No Brasil, o Estado foi construído antes da criação do povo brasileiro. Este processo de construção foi extremamente violento como afirmou Darcy Ribeiro http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-povo-brasileiro-resenha-do-livro-de-darcy-ribeiro. Nos primeiros séculos de nossa existência, a “inclusão social” de índios e negros ocorreu mediante sua sujeição voluntária ou forçada aos colonos. Mas eles (os “outros”) foram sempre mantidos do lado de fora do Estado colonial. Os “outros” não faziam e não podiam fazer parte do organismo político que crescia dentro do território palmo a palmo conquistado com a garantia da exclusão política e econômica dos escravos e dos índios que se aliaram ao invasor branco.
Nos primórdios do Brasil, a estrutura social privilegiava a hierarquia. No topo dela estavam os aristocratas que comandavam tudo em nome do rei. Como o rei estava em Portugal, alguns aristocratas se comportavam como se fossem os verdadeiros senhores da terra, ditando suas leis, ignorando as ordens régias e impondo violentamente sua vontade com ajuda de tropas de jagunços. Negros, índios, mestiços e brancos pobres que se insurgiram contra as injustiças praticadas pelos “donos da colônia” eram brutalmente reprimidos.
A expansão do Brasil dentro do território foi ocorrendo mediante este duplo movimento de inclusão pela sujeição voluntária que garantia apenas exclusão política e a repressão brutal de todos aqueles que se colocavam no caminho dos aristocratas. As malocas de índios considerados hostis e os aldeamentos de negros fugidos foram esmagados. E o território foi sendo assim paulatinamente incorporado ao patrimônio privado dos “donos da colônia” e de seus esbirros.
Günter Gebauer e Chistoph Wulf afirmam que:
“A mimese social não é nenhum processo interior; ao contrário, ela se expressa no agir. Ela produz seguranças, certezas, e aquele tomar por verdadeiro que constroem um fundamento do agir, um tipo de fio condutor com o qual o agente se movimenta para a frente, que lhe permite dar um passo atrás do outro e lhe dá um conhecimento limitado, mas tranqüilo, de como deve continuar a agir. Não há nenhum fundamento racional para esse agir, muito menos um fundamento último.” (Mimese na Cultura, Günter Gebauer e Chistoph Wulf, Annablume Editora, São Paulo, 2004, p. 125)
Nós estamos fadados a mimeticamente repetir os mesmos padrões de convivência que foram construídos durante os primórdios do Brasil. Os comportamentos dos aristocratas que se consideravam “donos da colônia” podem ser vistos nos descendentes deles que acreditam ter o direito natural (em alguns casos divino) de impor ao povo brasileiro um programa de governo que não foi aprovado nas eleições de 2014. A soberania popular como fundamento do poder (art. 1o., da CF/88) tem pouco valor no imaginário deles, pois o único poder que eles reconhecem é aquele que eles mesmos exercem. As aspirações dos “outros” não tem qualquer valor político, os interesses econômicos deles não merecem ser contemplados pelo Estado. Não por acaso eles endossaram tranquilamente a decisão de Michel Temer de combater redes sociais https://www.youtube.com/watch?v=FPMaCO1OCo8.
Estabelecida esta nova diretriz, que se ajusta perfeitamente à diretriz original do Estado colonial ligando o golpe de 2016 ao nosso passado, a Polícia Federal passou a se expandir dentro do território virtual. Transformada num imenso DOPS a PF passou a cumprir seu papel http://www.viomundo.com.br/denuncias/por-causa-de-um-tweet-pf-gasta-rios-de-dinheiro-publico-e-faz-funcao-do-velho-dops.html.
Os policiais agem agora como se fossem aqueles jagunços que expandiram o Brasil dentro do território indígena. Nós, os “outros”, sofremos novamente as conseqüencias da inclusão pela sujeição voluntária que garante apenas exclusão política. Os nossos direitos políticos foram suspensos ou revogados. Aqueles que não aplaudirem o usurpador serão tratados como suspeitos, os mais exaltados receberão a designação maldita: terroristas.
As autoridades da PF e da Justiça Federal agem mimeticamente. Policiais e juízes seguem tranquilamente os passos que foram dados pelos seus antecessores. A ação deles encontra seu fundamento nas certezas e seguranças produzidas pela memória institucional, não pelo que está escrito na Constituição Federal de 1988. A mimese oblitera a necessidade de reflexão racional. O terrorismo praticado pelos comandantes da PM nas ruas é encarado com muita naturalidade http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-terrorismo-policial-e-a-omissao-do-mpf. Mas um Twitter desafiador se torna extremamente perigoso.
A ganância pelos territórios indígenas (e o terror de ser vítima de uma flecha perdida disparada por um índio hostil) fornece a matriz para a colonização do espaço virtual. Temer quer impor sua aceitação pelo temor, pois tem horror de ser abatido pelas flechas disparadas pelos internautas . Os desafetos dele (o usurpador se considera uma pessoa importante e, portanto, um membro da aristocracia) são apenas índios cibernéticos em malocas virtuais que precisam ser destruídas pela Polícia Federal.
Ao controle da opinião e à repressão da dissidência se seguirá a censura prévia, a criminalização do pensamento, privacidade virtualmente vigiada, medidas de ciberinterdição impostas por policiais e juízes e, no limite, os recalcitrantes terão seus dedos arrancados das mãos porque não pararam de digitar e de postar coisas que não deveriam ter sido escritas e compartilhadas no Facebook e no Twitter. A exceção se torna a regra. Na internet nenhuma garantia política e humana prescrita na CF/88 e nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil serão respeitados.
Os padrões de relacionamento entre o Estado e os cidadãos durante a Ditadura Militar (que mimetizaram a matrix colonial de 1964 a 1988) invadem, assim, o ciberespaço. Mimese social elevada à perfeição: estamos vendo nascer uma ditadura computadorizada que em pouco tempo irá abarrotar as prisões virtuais e reais.
Umberto Eco disse que “Não há nada que se possa fazer: da história não se escapa.” (A definição da arte, Editora Record, Rio de Janeiro, 2016, 148). Eu nasci 1964 filho de um homem que foi perseguido pela Ditadura e me transformei num exemplo emblemático do novo Estado totalitário virtual. As duas pontas da minha vida estão indissociavelmente ligadas pela História do Brasil. Dela eu certamente não consegui e não conseguirei escapar. Todavia eu não estou sozinho. Muitos outros terão que ser virtualmente triturados pela PF e pela Justiça Federal e em algum momento a resistência a opressão cibernética desejada por Michel Temer se tornará irresistível.