A imputação limita a sentença, mas apenas orienta o interrogatório do acusado

15/05/2017 às 11:10
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Entenda, com base na letra fria da lei, a pertinência das perguntas formuladas pelo Juiz Sérgio Moro ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, réu no caso do "Triplex de Guarujá", desdobramento de operações da "Lava-Jato".

A razão da existência do processo penal se relaciona diretamente com a necessidade de proteção do devido processo legal, do respeito às fundamentais garantais processuais e da potencialização de uma justiça reta e motivada durante a apreciação dos fatos imputados na peça acusatória.

Não se trata, atualmente, de discutir se o magistrado deve ou não perquirir a verdade real. A discussão filosófica sobre o termo e os danos, consoante doutrina moderna, a serem suportados pelo acusado em um processo que tem como único fim a pesquisa acerca dos estritos acontecimentos no plano fático inviabilizam, por ora, que a verdade real faça parte do jogo processual.

De outro lado, respeitadas as garantias fundamentais do réu, o processo penal não deve ser, necessariamente, complexo. Há, sim, algum objetivo a ser alcançado pela “relação jurídica que se concretiza no procedimento”[1]. Ora, assim não fosse, estar-se-ia diante de um espetáculo midiático.

A fixação de premissas, apoiadas na lei clara, torna-se imprescindível justamente porque casos emblemáticos e palpitantes, recentemente, muito provavelmente energizados pelo excesso de informações em redes sociais, enfim, transfiguraram a noção básica de processo penal, notadamente quanto à atividade judicial durante a apreciação da prova ou no decorrer de quaisquer atos processuais anteriores à sentença.

Tem-se, de tal modo, que o modelo jurídico processual brasileiro, à medida do possível, deve evoluir para se tornar pura e essencialmente acusatório, pelo qual o “acusado é um sujeito de direito, a quem se assegura a ampla defesa, com o direito de produzir provas aptas a demonstrar a versão de defensiva de um lado, e sendo-lhe assegurado, de outro, o direito ao silêncio, eliminando qualquer dever de colaborar com a descoberta da verdade”.

Nesse ponto, é forçoso ressaltar que “modernamente, o processo acusatório admite que o juiz seja dotado de poderes instrutórios, ou seja, é compatível com um juiz dotado de poderes para determinar ex officio a produção de provas”[2], ainda que de maneira subsidiária. Vale dizer, o magistrado não está autorizado a agir como um pesquisador de fontes de provas, contudo, sua imparcialidade não é afetada quando traz ao processo elementos informativos já contidos em uma fonte de prova.

São conhecidas as críticas ao artigo 156, do Código de Processo Penal, que faculta ao juiz, em seu inciso II, a determinação, de ofício, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Há quem defenda o dispositivo e há quem recuse sua aplicação. Certo é que fora incluído no Código de Processo Penal brasileiro pela Lei nº 11.690, de 2008.

De qualquer maneira, distanciando-se da discussão quanto à iniciativa probatória do juiz, às partes é garantida a regra de que o objeto da imputação, constante na exordial acusatória, deve possuir identidade com o conteúdo da sentença. Isto é, o acusado se defenderá dos fatos narrados pela acusação e a sentença o julgará, absolvendo-o ou condenando-o, tão somente pelos fatos descritos na inicial.

Veja, a importância de aludido preceito reside na segurança que as partes, especialmente o acusado, terão durante o desenvolvimento normal do processo. O réu, desde o princípio, sabe do que é acusado e consegue, por isso, avolumar estratégias para que sua defesa reste ampliada. E, note-se, isso é justo.

Havendo necessidade de atribuir ao(s) fato(s) narrado(s) pela acusação uma definição jurídica diversa ou cabendo nova definição do próprio fato, deve o Juiz aplicar os artigos 383 e 384, do Código de Processo Penal, respectivamente, mas, em qualquer caso, estará respeitada a regra da correlação entre a acusação e a sentença.

Desobscurecido, em algum nível, o cenário em que se insere o processo penal brasileiro atual, convém se debruçar sobre o papel do Magistrado no interrogatório judicial do acusado, primordialmente com base no que estabelece a lei.

O interrogatório judicial se insere no Título VII (Da Prova), no Capítulo III (Do Interrogatório do Acusado), do Código de Processo Penal. E, esqueça: não se trata de meio de prova. A doutrina já acertou: o interrogatório é meio de defesa. Se há, ainda, alguma dúvida acerca da natureza jurídica do interrogatório, ficará postergada. Aceitemos, por ora, o que a doutrina moderna e majoritária firmou. Trata-se da oportunidade que o réu tem de esclarecer, direta e pessoalmente a quem o julgará, sobre os fatos que lhe são imputados na acusação inicial.

Assim, durante o interrogatório, o réu terá, estritamente, três opções: negar (alegar sua inocência); confessar (confirmar sua culpa); ou silenciar. Nas três hipóteses, as condutas do acusado poderão ser fracionadas, claro.

No aspecto da presunção de inocência ou da não-culpabilidade, tão discutida nos últimos tempos em razão de alterações de entendimentos pelo Supremo Tribunal Federal, no caso de o acusado negar a prática delitiva narrada na denúncia, o interrogatório em nada alterará sua situação, pois ainda será considerado inocente – até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, confirmada por acórdão de 2º grau, ao menos.

Na hipótese de o réu optar pela confissão da perpetração de tudo quanto narrado pela acusação, o interrogatório do acusado também não importará valor ao Magistrado. Não é o ato judicial que importa, mas sim a confissão, tratada em capítulo distinto do interrogatório pelo Código de Processo Penal (Capítulo IV).

Isto é, no caso da confissão, o seu valor se “aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”, sendo “divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto” (artigos 197 e 200, do Código de Processo Penal).

Ainda em outros termos: a confissão jamais será fundamento único para a condenação, sendo plenamente possível e viável a absolvição, ainda que o réu tenha confessado judicialmente durante seu interrogatório.

Por último, tendo o réu optado pelo silêncio, o Código de Processo Penal entabula expressamente regras fundamentais sobre o tema: a) o silêncio do acusado não significará confissão, jamais; b) o silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Não obstante haja discussão acerca do significado e amplitude do direito ao silêncio – como é a dúvida sobre se isso importaria em direito à mentira ou não (entendo que não[3]) –, o ordenamento jurídico consagra e a doutrina ratifica: no que tange aos fatos imputados ao réu na acusação, este, quando perguntado pelo Juiz, pode permanecer em silêncio (e isto, em hipótese alguma, poderá prejudicá-lo).

Verdadeiramente adentrando no exame das condutas do Juiz durante o interrogatório, o passo primeiro é a leitura fria da lei, atualmente revelada como despicienda pela maioria dos profissionais do Direito. A prática jurídica e os casos conhecidos, repercutidos pela mídia, como o é o caso da “Lava-Jato”, disseminam invenções, criatividades, devaneios, fantasias e concepções totalmente desvinculadas da realidade da lei.

Não se pode indicar a causa primária de referida constatação, mas, honestamente, a prática jurídica tem criado lendas e normas regulamentadoras do processo penal, em detrimento da lei, esta última alcançável facilmente por qualquer pessoa habilitada a acessar a internet. Para além disso, que já é o suficiente para causar intervenções desnecessárias e desonestas em audiências de instrução, por exemplo, as fábulas normativas são dissipadas em noticiários, redes sociais, contaminando, ao final, a principal destinatária da veracidade e vigência de uma lei: a sociedade.

Além do cenário principiológico, dos ditames constitucionais, das garantias fundamentais do indivíduo, brevemente elencados acima, o interrogatório judicial do acusado é regido, lembremos, pelo Código de Processo Penal, em 12 (doze) artigos.

Do diploma processual, extrai-se, principalmente, o seguinte: a) O acusado será interrogado na presença de um defensor, sempre; b) o réu será informado pelo Juiz sobre a acusação que lhe é imputada e sobre o seu direito ao silêncio; c) o interrogatório terá duas partes: sobre a pessoa do réu e sobre os fatos.

No que agora importa, na segunda parte do interrogatório, o acusado será perguntado pelo juiz sobre: a) ser verdadeira a acusação; b) não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela; c) onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta; d) as provas já apuradas; e) se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; f) se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido; g) todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; h) se tem algo mais a alegar em sua defesa.

Frise-se, a lógica do sistema processual penal brasileiro é servir de instrumento de garantia do réu, mas também de mecanismo eficiente e justo para a aplicação do direito penal material, não se lastreando por uma verdade real, mas pela verdade das provas encartadas aos autos (daí a expressão “o que não está nos autos não está no mundo”).

A dificuldade, no entanto, é outra: quais provas podem e devem ser trazidas aos autos, para que então “existam”? A percepção de mundo, no ângulo cronológico, permite ao homem a distinção básica entre passado, presente e futuro. O modelo de justiça que mais se aproxima da própria justiça atribui ao processo a missão de angariar elementos relacionados à narrativa da acusação ou, de maneira ampla, aos fatos como exatamente ocorreram no passado?

É nesta última indagação que a problemática se revela. As premissas propositadamente colocadas no parágrafo anterior são descabidas. Não se mostra viável almejar que o direito processual sirva ao direito material, quando a percepção material do fato parte de referenciais distintos daqueles estabelecidos ao processo.

Se o processo tem por objetivo maior a justiça (não condenar inocentes e não absolver culpados), a atuação do Magistrado, durante o processo, inclusive no interrogatório, deve ser voltada à conformação entre a verdade dos autos e a verdade objetiva (que se reproduziu no plano fático historicamente).

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Isso não significa que o Juiz possa afrontar garantias fundamentais do indivíduo para que, de qualquer modo, julgue a demanda com base na verdade objetiva, inclusive, com provas que não estão nos autos.

No entanto, o raciocínio indica que as provas a envergarem o processo devem guardar o mínimo de coerência com aquilo que a acusação narra ter ocorrido, sendo, a partir de juntadas, apreciadas pelo Magistrado para a formatação de sua convicção, sem qualquer outra influência externa aos autos.

Outrossim, impõe-se a separação clara entre dois momentos evidentemente distintos no processo: o da colheita de provas, ao qual, topologicamente bem ou mal, o Código de Processo Penal optou por incluir o interrogatório; e o da prolação da sentença.

No primeiro (instrução), a lei é expressa ao dispor que o Juiz também perguntará ao réu, em seu interrogatório, sobre todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração.

Isto é, muito embora algum fato, criminoso ou não, típico ou não, não esteja descrito na imputação inicial, é lícito ao Juiz questionar o interrogado sobre, desde que possua algum vínculo importante para a elucidação das circunstâncias da infração, esta sim narrada na inicial.

Não se trata de imputar ao réu ou de julgá-lo por infração penal não descrita na inicial, mas sim de, por demonstradamente necessário pelos elementos dos autos, o Juiz se informar acerca da maneira como o fato imputado supostamente se desenrolou. No mais das vezes, ainda que o réu negue ou confesse a imputação, são em aspectos secundários, como é sabido, que o Magistrado consegue identificar algum descompasso apto a absolver ou a condenar o acusado.

Se a infração descrita na inicial se relaciona com outras infrações penais, talvez descritas em outras denúncias ou em inquéritos que se tornarão acusações, nada impede que o Juiz pergunte também sobre estes últimos, porquanto imprescindíveis à formatação de sua convicção, seja para absolver ou para condenar o acusado.

É óbvio que o processo tem um objeto, delimitado pela acusação. Mas isso não representa qualquer obstáculo para que se dê boas facilidades ao Juiz, humano, para que sua decisão seja a mais justa: não condene inocentes e não absolva culpados.

Nesse contexto, a pretensão de vedação a perguntas diretamente relacionadas com os fatos narrados pela acusação – que inclusive podem acarretar em respostas determinantes à absolvição do réu – se mostra imprópria. Aumentar o leque de perguntas significa elevar a chance de acerto (e não de uma perseguição interminável e infundada ao acusado, vedada pela razoável duração do processo e pela absolvição por insuficiência de provas).

O objeto, delimitado pela acusação, funciona como limite ao Magistrado no momento de prolatar sua decisão, mas não no momento da instrução. Especialmente durante o interrogatório, funciona como parâmetro para que o Magistrado pergunte, recuse ou aceite perguntas. Serão pertinentes apenas aquelas que se relacionem com a infração do processo.

Havendo, contudo, qualquer outro procedimento em curso a apurar fatos secundariamente perguntados, neste serão apurados, instruídos e julgados, garantindo-se ao acusado toda a gama de direitos respeitada no primeiro processo.

Destarte, é um erro compreender o processo como um ente abstrato totalmente desvinculado do mundo real, porquanto a vida real apresenta situações entrelaçadas, relacionadas, indestacáveis, sendo necessária uma avaliação probatória sistematizada, ampla, cronologicamente organizada, tanto quanto ocorre no plano fático.

Em qualquer caso, o interrogatório do acusado não está sujeito aos limites dos fatos narrados na denúncia, desde que outros, ilícitos ou não, sejam relevantes e conectados à formatação da convicção do magistrado. Ademais, ao réu sempre resta o direito de silenciar, como dito.

Limitada, sim, estará a decisão final do Magistrado, que obrigatoriamente se baseará no quanto narrado inicialmente, nunca podendo surpreender o réu com fatos dos quais não pôde se defender.


[1] ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. vol 1,6ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 363.

[2] BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 2. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p, 49.

[3] http://www.conjur.com.br/2016-set-19/direito-silencio-interrogatorio-nao-direito-mentira

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Sobre o autor
Hugo Campitelli Zuan Esteves

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina: especialista em Direito Constitucional. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Docente em Kroton Educacional. Docente em Anhanguera.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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