que as circunstâncias e a característica especial dessa espécie de sigilo impõem esse procedimento.

Note-se que nessas situações não haverá mácula à imparcialidade judicial porque o magistrado não estará impondo a participação de alguém na investigação a contragosto do investigador (Delegado de Polícia ou outra autoridade). Quando o Delegado, por exemplo, nega a participação do Detetive, se o magistrado a impusesse, estaria se imiscuindo na produção de diligências investigatórias que não existiriam. Mas, quando o Delegado concede a permissão, não a obsta e a submete ao crivo do Judiciário, isso se dá tão somente porque o caso é sigiloso de forma especial e por determinação judicial, cabendo ao magistrado a palavra final quanto a quem pode ter acesso aos autos em termos de participação direta excepcional, não com vistas à produção de informações, investigação, mas com respeito à preservação do sigilo nos termos por ele determinados.

O mesmo não é necessário, por exemplo, com relação aos envolvidos na investigação, ao defensor etc., porque isso é corriqueiro. Acontece que a participação do Detetive Particular é excepcional e então deve ser submetida ao crivo judicial se o sigilo parte do magistrado. Em havendo negativa do magistrado, não há se falar em recurso ou ação de impugnação (Mandado de Segurança), pois que este certamente age tal qual o Delegado, por exemplo, nos termos do Parágrafo Único do artigo 5º., da Lei 13.432/17, ou seja, discricionariamente.

Em geral, havendo autorização do Delegado de Polícia e do contratante, não haverá necessidade de oitiva do Ministério Público para a atuação do Detetive Particular, seja em casos normais, seja em casos de sigilo legal ou judicial. Isso porque a lei não prevê essa participação do ‘parquet”. Falando especificamente da determinação de sigilo judicial, também não há menção nos dispositivos correlatos de oitiva prévia do Ministério Público. Entretanto, não haverá óbice a que o magistrado submeta a situação à manifestação prévia ministerial, se o quiser, na qualidade de “custos legis”.  Apenas no caso do artigo 792, § 1º., CPP, é que se fala da determinação pelo Juiz de ofício ou a requerimento “da parte ou do Ministério Público”.

Entende-se que se o sigilo partiu de requerimento de defensor ou do Ministério Público, não decorrendo de atuação “ex officio” do magistrado, então será necessária sim a oitiva prévia, do requerente, seja ele o defensor, seja o Ministério Público. Isso porque há que respeitar aquele que ensejou a determinação excepcional do sigilo judicial no que tange à sua amplitude. No caso de requerimento do defensor, também a oitiva prévia do Ministério Público é dispensável, embora possa ocorrer sem qualquer prejuízo tão somente na função de “custos legis”. Em qualquer caso, obviamente, o Juiz não ficará adstrito à manifestação de quem quer que seja, proferindo sua decisão com a independência que lhe é peculiar.

            Finalmente, quanto ao tema do sigilo das investigações, é claro que há o risco de falta de discrição por parte do Detetive Particular, ferindo esse interesse público. Mas esse perigo existe com relação também aos advogados, às autoridades em geral, aos policiais etc. O Detetive, como qualquer pessoa, funcionário público ou não, estará sujeito às sanções penais, administrativas e civis em caso de infração ao dever de sigilo. Aliás, esse dever de sigilo é explícito na Lei 13.432/17 em seu artigo 11, especialmente incisos I, II, III e V, que tratam dos deveres do profissional.

A lesão à honra e à imagem é passível de indenização nos explícitos termos do artigo 5º.,X, CF e dos artigos 186 c/c 927, do Código Civil. Administrativamente, a condição de atuação do Detetive na investigação é a autorização do contratante e do Delegado de Polícia ou outra autoridade que presida os autos. Obviamente, se atuar em prejuízo do sigilo necessário, deverá ser retirado das investigações, conforme permite do artigo 5º., Parágrafo Único, da Lei 13.432/17. Afinal, o Detetive pode ser admitido ou rejeitado “a qualquer tempo”. Isso sem falar no repúdio por parte de seu próprio contratante, acaso o prejuízo causado seja a ele (inteligência do artigo 5º., “caput”, da Lei 13.432/17). Finalmente, na seara penal, poderá incidir em violação de segredo profissional, nos termos do artigo 154, CP, violação do segredo das interceptações telefônicas, de acordo com o artigo 10 da Lei 9.296/96, entre outros crimes.

3 – AS INVESTIGAÇÕES PRIVADAS ANTERIORES À LEI 13.432/17 E SEU APROVEITAMENTO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

            É bem verdade que mesmo com o advento da Lei 13.432/17, permanece um tanto obscura a regulamentação da atividade dos Detetives Particulares, especialmente no campo da investigação criminal.

            Obedecidos os limites e requisitos legais, nos termos do artigo 5º., Parágrafo Único e artigo 10, IV da Lei 13.432/17, não parece mais haver dúvidas quanto à possibilidade de atuação desse profissional em casos criminais. O que ainda é um tanto quanto indeterminado é o alcance de sua atuação. De qualquer modo, as provas que apresente legalmente são admissíveis.

            Pode surgir a dúvida quanto a provas, informações, relatórios, documentos, fotos, indícios, objetos, apresentados à Autoridade Policial, por exemplo, por Detetive Particular em investigação que envolva evento criminal antes da edição da Lei 13.432/17.

            Entende-se que não há óbice à admissão dessas provas e outros elementos, ainda que colhidos antes da Lei 13.432/17. Isso pode se dar com sustento no artigo 14, CPP que sempre permitiu o requerimento de diligências à Autoridade Policial.

            Além disso, a legislação e regulamentos que já tratavam da atividade de investigação particular, desde antanho previam o fornecimento, inclusive obrigatório, de informações por parte do Detetive Profissional à Autoridade Policial sempre que requisitado a tanto (vide artigo 5º., da Lei 3.099/57 e  artigo 5º. e 7º. , do Decreto Federal 50.532/16).

            Assim sendo, desde que não haja ilicitude na obtenção da prova, mesmo aquelas colhidas antes do advento da Lei 13.432/17 por investigação particular, poderão ser aproveitadas normalmente numa investigação criminal e, posteriormente, num processo penal. A questão se torna clara e evidente se é comparada à situação em que a própria vítima de um crime sai à cata de informes e os repassa à Autoridade Policial. Nada obsta essa investigação privada, desde que não se cometa abusos e não se viole disposições constitucionais, nem se usurpe função exclusiva de Polícia Judiciária ou órgãos oficiais de Estado.

4 – A ATUAÇÃO CLANDESTINA DO DETETIVE PARTICULAR NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL APÓS O ADVENTO DA LEI 13.432/17

            Antes da Lei 13.432/17, os Detetives Particulares já atuavam no Brasil, com base na Lei 3.099/57 e no Decreto Federal 50.532/61, os quais, aliás, não foram revogados pela novel legislação e lhe servem de complemento naquilo que não haja conflito.

            É bem verdade que não havia autorização expressa para atuação do Detetive Profissional na investigação criminal, mas, como já visto, seja por força do artigo 14, CPP, seja tendo por sustento a lei e o regulamento supra mencionados, os quais inclusive previam o fornecimento de informações confidenciais de interesse criminal às Autoridades Policiais sempre que requisitadas, era de se concluir que não havia óbice a uma atuação que não violasse a reserva de atividade estatal exclusiva na persecução criminal. É claro que nem antes, nem mesmo agora, tem o Detetive Particular poder para notificar pessoas, conduzir coercitivamente, postular ou representar por buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilo etc.

            Mas, se alguém vier a entender que somente agora é que o Detetive Particular ganhou um empoderamento na investigação criminal por força do artigo 5º., Parágrafo Único da Lei 13.432/17, incide em ledo engano. Muito ao revés, o dispositivo sobredito vem estabelecer balizas que limitam a atuação do Detetive Particular na investigação criminal. Balizas estas que inexistiam anteriormente.

            Sem tais limitações, e diante do artigo 14, CPP e da Lei 3.099/57 e Decreto Federal 50.532/61, estava implícita uma autorização de atuação, dentro daquilo que pode um particular fazer, em termos de apuração criminal, sem usurpar função pública exclusiva. Mesmo porque se aventava a possibilidade de que tais profissionais fornecessem tudo quanto apurassem sempre que requisitados pela Autoridade Policial.

            Lembremos o ensinamento de Hely Lopes Meirelles quanto ao Princípio Administrativo da Legalidade nas esferas pública e privada:

“A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.

Na administração pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. [11]

            Pois bem, se antes era possível recepcionar informes colhidos sobre investigação criminal por Detetive Particular sem autorização prévia do Delegado de Polícia ou de outra autoridade pública encarregada da presidência da investigação criminal, isso claramente não é mais admissível por força do Parágrafo Único do artigo 5º., da Lei 13.432/17. Agora a autorização do Delegado de Polícia, por exemplo, no bojo do Inquérito Policial, é imprescindível como elemento de legitimação da prova colhida por Detetive Particular. Realizada de outro modo, constitui violação frontal da lei de regência.

Sob esse aspecto, trata-se de “prova ilegítima”, porquanto viole norma de caráter processual. No entanto, tendo em vista o dispositivo limitador em discussão, a prova colhida pelo Detetive Profissional, com omissão de requerimento de atuação ao Delegado de Polícia ou em contradição à sua rejeição, constitui também “prova ilícita”, pois é produzida com violação de direito material penal (Usurpação de Função Pública Qualificada – artigo 328, Parágrafo Único, CP, eis que o Detetive Particular cobra honorários) e constitucional (por infração ao disposto no artigo 144, §§ 1º e 4º., CF). Sem a autorização do Delegado ou contra sua rejeição por este no Inquérito Policial, por exemplo, o Detetive atua de forma ilegítima e ilícita. Se por um lado ele tem autorização legal para atuar, dentro das regras estabelecidas, fora destas, obviamente, incide em atuação ilegal. [12]

            Dessa forma, as provas por ele obtidas são inadmissíveis no processo, assim como aquelas que delas derivarem diretamente, nos termos do artigo 5º., LVI, CF c/c artigo 157 e seu § 1º., CPP.

            Antes do advento da Lei 13.432/17 e o do estabelecimento de requisitos para atuação do Detetive Particular na investigação criminal, sua atuação era regida pela aplicação do Princípio da Legalidade Administrativa Particular e fundada na lei e decreto que a permitiam. Agora, sua atuação está vinculada a requisitos estritos e toda ação que não cumpra tais requisitos é ilegal (ilícita e ilegítima).

5 – CONCLUSÃO

            O presente trabalho teve por objeto o estudo de alguns questionamentos impostos pelo advento da Lei 13.432/17, que regula a atividade do Detetive Particular, com especial enfoque na seara investigatória criminal.

            A primeira questão levantada foi com respeito ao sigilo imposto pelo artigo 20, CPP ao Inquérito Policial e extensível a toda e qualquer modalidade de investigação criminal. A atuação do Detetive Particular, desde que dentro dos parâmetros legais e preservando seu dever profissional de sigilo, em nada se choca com a natureza sigilosa da investigação criminal, não se vislumbrando qualquer óbice referente a este aspecto à sua admissão no correr de um Inquérito Policial ou outra modalidade de investigação criminal.

            Em seguida foi analisada a recepção ou não das investigações levadas a termo por Detetives Particulares na seara criminal, antes do advento da Lei 13.432/17. A conclusão foi pela admissibilidade dessas investigações, mesmo porque as normas que regiam a matéria não as impediam e até mesmo determinavam o fornecimento de informes às Autoridades Policiais.

            Finalmente, foi estudada a situação atual em que um Detetive Profissional atue sem consultar o Delegado de Polícia ou outra autoridade que presida investigação criminal oficial, ou mesmo que aja contra a rejeição explícita dessas autoridades. A conclusão foi a de que, se antes da publicação da Lei 13.432/17 havia um vácuo legal que permitia ao particular agir, desde que não resvalando a reserva de atividade exclusiva de Estado.

Hoje, além dessa exigência, há requisitos legais bem claros para tornar a investigação particular válida. Atuando fora desses requisitos, incide o profissional em violação à lei adjetiva (processual) e substantiva ou material (penal e constitucional), de modo que tudo quanto colete será ilegal (ilegítimo e ilícito), inadmissível no processo por força de norma constitucional e processual penal. E não só isso: por aplicação da Teoria da Ilicitude Derivada (“Fruits of the poisonous tree doctrine”), também as provas que advenham das colhidas ilegalmente pelo Detetive serão inquinadas mancha da ilegalidade e da consequente inadmissibilidade.

6 - REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. ed. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas Ilícitas. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2003.

BONFIM, Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A reforma do Código de Processo Penal e a polêmica da inadmissibilidade das provas ilegítimas. Disponível em www.jus.com.br , acesso em 16.04.2017.

CALAMANDREI, Piero. Processo e Democracia. Trad. Mauro Fonseca Andrade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR ROBERTO, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MACHADO, André Augusto Mendes. A Investigação Criminal Defensiva.  Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo: 2009.

MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª. ed. São Paulo: RT, 1991.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005.


[1] MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 123.

[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. ed. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 49.

[3] BONFIM, Edilson Mougenot. Código de Processo Penal Anotado. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 75.

[4] MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005, p. 55.

[5] Para um aprofundamento do estado da arte: MACHADO, André Augusto Mendes. A Investigação Criminal Defensiva.  Dissertação de Mestrado. USP. São Paulo: 2009, “passim”.

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 483. Lembremos que a proteção não se refere somente à “vítima”, “mas também” aos “acusados (que gozam de presunção de inocência), da curiosidade mórbida que tais tipos de delito despertam em mentes malformadas e da chamada imprensa marrom”. Cf. DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR ROBERTO, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 730.

[7] Op. Cit., p. 483.

[8] DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR ROBERTO, DELMANTO, Fábio M. de Almeida, Op. Cit., p. 730.

[9] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N., Op. Cit., p. 483.

[10] CALAMANDREI, Piero. Processo e Democracia. Trad. Mauro Fonseca Andrade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 38.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª. ed. São Paulo: RT, 1991, p. 78.

[12] Pietro Nuvolone, jurista italiano, apresenta o conceito dogmático de “provas vedadas”, as quais se subdividem em “ilícitas” e “ilegítimas”. A noção de “vedação” já traz consigo a conclusão de sua inadmissibilidade no processo sejam elas ilícitas ou ilegítimas. Distingue-se “perfeitamente, as provas ilícitas das provas ilegítimas. A prova ilegítima é aquela cuja colheita estaria ferindo normas de direito processual. (...). Diversamente, por prova ilícita, ou ilicitamente obtida, é de se entender a prova colhida com infração a normas ou princípios de direito material”. Cf. AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas Ilícitas. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 42 – 43.  Atualmente, essa posição que afasta a admissibilidade tanto das provas ilícitas como das ilegítimas, é reforçada pela parte final do artigo 157, CPP, que fala de violação a normas “legais” como obstáculo à admissão da prova, ou seja, provas “ilegais”, que é o gênero de que são espécies as “ilícitas” e as “ilegítimas”. Para maior aprofundamento, vide nosso artigo sobre o tema específico: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A reforma do Código de Processo Penal e a polêmica da inadmissibilidade das provas ilegítimas. Disponível em www.jus.com.br , acesso em 16.04.2017. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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