4 TRATAMENTO DISPENSADO AO REFUGIADO NO BRASIL
Até as duas últimas décadas do século XIX, não houve restrições formais à entrada de imigrantes no Brasil. Entretanto, já no final do século, havia uma predileção por imigrantes europeus. O Brasil atravessou um momento onde o governo adotou uma estratégia de branqueamento da população, dando preferência à entrada de imigrantes europeus, estabelecendo regras muito rígidas para os demais imigrantes, que não se encaixavam nesse perfil.
Essa tal política de restrição, estabelecida no fim do século XIX, perdurou durante os Governos de Getúlio Vargas (1930-1945). O presidente, inclusive, chegou a editar dois decretos (Decreto 24.215 e 24.258), nos quais criou cotas para imigração, baseando-se uma vez mais, na justificativa da defesa do trabalhador nacional. Nessa época fora criado o primeiro Estatuto do Estrangeiro no Brasil (decreto lei nº 406 de 1938), que estabelecia como critérios de recebimento e hospedagem de estrangeiros motivações sanitárias, profissionais e ideológicas.
Uma sutil e gradativa mudança na política migratória ocorreu no governo Dutra (1946-1950), visando o desenvolvimento das áreas da agricultura e da indústria no país, buscando mão-de-obra capacitada para exercer tais atividades. Durante sua administração foram aceitos, oficialmente, grupos de refugiados advindos da guerra, até em razão da participação brasileira no conflito. Isso não significa que as portas do Brasil estavam abertas de maneira irrestrita, isso porque o governo selecionaria aqueles que seriam aceitos, com base nos critérios estabelecidos.
Durante o segundo governo Vargas (1951-1954), fora assinada a convenção de Genebra de 1951. Todavia, a ratificação desse tratado internacional somente ocorreu em 1960, por meio do Decreto Legislativo 11, promulgado pelo Decreto 50.215/61, já durante a administração de Jânio Quadros.
4.1 Regime Militar
Passada a administração de Jânio Quadros, o Brasil viveu um período ditatorial, marcado pelo regime militar. Nessa época, os direitos humanos foram desrespeitados e o país acabou fechando-se de forma geral à migração ou ao recebimento de refugiados.
No auge do regime militar, em 1977, o ACNUR celebrou um tratado com o governo brasileiro e abriu um escritório não oficial no país. Acontece que o governo, apesar de ter aceito a fixação do escritório, não reconheceu a instituição como uma organização internacional, não acolhendo sua atuação. Outra vez, para que os refugiados fossem aceitos no Brasil, estes deveriam ser europeus. Aos demais estrangeiros era concedido um visto de turista, para que estes pudessem ficar provisoriamente no território nacional por até 6 meses. Durante esse período de atuação quase clandestina, atuando sem a anuência do governo. Diversos orgãos de atuação interna ligados aos direitos humanos para a proteção aos refugiados, atuaram em parceria com o ACNUR. Entre esses parceiros pode-se destacar a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, a Comissão Pontifícia Justiça e Paz (comumente denominada Comissão Justiça e Paz) e a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.
Alguns anos depois, em 1981, o ACNUR encarregou a Cáritas de São Paulo, por meio de seu arcebispado, que tinha como figura principal Dom Paulo Evaristo Arns, de acolher refugiados dos países do Cone Sul. Esse acolhimento ia muito além do que apenas lhes dar guarida. Era necessário que se garantisse a documentação, moradia, se possível o trabalho e todas as outras condições de manutenção adequada em território nacional.
O arcebispo de São Paulo, à época, Dom Paulo Evaristo, publicou um livro onde retratou a situação vivida, onde atuava sem o conhecimento do Estado, ajudando aqueles que vinham de outros países, em busca de refúgio no Brasil. Nas palavras do Cardeal:
Do Brasil, saíam para o exílio forçado homens e mulheres que, por discordar do regime, por pensar outros caminhos para sua pátria, eram perseguidos, presos, torturados, desaparecidos ou mortos. Mais tarde, também entrariam no Brasil homens e mulheres fugidos de seus países, para não passarem pelas mesmas crueldades. [...] Até então, as autoridades brasileiras viam com maus olhos esses refugiados, uma vez que eles buscavam refúgio no Brasil pelos mesmos motivos que muitos brasileiros foram obrigados a buscar refúgio em outros países”. (ARNS, 2010, p. 66)
No mesmo sentido é a declaração prestada por Dom Eugênio de Araújo Sales, outro expoente das defesas dos direitos humanos à época da ditadura no Brasil. In Litteris:
Foram quase 5 mil pessoas refugiadas que apoiamos naquele período que vai de 1976 até 1982, quando o governo brasileiro não reconhecia sequer a presença oficial do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e ainda estávamos muito distante da condição que temos hoje, de ter uma lei de proteção aos refugiados. [...] Mas nunca tinha trabalhado com refugiados. No entanto, sabia que, da mesma forma como havia brasileiros que se dirigiam a outros países para escapar da prisão, havia muitos perseguidos da Argentina, Paraguai, Uruguai e do Chile, que procuravam o Brasil. A Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro ajudava de forma esporádica alguns refugiados e fui informado do crescimento do número de pessoas que procuravam a instituição, muitas desesperadas, com medo de serem presas e repatriadas. Como brasileiro, não poderia assumir responsabilidades outras, principalmente envolvendo outros países. Mas, também, não podia me omitir como pastor. Esse era meu drama. Tudo girou em torno disso. Não houve qualquer motivação política. (SALES, 2010, p. 62).
Percebe-se que a relação entre os refugiados e o Brasil perdurou mesmo na época em que os direitos humanos deixaram de ser protegidos, momento em que organizações não-estatais fizeram às vezes do Estado e supriram, ainda que de forma clandestina, as necessidades daqueles que vieram em busca de refúgio em solo nacional.
Nos idos dos anos 1980 a situação referente aos refugiados começou a se alterar. O governo havia adotado uma medida restritiva, chamada de Ato Institucional 5 (AI-5), onde os governantes eram dotados de poder de exceção para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. O ato acabou sendo revogado em 1978. O resultado da revogação foi a aceitação de brasileiros que haviam sido exilados pela ditadura, na vigência de tal medida. Essa abertura do país para os exilados também refletiu-se no tratamento dispensado ao ACNUR, que teve sua atuação reconhecida no ano de 1982.
Nesse mesmo contexto, surgiu o Estatuto do Estrangeiro, lei 6815/80. Por conta do momento em que fora editado, em plena ditadura, possui normas muito rígidas, não condizentes com os princípios internacionais dos direitos humanos. Tal estatuto, ainda adotando a ideologia das normas anteriores, prezava pela segurança do trabalhador nacional, estabelecendo diretrizes de modo a permitir a fixação dos estrangeiros no país, contanto que viessem para trabalhar e trazer conhecimento especializado. Tal Estatuto tem vigência até os dias atuais, servindo, inclusive, como complemento a toda a regulação que envolva os estrangeiros, dentre elas o Estatuto do Refugiado, nos casos em que a regulamentação específica for silente ou omissa com relação a algum aspecto.
A partir de 1984, com a redemocratização de alguns Estados da América Latina, deu-se início à repatriação dos refugiados, auxiliada pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e pela Comissão Pontifícia Justiça e Paz em São Paulo.
4.2 Constituição Federal de 1988
Anos mais tarde, com o fim da ditadura e o movimento das “Diretas Já”, os anseios da população eram que fosse um estabelecido um Estado democrático de direito, sendo resguardados os direitos humanos em geral. Com fundamento nessa situação, classificada como a redemocratização do Brasil, deu-se a promulgação da Constituição Federal de 1988, que preceituou diversos princípios, guardando os valores fundamentais da ordem jurídica. Nos princípios constitucionais condensa-se bens e valores considerados fundamentos de validade de todo sistema jurídico.
A Constituição, no que tange ao refugiado, pode ser vista sob dois ângulos distintos: o ângulos das normas constitucionais, por ela impostos e, de outro lado, como as regras internacionais oriundas de tratados e que são exteriores à Constituição, se coadunam com as regras constitucionais.
Percebe-se a influência das normas internacionais dos direitos humanos no corpo da Carta. Já em seu artigo 1º, a CF elenca seus elementos fundamentais, incluindo “[...] a dignidade da pessoa humana”. Por sua vez, o artigo 3ª descreve o objetivo fundamental do Brasil em “[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ademais, o artigo quarto – referindo-se aos princípios que regem as relações internacionais – cita, entre os outros critérios, “[...] a prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e a concessão de asilo político” (BRASIL, 1988).
Especificamente tratando do refúgio seu artigo 4º elenca, dentre os princípios das relações internacionais pelos quais o Brasil deverá reger-SE, a prevalência dos Direitos Humanos (inc. II) e a concessão de asilo político (inc. X).
Ademais, este diploma legal estabelece em seu artigo 5º, caput, que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida...”. (BARSIL, 1988).
Dessa forma, além de obrigar o Brasil a zelar pelo respeito aos direitos humanos e a conceder asilo, assegurando mediatamente o refúgio, a Constituição Federal de 1988 estipulou a igualdade de direitos entre os brasileiros e os estrangeiros – incluindo-se os solicitantes de refúgio e os refugiados.
Desta feita, a Constituição Federal de 1988 traz as bases legais para a efetivação do instituto do refúgio no Brasil, bem como dispõe sobre o tratamento jurídico a ser dispensado aos solicitantes de refúgio e refugiados – enquanto estrangeiros – no Brasil, mostrando-se consciente da importância do tema no atual momento da comunidade internacional.
4.3 Acontecimentos Pós-Constituição Federal
Já na década de 1990, o governo brasileiro tomou uma série de medidas voltadas às causas de direitos humanos em geral, e dos refugiados em particular. Em 1991 foi elaborada a Portaria Interministerial 394, ampliando o elenco de direitos dos refugiados e estabelecendo procedimento específico para a concessão de refúgio envolvendo tanto o ACNUR – que analisava os casos individuais – quanto o governo brasileiro, que dá a decisão final.
Apenas em 1992, com a chegada de aproximadamente 1200 angolanos que fugiam da guerra civil em seu país, o Brasil passou a adotar uma postura mais flexível em relação aos refugiados, não se limitando à definição prevista na Convenção de 51 e no Protocolo de 67, mas, sim, ampliando-a para permitir a proteção dessas pessoas. Era o início da utilização da definição ampliada pelo Brasil, seguindo as diretrizes da Declaração de Cartagena (1984), e que seria positivada na lei nacional sobre refugiados.
O próximo e derradeiro passo na história nacional de proteção aos refugiados veio a ser a elaboração de um projeto de lei sobre o Estatuto Jurídico do Refugiado. A medida mais significativa e que gerou inúmeros reflexos foi o Programa Nacional dos Direitos Humanos (Decreto 1904/1996). Foram estabelecidos objetivos de curto (criação de legislação específica para os refugiados) e longo prazo (reformulação do estatuto do estrangeiro). Tal Programa deu origem à Lei 9474/97, que fora elaborada junto ao Congresso Nacional, com colaboração da Cáritas Arquidiocesiana, representantes do ACNUR, assim como a Comissão de Direitos Humanos da Câmara.